ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Os casamentos de Aisha
Cerimônia dupla numa mesquita
Gabriela Caesar | Edição 96, Setembro 2014
O dia 28 de julho, uma segunda-feira, ainda amanhecia, cinzento, e Aisha já se arrumava no 2º andar da Mesquita da Luz, no bairro carioca da Tijuca, a única no estado do Rio de Janeiro. Com a ajuda de uma amiga, ela ajustou o véu azul-turquesa e amarelo enfeitado com lantejoulas e caprichou na maquiagem dos olhos antes de descer para o salão de orações. “Salaam Aleikum” (que a paz esteja com você), saudaram em árabe duas amigas que subiram as escadas para acompanhar a preparação da noiva.
O diálogo prosseguiu em português, idioma nativo da maioria dos frequentadores do templo. Aisha é uma entre os 70% de fiéis cadastrados na SBM-RJ – a Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro – que seguiam outras religiões e se converteram ao Islã. Na comunidade toda, com aproximadamente 1 500 pessoas, estima-se que 35% sejam mulheres.
Por volta das 7h30, Aisha desceu com as amigas para o salão. Sentadas no tapete, descalças, elas tiravam fotos com o celular e conversavam antes do início do Eid al-Fitr, a celebração que marca o fim do Ramadã. Algumas tinham passado a noite no templo, para estar ali ao nascer do dia, prática comum quando moram em outro município ou em bairros distantes.
“No ano passado também fiquei na mesquita na última noite do Ramadã; passei quase a noite toda estudando o Alcorão. A gente sempre pede a ajuda de um amigo, que sabe de cor. Depois, às cinco da manhã já levantamos para as orações e não dormimos mais”, contou Aisha.
De túnica branca, um visitante, religioso procedente da Arábia Saudita, passou perto do grupo feminino, perfumando o ambiente com lascas de madeira aromatizadas que levava numa frigideira. Uma funcionária da mesquita ofereceu tâmara e água. “Não pode fazer as orações do Eid sem ter quebrado o jejum”, avisou um empregado.
Na lateral da mesquita, o argelino Amine, o noivo de Aisha, andava de um lado para o outro, ansioso. No momento das genuflexões, ele apareceu no salão de orações. De terno preto, sapato social e gravata vermelha, deixou o buquê de rosas vermelhas artificiais em cima de um armário e se dirigiu ao tapete dos homens. “Na Argélia, é o noivo que oferece o buquê para a noiva. Ele ia mandar fazer, mas eu quis comprar eu mesma para poder enfeitar com pedrinhas”, disse-me Aisha em uma conversa num café, dias depois do casamento.
Aisha e Amine se conheceram num sábado do Ramadã de 2013. Tinham ido à mesquita para quebrar o jejum depois do pôr do sol. Quando Amine viu o filho adolescente de Aisha com um laptop, perguntou-lhe se poderia usar o aparelho para carregar o celular. “Não fui para o Islã para casar, fui de curiosa. Gostei, era aquilo que buscava para a minha vida. Mas achei o Amine bonito. O que me chamou a atenção foram os olhos”, disse ela.
Antes de se converter, Aisha, de 39 anos, frequentava a Assembleia de Deus do Centro de Nova Iguaçu. Certa vez pesquisava sobre a Índia, para onde desejava viajar, e adicionou ao Facebook usuários que poderiam ter alguma relação com o país. Acabou conhecendo um rapaz saudita, de quem ouviu as primeiras palavras sobre o Islã pelo Skype.
“Quando fiz o testemunho para a conversão, a Shahada, meu amigo disse que eu tinha que escolher um nome. Sempre achei Aisha muito bonito, sem nem saber que era islâmico. Ele me contou que Aisha era uma das esposas do profeta”, disse ela, que antes usava o prenome escolhido pelos pais, Andreia.
Naquela época, janeiro de 2012, a mesquita ainda estava em obras. A fachada, o 2º e o 3º andares do prédio, onde antes havia uma fábrica e uma casa, estavam sendo construídos. Hoje a mesquita, revestida de azulejos verdes e beges, conta com os dois minaretes tradicionais e a cúpula. Para a conclusão, falta instalar toldos nas laterais e finalizar a casa do xeique definitivo, que ainda não se sabe de onde virá, no 4º andar.
“Eu sempre quis casar na mesquita, mas o Amine queria que fosse só na casa de festas. Depois concordou, ele sempre concorda”, disse Aisha, que não chegou a conhecer a mussala da avenida Gomes Freire, no Centro do Rio, antes usada pelos muçulmanos para as orações.
Naquela segunda-feira de julho, Aisha e três amigas voltaram depois do Eid para a sala no 2º andar, onde têm aulas de árabe. Ela sabe declamar algumas suras, mas não frequentou o curso nem considera o idioma uma barreira para o relacionamento com o designer Amine, que mora no Rio há dois anos. “Ele veio para cá sem falar nada de português. Hoje até me ajuda com o trabalho da faculdade”, disse. Ela estuda artes plásticas, na UFRJ.
Aisha já estava com o vestido branco bordado por ela quando uma amiga veio avisar que deveria descer logo para o salão. Sua família só chegaria uma hora e meia depois, mas o procurador do casamento – segundo o ritual muçulmano, o representante da noiva, no caso Mohamed Zeinhom Abdien, o presidente da SBM-RJ, nascido no Egito – se atrapalhou e fez o juramento por Aisha sem a presença dela. “Logo que a oração acabou, ele chamou o Amine para o casamento. Eu vi os vídeos depois”, contou ela.
Para remediar a situação, combinaram outra cerimônia em seguida. No 3º andar da mesquita, Aisha ocupou uma das quatro cadeiras dispostas em frente a uma mesa com um bolo de chocolate feito por ela, boleira de profissão. Nas demais, sentaram-se o noivo, o xeique provisório Mahmoud al-Dosary, de origem saudita, e o procurador.
O xeique pronunciou algumas frases em árabe, traduzidas por um rapaz do Egito. O noivo e o procurador refizeram o juramento. “Allahu Akbar” (Deus é o maior) foi repetido três vezes – pelos noivos, celebrantes e convidados. Depois de aplausos gerais, o casal trocou as alianças de ouro, parte do dote combinado – que inclui uma viagem para a Arábia Saudita e certa quantia de dinheiro –, e cortou o bolo.
No primeiro dia da vida de casada, Aisha disse que já tinha uma certeza. “Ele não vai ter outra esposa. Eu não aceitaria e nem a mãe dele aceita. Ele pode, é direito dele, mas, se quiser mesmo casar com outra, ele que me dê o divórcio. Eu sou muito ciumenta, não vai dar certo.”