ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Cabeças de pimenta
Vai arder assim nos Estados Unidos
Alexandre Rodrigues | Edição 95, Agosto 2014
Na Guerra Fria, americanos e soviéticos travaram uma disputa pela bomba capaz de destruir o mundo mais rapidamente. Ed Currie, um ex-bancário e agricultor amador americano de 50 anos, fala macia, barba rala e um indefectível boné na cabeça, lidera uma versão menos letal – mas muito quente – da corrida armamentista. O Guinness Book, o livro dos recordes, apontou no ano passado que a Carolina Reaper, pimenta desenvolvida por ele no quintal de casa em Rochester Hills, no estado de Michigan, é a mais ardida do mundo. Atingiu 1,569 milhão de unidades Scoville, a escala oficial de ardência dos frutos das plantas do gênero Capsicum.
Com formato de um rabo de escorpião, a Carolina Reaper é praticamente impossível de ser engolida por alguém com um paladar comum. Na ZestFest – uma feira de pimentas em Columbus, Ohio, à qual Currie compareceu em junho de 2013 com alguns exemplares –, dezenove pessoas tentaram. Dezessete vomitaram ou desistiram. “Não há vergonha em vomitar, amigo”, ele consolava as vítimas. O mundo dos chilli head sou “cabeças de pimenta”, como são chamados os fãs de pimentas extremas nos Estados Unidos, não é mesmo para qualquer um.
O Guinness já reconheceu a existência de quatro superpimentas. Até sete anos atrás, a americana Red Savina Habanero, com cerca de 500 mil unidades Scoville, reinava absoluta. Foi então que, em 2007, Paul Bosland, diretor do Chile Pepper Institute, um centro de pesquisas da Universidade Estadual do Novo México, leu sobre as experiências do Exército da Índia com uma pimenta local, a Bhut Jolokia. Testou algumas amostras e ficou chocado: tinham o dobro da ardência da Red Savina. A Bhut reinou como a mais ardida do mundo entre 2007 e 2010 e criou um fenômeno pop. Vídeos com pessoas sofrendo para comê-la proliferaram no YouTube.
Em fevereiro de 2011, a Bhut Jolokia foi destronada pela inglesa Infinity Chilli, também com mais de 1 milhão de unidades Scoville. Mas seu reinado foi efêmero: duas semanas depois, foi anunciado que outra inglesa, a Naga Viper, era a nova campeã, com 1,382 milhão. Mais quatro meses e o título mudava de mãos novamente, indo para a Butch T, desenvolvida na Austrália, tendo atingido a marca de 1,463 milhão de unidades. Com a venda de sementes pela internet, mais e mais agricultores amadores se aventuraram no ramo.
Ed Currie é um deles. Seu interesse por pimentas se deve ao histórico familiar de doenças cardíacas e câncer. Nos anos 80, ele decidiu pesquisar por conta própria como evitar a maldição, descobrindo que, entre outros fatores, populações com baixas taxas de incidência das duas moléstias consomem pimentas fortes em todas as refeições. Então encomendou sementes pelo correio e começou a cultivá-las no quintal de casa, tentando criar uma híbrida da Naga com a Habanero vermelha.
Nos anos 90, Currie foi levado ao fundo do poço por outros males. Era alcoólatra, pesava mais de 100 quilos e ia mal no trabalho. Foi quando, ele garante, um anjo entrou pela porta numa noite e ordenou que entrasse numa reabilitação. Recuperado, dedicou-se ainda mais às pimentas. O negócio se expandiu com a criação da PuckerButt Pepper Company, uma fabricante de molhos com nomes sugestivos como “Eu te desafio!” que emprega doze pessoas. “Eu tenho minha opinião sobre por que pimentas superquentes são tão populares”, disse ele em entrevista por e-mail: “Vício.”
Currie pode estar certo. Por trás da ardência está a capsaicina, composto químico das pimentas Capsicum. Quando entra em contato com membranas da boca, do nariz e da garganta – é melhor nem pensar nos olhos –, provoca um sinal de dor que faz o cérebro começar a produzir endorfina, que causa uma sensação agradável no corpo. O bem-estar depois da ingestão de uma superforte é parecido com o de um atleta após uma corrida intensa.
Medir essa ardência só é possível graças ao farmacêutico americano Wilbur Scoville. Em 1912, ele começou a misturar um copo de pimenta pura com água com açúcar, diluindo progressivamente até notar – não sem algum sofrimento, já que tinha que experimentar a mistura – que a ardência havia parado. Apesar de rudimentar, o método é a base das unidades de calor Scoville, até hoje usado por cientistas. Mas ninguém precisa mais beber água com pimenta. Análises de DNA e cromatografia detectam o teor de ardência.
“Pimenta é como sal”, diz Paul Bosland, o cientista que também é um chilli head. “Em poucas quantidades, melhoram os pratos; se muito fortes, estragam.”
Por que então produzir uma pimenta quase impossível de comer? A resposta não é muito diferente da que move os produtores de cerveja artesanal ou de café gourmet: a busca de fama e fortuna. Enquanto ingleses e australianos são menos competitivos, compartilhando técnicas e sementes, entre americanos a disputa pela pimenta mais ardida acontece em clima de guerra. Jim Duffy, criador da pimenta Trinidad Moruga Scorpion, travou uma batalha contra Currie em fóruns online e páginas no Facebook quando ficou sabendo da Carolina Reaper. Nada fatal: os dois hoje são amigos.
Currie é um estranho no meio dos chilli heads. Um adorador de pimentas típico parece um fã de rock que gosta de tatuagens e faz referências a Satã, mas ele é um cristão fervoroso desde o “episódio do anjo” e costuma repetir: “Foi um presente de Deus.” Sua generosidade, porém, para nos negócios. Quando um produtor anunciou ter conseguido sementes da Carolina Reaper, os advogados de Currie o procuraram para proibi-lo de revendê-las. Ele também se recusa a entregar amostras a sites de resenhas de pimentas e à imprensa.
Há acusações de que a Carolina Reaper é uma farsa ou, na média, menos picante do que a Trinidad Moruga, que em um teste chegou a atingir 2,2 milhões de unidades Scoville. Para obter seu título, Currie gastou 19 mil dólares em testes de laboratório na Universidade Winthrop. Em novembro de 2013, recebeu a mensagem de parabéns do Guinness anunciando que chegara ao topo – pelo menos até a próxima superpimenta.