ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
No Grande Rio
A metrópole de um inovador discreto
Claudia Antunes | Edição 98, Novembro 2014
No final de 2005, José Marcelo Zacchi recebeu um e-mail do antropólogo Hermano Vianna com um link para o YouTube – um site recém-criado na Califórnia. Tinha tudo a ver com uma ideia que os dois vinham matutando: um espaço colaborativo para divulgar a produção cultural brasileira que não aparecia na mídia tradicional. Batizado de Overmundo (título de um poema de Murilo Mendes que fala do “grito eletrônico” de um “cavaleiro do mundo”), o projeto estreou em 2006. No ano seguinte, levou o Golden Nica, prêmio internacional de cultura digital.
Zacchi, de 38 anos, é um sujeito discreto. Seu low profile contrasta com as inúmeras iniciativas de que participou desde o curso de direito na USP, nos anos 90. Integrante do legendário Centro Acadêmico XI de Agosto, ele ajudou a lançar a campanha pelo desarmamento que desembocaria na criação do Instituto Sou da Paz e, mais tarde, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No final do governo FHC, foi convidado para trabalhar no embrião de uma política nacional de segurança – na época não existia nem um banco de dados que reunisse as estatísticas estaduais de ocorrências criminais. No início do governo Lula, voltou ao Ministério da Justiça por um ano. Foi quando ele e Hermano Vianna, próximo do ministro da Cultura Gilberto Gil, se conheceram.
Zacchi, Vianna e os outros dois criadores do Overmundo – o especialista em cultura digital Ronaldo Lemos e o produtor cultural Alexandre Youssef – têm hoje um programa semanal na GloboNews, Navegador, em que exploram os recônditos da internet. Mas Zacchi, estabelecido no Rio desde 2004, tem se dedicado a uma empreitada que, embora use a rede virtual, depende de correr chão: a Casa Fluminense, organização de ativistas sociais e pesquisadores interessados em propor políticas públicas para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro além da faixa estreita da orla e do prazo fetiche da Olimpíada de 2016.
A Casa – criada em 2013 e hoje com 120 associados – ocupa uma sala cedida pelo Instituto de Estudos da Religião, num casarão no bairro carioca da Glória. Ali, numa manhã recente, Zacchi contou que pretende trilhar o caminho inverso ao da maioria das ONGs surgidas na explosão do terceiro setor, nos anos 90. Devido à necessidade de obter financiamento, elas passaram a viver de projetos setoriais, o que, muitas vezes, minguou sua influência na definição das ações governamentais.
“Há dez, quinze anos, muitas organizações ficavam discutindo o macro, e dizia-se que não botavam a mão na massa. Vamos continuar com a mão na massa, mas precisamos criar a capacidade de ter uma atuação política, no sentido grande do termo: produzir e colocar ideias na cena pública e ser capaz de defendê-las”, disse.
As ideias da Casa partem do diagnóstico de que os investimentos feitos no Rio para a Copa e a Olimpíada estarão longe de levar as diferentes zonas da capital e os municípios vizinhos a um desenvolvimento mais equitativo. Das Unidades de Polícia Pacificadora às obras viárias, quase tudo está concentrado no trecho litorâneo que vai do Centro à Barra da Tijuca, onde vivem 15% dos 12 milhões de habitantes do chamado Grande Rio. “Sessenta por cento da população mora no eixo Zona Norte–Baixada Fluminense. É evidente que o que é feito não dialoga com a demanda”, constatou Zacchi.
A Casa tem uma estrutura enxuta: os associados elegem um conselho diretor de cinco pessoas, que por sua vez indica um diretor executivo – atualmente o próprio Zacchi. Um núcleo executivo de quatro pessoas, as únicas remuneradas, toca o dia a dia. Seu coordenador é Henrique Silveira, um geógrafo de 28 anos de Duque de Caxias, na Baixada. Silveira fez o 2º grau numa escola técnica federal e queria cursar engenharia. Mudou de rumo ao frequentar um pré-vestibular comunitário: “Ali caiu a ficha de que vivemos numa sociedade muito desigual, e que a gente se posiciona por ação ou omissão.”
Uma de suas funções é atrair ativistas das 21 cidades da região metropolitana. Tarefa nada trivial, uma vez que o movimento social mimetiza a desigualdade entre a capital e sua periferia. “No Rio a opinião pública independente, crítica, é mais forte. No entorno o tecido social é mais esgarçado, tem mais clientelismo, mais autoritarismo.” Além de colocar mais gente pensando sobre a metrópole, explicou Silveira, a Casa subsidia os associados em suas reivindicações locais. Para isso, lançará neste mês o site forumrio.org, reunindo estatísticas – de violência, educação, transportes, saúde –, estudos e reportagens sobre o Grande Rio.
Em julho, por exemplo, o Fórum Grita Baixada realizou um protesto em frente à Secretaria de Segurança do Rio. Números oficiais mostram que os homicídios naquela área cresceram 25% de 2012 para 2013, contra um aumento de 16% em todo o estado. “Numa manifestação como essa, a gente não pode só pedir paz. Tem que cobrar coisas concretas. Se dizemos à autoridade que existe um descompasso na distribuição de policiais, com vazios de policiamento na Baixada, sabemos que só mudar isso não resolve o problema, mas ela não poderá dizer ‘Ah, eu também quero a paz’. Vai ter que responder com mais cautela”, disse o geógrafo.
Zacchi já esteve do outro lado desse debate. Entre 2011 e 2012, dirigiu o programa municipal UPP Social, que pretendia melhorar a qualidade dos serviços públicos nas favelas com UPPs. A experiência, que não rendeu o esperado, reforçou sua conclusão de que o Rio pode ter perdido uma oportunidade. “Não vou entender nunca por que não se estabeleceu a integração plena das favelas à cidade como o principal legado dos grandes eventos. Nem o governo estadual nem o municipal fizeram essa opção política.”
A Casa já realizou dois fóruns com os associados e ONGs “parceiras”. No último, em agosto, aprovou a Agenda Rio 2017, que propõe, entre outras coisas, um plano diretor para a região metropolitana. O terceiro encontro será no final do mês, em Nova Iguaçu, para discutir como monitorar o governador recém-eleito e convencê-lo a incorporar as propostas do grupo. “O Estado tem o mau hábito de pensar que ou você é adversário ou está cooptado. Nós queremos cobrar e ser parte da construção”, definiu Zacchi.