ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Deitanças armoriais
Antes do ar, o chão
Daniela Pinheiro | Edição 93, Junho 2014
É mês da Copa do Mundo, torcedores de toda parte devem lotar estádios, hotéis e, naturalmente, aeroportos. Mas, durante a maratona de jogos, repousar entre um voo e outro será conquista árdua. “Só tem cadeira desconfortável”, disse, numa tarde recente, Ariano Suassuna, na sala de sua casa, no Recife. “É um horror para quem está cansado.” Há tempos, o escritor paraibano, hoje com 87 anos, recomenda: “Melhor o chão.”
Um mês antes, uma foto de Suassuna estirado junto ao portão de embarque no aeroporto de Brasília tirou o sossego dos familiares. Um passageiro avistou um idoso de terno branco, com aquele corpo comprido de mapa do Chile, deitado no chão. Com a boca aberta, os olhos cerrados e as mãos retesadas sobre o peito, o sujeito trazia uma das pernas dobrada, formando um triângulo com o solo; a outra estava largada.
Sob a cabeça, a mala preta 007 servia de travesseiro. De longe, lembrava uma estátua de mármore de igreja medieval. O rapaz se aproximou e reconheceu o autor de O Auto da Compadecida. Na condição de legítimo espécime dos tempos modernos, como guardar aquela cena só para si? Em um minuto ele a postava no Instagram.
Antes que o escritor pisasse no Recife, a notícia já havia corrido o país. A foto fora reproduzida em sites da imprensa, por blogueiros e internautas. Foram mais de 200 mil visualizações e quase mil compartilhamentos em menos de 48 horas. “Virou um inferno, o telefone não parava de tocar, era jornalista ligando, povo querendo saber se eu estava doente, machucado, se era atraso do avião”, contou. “Eu estava era cansado!”
O site The Guide to Sleeping in Airports, que faz um ranking de melhores e piores aeroportos do mundo no quesito “dormir quando o voo atrasa ou a conexão é perdida”, corrobora a impressão do escritor. A usuária Miel, que deu apenas duas estrelas ao de Brasília, registrou: “Todas as cadeiras têm braços, não dá para se esticar!” Outro comentário: “Havia muita gente deitada no chão e não fui perturbada por seguranças, então vale a pena!”
Não foi o que ocorreu com Suassuna. Passados cinco minutos, foi interpelado por um guardinha. “O senhor não pode ficar aqui”, disse. O escritor abriu um olho e, encarando o sujeito de baixo para cima, soltou: “Por quê?” Ao que o outro replicou: “Não pode deitar no chão.” E de novo: “Por quê?” Depois de alguns segundos de silêncio, o moço concluiu: “Sei lá!”
Daí travou-se uma cordial contenda. Suassuna disse que deveria ser muito estranho mesmo um “velho estirado no chão”, mas argumentou não estar “atentando contra o pudor” nem “fazendo gesto obsceno”. “Se o senhor acha que um velho de 87 anos não pode se deitar no chão, então chame a polícia”, decretou. O rapaz deu meia-volta. Minutos depois, a voz de uma mocinha reverberava no sistema de som alertando que “é proibido deitar no chão do aeroporto”. Suassuna não se moveu.
O escritor viaja acompanhado por um assessor, o artista plástico Alexandre Nóbrega, seu genro. No começo, Nóbrega ainda levava um tapete de ioga para que Suassuna se acomodasse melhor nos aeroportos. “Mas hoje eu me deito onde dá”, disse. Quando vai para a sala VIP, espicha-se nos sofás. Em geral, tira os sapatos e as meias, deixando os pés em liberdade. Nunca foi hostilizado. O chão mais inóspito sobre o qual já relaxou? “Foram tantos, não me lembro”, disse. Como nunca saiu do Brasil, seu conhecimento do conforto rasteiro se restringe ao território nacional. “No estrangeiro parece que é normal se deitar”, arriscou.
Suassuna se levantou da cadeira de balanço e foi a uma sala contígua, de onde voltou com o livro O Decifrador, com fotografias de suas viagens pelo Brasil. Ali, veem-se três imagens que ilustram esse seu costume. “Aqui me deitei na beira de uma cerca”, disse, apontando para a foto em que está estirado no mato, no sertão pernambucano. O carro havia atolado na areia e ele recomendou que o acordassem apenas quando chegasse o socorro. “Felizmente não tinha ninguém, nem uma vaca para me tirar de lá.” Em outra, está no aeroporto de Curitiba. Numa terceira, no chão de Guarulhos, descalço, parece confortável lendo Scaramouche, do italiano Rafael Sabatini. “Ele se deita onde for”, disse o genro. “Às vezes eu também tenho vontade, mas fico com vergonha.”
Cadeiras de ferro e plástico, de acrílico, algumas com assento em couro, outras em inox reluzente, tudo bem. Mas o apoio de braço, isso ele não engole. Parece ter sido criado com o propósito de atrapalhar o cochilo alheio. “Para que braço?”, indagou.
Se ele tem alguma sugestão para melhorar a acomodação dos passageiros exaustos? “Oxe, não tenho a menor ideia, não sou construtor de aeroporto”, limitou-se a dizer. Sem qualquer intimidade com computador, internet e muito menos redes sociais, o que mais lhe causou espanto foi a repercussão do caso. “Fico besta como uma bobagem dessas tomou tamanho. Ninguém tem mais o que fazer?”