ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
O dino está nu
Coloquem penas nesse velociraptor
Douglas Duarte | Edição 100, Janeiro 2015
“Se ele não tivesse dito que atualizaria os dinossauros, tudo bem”, reclama Maurilio Oliveira, um dos mais renomados paleoartistas brasileiros. Ele, no caso, é Colin Trevorrow, o americano que assina a direção de Jurassic World, quarto filme da franquia inaugurada em 1993 por Steven Spielberg. “E quando ele fez essa promessa, anos atrás, toda a comunidade paleontológica sentiu um bem-estar.”
As expectativas submergiram quando saiu a divulgação do filme, semanas atrás. “Garanto que no Brasil fui um dos primeiros a assistir ao trailer. Como fã, quero estar na primeira fila da primeira sessão. Mas como paleoartista, alguém cujo trabalho é traduzir em imagens a visão científica dos dinossauros, tenho sérias reservas.”
A decepção começou já na cena inicial, em que surgem os protagonistas. “Aqueles bichos correndo junto com os humanos, os raptores” – ele se refere aos bípedes esverdeados de bracinhos inúteis que trotam ao lado de um jipe de safári –, “aqueles bichos tinham penas.” Informações como essa surpreendem o leigo incauto que conhece o Mesozoico apenas por intermédio de Hollywood e ainda reluta em acreditar que dinossauros – de 60 milhões de anos atrás – nunca perseguiram homens das cavernas – de 6 milhões.
“Hoje em dia sabemos que essa espécie, bem como boa parte dos dinossauros do Jurássico e Cretáceo, era coberta de penas. Às vezes penas de voo, como das aves que vemos hoje, às vezes uma penugenzinha suave, como… a de um pintinho”, ele diz.
Dinossauros com penas não são novidade. No fim do século XIX, em rochas calcárias da Baviera, na Alemanha, começaram a ser descobertos registros de um animal batizado Archaeopteryx. Foram os primeiros fósseis de um bicho que era inegavelmente um sáurio, mas também tinha penas. Ocorre que por mais de um século o Archaeopteryx foi um ponto fora da curva, um elo perdido entre dinossauros e aves. Não se sabia em qual gaveta alocá-lo.
Tudo isso virou de ponta-cabeça nos anos 90, quando paleontólogos de todo mundo começaram a descobrir inúmeros fósseis, com qualidade impressionante, na província chinesa de Liaoning. Um cientista pode se dar por satisfeito quando encontra uma ossada quase completa. Pois em Liaoning é possível desenterrar fósseis tão detalhados que se veem registros de ossadas inteiras de pequenos lagartos e mamíferos dentro do estômago de dinossauros completos. Além de dezenas de dinossauros emplumados.
O corpo de evidências é tão forte que já está se tornando consenso na academia dizer que os dinossauros não se extinguiram, mas evoluíram e se transformaram nos pássaros de hoje. Muitas espécies deixaram de existir, sim, e isso é do jogo da evolução. Mas a distância entre um tiranossauro e um urubu é bem menor do que se pensa.
“Sei que é duro de acreditar, mas pelas descrições eles pareciam frangos grandes”, diz Maurilio Oliveira, ao abrir uma sala no Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, onde se encontram diversos retratos e esculturas de dinossauros feitos por ele. “Veja, isso é um dinossauro, o microrraptor”, mostra, colocando uma escultura sobre a mesa de trabalho.
É uma galinha magrela três vezes maior que suas primas de hoje, com garras ameaçadoras nos pés e no arremate das asas. Um penacho altaneiro adorna o cocuruto. Em vez de bico, uma mandíbula formidável com dentes capazes de fazer um belo estrago num mamífero bípede dotado de polegar opositor. “Ela dava umas planadinhas, pelo que dá pra deduzir. Bem diferente daqueles galetinhos pelados do filme, né?”
A polêmica no caso de Jurassic World é, na verdade, mais uma que permeia a relação tumultuada entre divulgação científica e cultura pop. “O brontossauro, por exemplo, não existe mais. Aliás, nunca existiu”, explica Oliveira, rindo da incredulidade do interlocutor. “Um paleontólogo pegou o crânio de um camarassauro e pôs em cima do corpo de um apatossauro da mesma região e da mesma época. Na virada do século XIX para o XX, o critério científico era importante, mas não fundamental. Eles queriam ossadas completas, impressionantes, que botassem gente dentro dos museus.” A despeito da aposentadoria compulsória que lhe concedeu a ciência, o brontossauro continuou dando as caras em obras como O Mundo Perdido e no cardápio de Fred Flintstone.
Mas por que esperar exatidão de um filme-pipoca de ficção científica? A bronca é sobretudo porque o primeiro episódio, apesar de não trazer dinossauros perfeitos, levou ao grande público boa parte do conhecimento de ponta que a paleontologia havia adquirido até então. Em comparação com ele, os demais decepcionaram.
“O primeiro Jurassic Park mostrou dinossauros inteligentes, sociais e ágeis, caçando em bando, se locomovendo meio como aves mesmo, equilibrando o peso do tronco com as caudas, bem diferentes daqueles dinossauros eretos dos filmes dos anos 40 e 50”, explica Oliveira. Parte disso se devia aos avanços tecnológicos: agora animados por computador, aos bichos se conferiam movimentos e posturas antes impensáveis. Mas também resultou da reinterpretação dos fósseis. Dinossauros vivos obviamente tinham posturas muito diferentes daquelas em que foram fossilizados – o estudo das ossadas e músculos, porém, demorou a pintar um quadro mais preciso de como eram quando vivos.
E a questão seria mais fácil se não houvesse tanta extrapolação na história – e ela vale tanto para os cientistas quanto para Hollywood. “A cor, por exemplo. A gente desenvolve critérios para estimar a cor de um dinossauro: considera-se o que ele comia, como era o ambiente… Mas saber, a gente não sabe. Pele é fossilizada sem pigmento”, diz ele, justificando aqueles matizes “cor de burro quando foge”. “Nos livros que deram origem aos filmes do Michael Crichton, tem uma personagem que diz: ‘Os dinossauros estão nos fósseis.’ E é isso: o conhecimento sobre eles está ali.”
Nesse momento, Oliveira se lembra da visita a um museu alemão, quando teve diante de si o fóssil de um arqueoptérix em toda a sua glória emplumada, bege, imóvel e meio sem graça. Lacrimeja. “É incrível. Vendo aquilo eu me emociono mais do que com a Mona Lisa.”