Bonifácio e os jacas
Memórias à venda em Paquetá
Vivi Fernandes de Lima | Edição 98, Novembro 2014
V
ende-se casa térrea de oito quartos, com 4 mil metros quadrados de área útil, bairro silencioso e vizinhança acolhedora. O quintal ocupa o quarteirão, com jardim e árvores que assistiram à passagem de muitas gerações. Alguns detalhes devem ser considerados, porém. O interessado precisa gostar de andar de barco, pois o imóvel fica na praia José Bonifácio, na ilha de Paquetá, no meio da Baía de Guanabara. Também não pode ser entusiasta de reformas, já que a construção é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1938. A fachada de linhas retas, com venezianas nas portas e janelas, deve ser preservada exatamente como foi erguida no século XIX. Como são proibidos carros na ilha, é recomendável que o comprador seja adepto de bicicletas e caminhadas.
E que não se importe com as duas placas em frente à casa, trazendo informações discrepantes. Ambas afirmam que no local morou José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro do Primeiro Reinado, o “Patriarca da Independência”. Mas uma diz que a casa serviu-lhe de prisão domiciliar de 1829 a 1831; outra, que nela o político viveu “a última fase de sua gloriosa existência”, de 1831 a 1838.
Se um visitante apontar para a divergência de dados, o novo proprietário do imóvel pode sugerir uma visita à exposição permanente da Casa de Artes de Paquetá, que desmente as duas referências. Segundo a pesquisa do centro cultural, Bonifácio se mudou para a ilha em 1829, mas não como exilado interno. Aquele foi o ano, inclusive, em que ele deixou o exílio na Europa. Foi condenado à prisão domiciliar, é verdade, mas em 1833, pelo governo regencial.
No fundo, o que vale é a certeza de que naquele lugar, batizado pelo ilustre morador de “retiro filosófico de Paquetá”, viveu o Patriarca da Independência. Mas há controvérsias. Uma das atuais proprietárias, Mileyde Ajuz Olhovetchi, tem suas dúvidas: “Eu já li uma reportagem que fala que ele nunca morou na casa. Se provarem isso, é melhor ainda. Aí a casa pode ser vendida mais facilmente.” Talvez sim. Sem Bonifácio, provavelmente a fachada não fosse tombada, as despesas com a manutenção do imóvel seriam menores, e possíveis compradores veriam mais vantagem no negócio. Faz dois anos que o imóvel, hoje sem moradores fixos, está à venda.
Que fique claro aos interessados: o desapego de Mileyde é com o vulto histórico, não com as lembranças que guarda da casa. Mileyde se recorda do grupo de jovens que se reunia em Paquetá de 1955 a 1970, mais ou menos. Era o Jacas Soçaite, uma distinta sociedade que chegou a ter mais de cinquenta membros. “Membros, não! Nem sociedade. Éramos uma turma de adolescentes”, corrige a proprietária. Tudo bem. Alguns moradores têm outras memórias, há quem diga até que se tratava de uma associação secreta. Virou lenda.
Mas de secreta não tinha nada. Da rua é possível ver as jaqueiras da turma, ainda hoje lá, no quintal da casa. Entre duas dessas árvores, o grupo amarrou uma rede de vôlei, e pronto, virou a sede do Jacas Soçaite. Mileyde cita alguns dos companheiros do Jacas, todos homens das artes: o artista plástico Mello Menezes, o ator Perry Salles e o escritor Domício Proença Filho, membro da Academia Brasileira de Letras. “A casa já era patrimônio histórico. Já o patrimônio do Jacas Soçaite era a empolgação de uma juventude que se divertia no quintal e pedalava pra lá e pra cá pela ilha”, contou Mello Menezes.
Entre as histórias do Jacas lembradas por ele, uma se passou num jogo de vôlei. Numa partida Jacas x Visitantes, o time da casa estava perdendo por dois pontos até que uma jogada espetacular cravou a bola no lado adversário. A bola quicou tão forte que voou alto, derrubando uma jaca que acabou fazendo parte da jogada: a fruta foi cortada como uma bola de vôlei levantada na medida. Ao ver o lance, o juiz Luiz Belo – que veio a se tornar o jornalista Luiz Carlos Issa – não hesitou: “Ponto duplo! Declaro empate técnico poético.” Teve confusão, claro. Mas o árbitro justificou na base da poesia: “Porque aqui na ilha só a regra da realidade não nos basta.”
Domício Proença Filho também participava dessas partidas. Além do vôlei, jogavam futebol, handebol e frescobol. “No vôlei, normalmente eu era levantador”, contou. Mantendo a linha poética, ele garante que eram todos amadores, nos dois sentidos da palavra. “Na época do Jacas Soçaite, eu conhecia todas as árvores das ruas. Acácias douradas, flamboyants, árvores frutíferas… Abricó, sapoti, abiú do Japão… Com o cheiro dos oitis navego na infância”, disse o imortal.
Assim como a ilha está na lembrança dos jacassoçaitianos, as referências a Paquetá estão presentes nos escritos de José Bonifácio, sobretudo nas correspondências que mantinha com amigos e gente da mais alta realeza. Seus manuscritos, espalhados por diversos acervos, como a Biblioteca Nacional e o Museu Imperial, comprovam que houve, sim, Paquetá em sua biografia.
Uma das referências se encontra numa carta endereçada ao marquês de Barbacena. Pela redação, vê-se o quanto a ilha e o marquês eram, digamos, íntimos do político. “Meu bom amigo, chegado de Paquetá, e achando-me bastantemente incomodado com um ataque de hemorroidas, não me é possível ir entregar, como desejava, à Sua Majestade, a Imperatriz, essa carta que me foi remetida de Paris”, escreveu Bonifácio no dia 1º de abril de 1830.
O motivo da venda da casa de Bonifácio é o mesmo de muitas famílias numerosas que se desfazem de seus bens. “A casa foi comprada pelo meu avô na década de 30. Meus avós tiveram oito filhos, cada um deles teve mais dois ou três, são muitos herdeiros”, explica Mileyde. O preço? O imóvel acaba de ser reavaliado em 2,2 milhões de reais.
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