ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
O museu de tudo
Objetos do cotidiano levados a sério
Ana Paula Orlandi | Edição 93, Junho 2014
Antônio Carlos Figueiredo ergueu um objeto de madeira maciça em formato de caranguejo e repetiu a pergunta que havia feito várias vezes naquela tarde. “E isso, para que serve?”, desafiou. “Vou te dar dez chances, mas acho impossível que acerte.” Era, tchan-tchan-tchan-tchan, uma descalçadeira de botas – as garras do crustáceo servem para puxar a parte de trás do calçado, que costuma ficar presa na curva do calcanhar. “Uma coisa muito útil no dia a dia, principalmente depois de o sujeito ter tomado uns goles”, esclareceu Figueiredo.
A peça é apenas uma dentre dezenas de milhares que Figueiredo juntou durante a vida. Seu acervo não tem qualquer pretensão de coerência. Inclui galochas de salto alto, cartazes de luta livre, um cabide de luvas, um contador de vacas, um amolador de lâmina de barbear, uma cartola de mágico da Suécia, uma camisa de tergal ainda na caixa, um quepe de piloto da Vasp e um aparelho dos anos 20 que antecedeu o projetor de slides chamado episcópio.
Figueiredo é falante e cordial. Do alto de seus cabelos brancos, faz mistério em relação à idade: “Prefiro falar em décadas, escreve aí que nasci nos anos 40.” No espaço onde guarda a maior parte de sua coleção, em Belo Horizonte, o bancário aposentado explicou que ela é resultado de um garimpo cotidiano. “Trago para cá objetos que me agradam pela ideia, pelo design e, se possível, que tenham uma história.” Dentre os itens mais notáveis, há uma poltrona de Joaquim Tenreiro e uma bandeja assinada por Sérgio Rodrigues, luminares do design brasileiro. Ele guarda ainda um velho microfone de rádio que teria servido a Cauby Peixoto, Angela Maria e outras estrelas, além de telas da modernista Tarsila do Amaral e do primitivo Amadeo Lorenzato.
A maioria do acervo de Figueiredo está espalhada numa loja de sua propriedade no térreo de um prédio residencial perto do Palácio da Liberdade, antiga sede do governo estadual. As peças ocupam cada recanto dos 600 metros quadrados do imóvel, que ele chama de galpão. Estão em armários, sobre mesas ou empilhados. O lugar é claustrofóbico, apesar de amplo. Não há qualquer superfície livre, a começar por sua mesa de trabalho. “Quando preciso mandar e-mail vou a uma lan house porque não consigo usar o computador”, contou.
O fascínio de Figueiredo pelos objetos vem desde a infância em Ouro Preto, no interior de Minas. “Começou com minha mamadeira, uma garrafa de guaraná com um bico em cima que tenho até hoje.” A coleção teve início nos anos 50, quando seus pais quiseram lhe dar uma bicicleta.
O menino não quis ganhar uma nova – preferiu a que o açougueiro do bairro estava vendendo, um modelo inglês que usava para entregar mercadorias.
Formado em economia, Figueiredo trabalhou em banco por 22 anos. No final da década de 80, o chefe quis promovê-lo a diretor. “Pedi demissão na hora, porque não era feliz naquele trabalho. Foi a melhor coisa que fiz, porque do contrário acho que já teria morrido de infarto.” Na sequência, enveredou pelo mundo das artes plásticas e abriu uma galeria na capital mineira. Lá, ouviu de Amilcar de Castro, um dos baluartes do concretismo brasileiro, que deveria levar a paixão pelos objetos do cotidiano “às últimas consequências”.
E assim ele fez. Fechou a galeria no início dos anos 90 e passou a investir no acervo que ele calcula estar na casa dos 120 mil itens. A coleção é abastecida com visitas a brechós, ferros-velhos e desovas do tipo “família vende tudo”. Mas é flanando pela cidade que ele faz seus achados mais preciosos. “O objeto pode estar no açougue, no cartório, no restaurante.” Outra estratégia é se jogar nas buscas que ele define como easy rider, quando pega um ônibus sem olhar o destino e desembarca em algum bairro de Belo Horizonte. “Desço no ponto onde as energias conspiram e sempre dá certo.”
Em casos mais raros, são os objetos que vão em busca dele. Figueiredo se espantou quando recebeu o telefonema da viúva de um engenheiro japonês da Honda radicado no interior de Minas. Seu marido tinha um macacão original de Ayrton Senna. A conselho de amigos, ela procurou Figueiredo para se desfazer da relíquia.
A coleção de Figueiredo de vez em quando lhe rende uns trocados. Ele aluga o acervo para produções de cinema, televisão e moda. Em 2011, o depósito serviu de cenário para um videoclipe da cantora Sandy e alguns objetos foram parar numa exposição itinerante sobre o rio São Francisco organizada pelo estilista Ronaldo Fraga.
O mineiro raramente se desfaz de uma peça. “Como compro mais do que vendo, costumo passar meus apertos, mas aí vendo alguma obra de arte e assim vou vivendo.” Figueiredo não gosta de ser chamado de colecionador ou antiquário. Muito menos de acumulador. “Sou objeteiro”, define com um neologismo. “E não trabalho com objetos decorativos, mas decolativos, para que o cidadão faça a viagem dele.” Agora, pretende reunir tudo o que juntou ao longo das últimas seis décadas e oficializar o seu “museu do cotidiano”. Diz que a Universidade Federal de Minas Gerais já sinalizou interesse de abrigar a coleção num prédio no Centro da capital mineira.
Enquanto a ideia não ganha corpo, Figueiredo segue obrigado a improvisar espaço para guardar sua tralha, que já transbordou a capacidade do galpão. O resto do acervo está espalhado em mais oito endereços de Belo Horizonte, incluindo espaços próprios, alugados ou cedidos por amigos. Alguns itens encontraram abrigo numa Kombi 1970 dentro da garagem de seu edifício, para desespero da síndica. Mal sabe ela dos planos de Figueiredo, dono de oito vagas no estacionamento. “Também pretendo trazer para cá um ônibus que acabei de comprar para fazer de depósito”, mandou avisar.