ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
O tudo e o nada
Uma casa cult bacaninha
Luiza Miguez | Edição 95, Agosto 2014
O menino com rabo de macaco se concentrou, punhos e olhos cerrados, enquanto uma esfera amarela de energia cobria seu corpo e arrepiava seus cabelos. “Rá!”, gritou o personagem Goku do desenho animado japonês Dragon Ball, agora começando a levitar. “Rá!”, respondeu o monge Rashnu, secundado pelo grupo que assistia com atenção ao episódio da série de tevê projetado em uma parede.
Arrastando seu robe de seda preto pela sala de uma casa de vila no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, o chileno Rashnu relacionou o transe do personagem Goku ao xamanismo. “Neste dia, você vai aprender os métodos para acumular energia e ter maior nível de vitalidade”, dizia o panfleto que atraiu mais de vinte pessoas à celebração conduzida por ele na noite de uma terça-feira de julho.
De vez em quando, um desavisado passava na frente da projeção para chegar a outro cômodo, fazendo sombra na exibição e atrapalhando o ritual xamânico. Na cozinha, dez pessoas se espremiam, atentas a uma aula de como preparar drinques de cachaça com gengibre e café (leite condensado a gosto).
O grupo reunido na sala batia os pés no chão e agitava violentamente os braços para baixo em meio aos gritos de “Rá”. A repórter e um amigo circulavam pelos corredores tentando entender o que estava acontecendo. “Oi! É a primeira vez de vocês aqui?”, perguntou um rapaz que brotou lépido de um dos quartos. Solícito, ofereceu uma visita guiada pelos oito cômodos do sobrado.
No andar de cima, o chill out, uma sala com sofás, é a área para relaxamento, servindo ainda para oficinas de desenho, sala de massagem e exposições de arte. Na varanda comprida, um grupo de agrônomos dedicado à “adaptação sustentável dos espaços” cultiva vasinhos de boldo, pimenta, cebolinha e manjericão.
Há também uma sala de reunião apertada e um estúdio de design cheio de computadores. Embaixo se encontra um ateliê multiuso, a cozinha, o pátio e a sala ora ocupada pelo monge Rashnu. A casa é antiga, mas uma reforma recente deixou tudo com cara de novo. “E aquela ali é a minha mãe”, concluiu o rapaz, indicando uma senhora sentada sozinha em um canto da sala, abraçada a sua bolsa. “E é isso. A gente chama de ‘Casa Foda-se’.”
“Aqui não existe empoderamento de espaço, nenhum cômodo é só uma coisa e nenhum é gerenciado por alguém”, resume Maiko Pinheiro, um dos fundadores da casa. Ele tem 25 anos, é formado em economia, usa um penteado black power curto e deixa a barba por fazer. Sentado em um cajón, instrumento de percussão em formato de caixa, descreveu o perfil dos frequentadores do lugar, a galera cult bacaninha do Rio. “É gente pós-universidade, começando sua pequena empresa, em geral morador da Zona Sul com boa formação acadêmica”, disse.
Novos membros são aceitos, basta colocar na roda seus recursos – dinheiro, computador, criatividade, influência, contatos. “A gente quer mostrar que escassez é um mito. Eu tenho 10 mil no banco, você 20, a gente tem 30. Eu tenho uma bicicleta e uma câmera, você um bambolê e um laptop”, explicou o economista Maiko, que acredita no potencial de multiplicação de bens em comunidades colaborativas.
Cada um paga quanto pode pelas atividades ali realizadas, a Casa Foda-se não almeja acumular dinheiro. Em três meses, ela foi palco de aulas de culinária (palha italiana, feijoada), oficina de educação alternativa, curso de corte de cabelo, aula com um bodysurfer (ou “homem-peixe”), taxidermia de papelão (figuras que imitam animais empalhados), leitura de aura, pintura corporal, performances, aula de bambolê, orientação personalizada para a escolha dos melhores eventos de Facebook. Apareceu até uma moça oferecendo ser namorada por um dia.
Enquanto Maiko enumerava as oficinas, um som de música pop abafou sua voz. Ele parou de falar e deixou o olhar se perder na direção de uma amiga que estava no canto da sala. “Isso, meninas, lembrem-se de rodar bem na cintura, vai ficar no ossinho mesmo, os hematomas são normais”, disse a professora, exigente, a cinco alunas que tentavam manter bambolês rodando em volta do corpo. “É a roupa de vocês que não ajuda! Pele é a melhor superfície, vejam como eu rodo fácil na minha barriga. Olha isso, gente!”
Os vinte integrantes fixos da casa – nenhum deles mora lá, embora não seja raro que alguém apague num dos sofás – já dominam a arte, servindo-se dos bambolês pendurados na parede da sala. A aula para iniciantes, que também incluía a confecção dos aros, era a primeira de quatro previstas para julho na sala da Casa Foda-se. “A gente divulgou [o curso] com a frase ‘Comece a sua revolução’ porque todo mundo tem uma história de superação pessoal por causa do bambolê”, explicou a advogada Edilaine Guerreiro, uma das professoras. Ela mesma, muito tímida, só teve coragem de mostrar em público seu jogo de cintura depois de muito bambolear.
No estúdio no 2º andar, o designer Felipe Duarte, outro dos fundadores, conversou sobre a filosofia do lugar sem tirar os olhos do computador. “É claro que a gente precisa de dinheiro”, disse. Quando alugaram o sobrado, em maio, ele e um grupo de amigos pretendiam conciliar a necessidade de um estúdio com um desejo antigo. “Nossa ideia era um espaço que não serve para nada, que aceita os fluxos que acontecem nele e que tira o dinheiro dele mesmo”, disse Felipe, que reservou 20 mil reais de suas economias para os gastos iniciais.
A Casa Foda-se tem um nome institucional, Catete92, e seu site oficial convida para uma visita, sem necessidade de convite, os espíritos livres que sintam “o chamado da autonomia” e queiram “companhia em seus mergulhos na incerteza e aprendizados”. Calculando de cabeça as despesas fixas do mês, Felipe comemorou a arrecadação no mês anterior de quase 95% dos 9 mil reais de que precisam. “É o escritório mais bonito do mundo. Ninguém nunca deu ordem para ninguém, nada existe, tudo é tudo e na verdade eu nem sei o que está acontecendo.”