ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Varre que é macumba
Lixo, candomblé e media training
Paula Scarpin | Edição 101, Fevereiro 2015
Eram sete e meia da manhã quando o micro-ônibus laranja parou no topo do Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e três garis saltaram do veículo. Enquanto os colegas abriam o enorme porta-malas para pegar seus carrinhos de coleta, Alexandre Borges partiu ladeira abaixo, empunhando apenas dois sacos de lixo. Com passos ágeis, ignorou uma latinha de refrigerante na calçada e pisou desatento numa embalagem de biscoito. Só desacelerou ao avistar o que, ao longe, parecia uma refeição posta no pedestal de uma estátua. “É um amalá”, explicou, referindo-se à oferenda deixada na véspera.
“Agô!”, disse Borges, pedindo licença aos santos ao se aproximar do trabalho. Ao pé da estátua de um leão – uma das muitas esculturas de François Auguste-Hippolyte Peyrol espalhadas pela capital fluminense – jaziam uma long neck de cerveja preta, um prato de quiabo refogado no dendê e duas velas: uma no formato de uma casa, a outra, no de uma chave. “É para Xangô”, afirmou. “Ele é o pai da justiça. Provavelmente a pessoa está pedindo ajuda com o processo de um imóvel.” O gari vestiu as luvas, ensacou os dejetos com a ajuda de uma vassoura metálica e deixou o saco plástico na beirada da calçada, para que fosse recolhido pelo caminhão de lixo que passaria em seguida.
Logo adiante, na esquina seguinte – uma encruzilhada perfeita –, Borges recolheu uma oferenda para Iemanjá. O prato coberto de palmas em flor, que escondiam arroz, canjica, peixe e acaçá, já estava rodeado de moscas. A quinta-feira, 15 de janeiro, foi um dia fraco para o gari: ele recolheu apenas quatro trabalhos no percurso até o fim da ladeira. “Muita gente deve estar guardando para o dia 20, Dia de São Sebastião e Oxóssi”, especulou.
Borges é um homem alto e elegante, de unhas bem-feitas e cabelo à escovinha, raspado na parte de baixo. Seus colegas o tratam por “Emílio”, por sua semelhança com o cantor Emílio Santiago. O gari desce diariamente a avenida Edson Passos, que corta o Alto da Boa Vista. Sua função, bem específica, é recolher as oferendas encontradas naquela via. Incrustada no Parque Nacional da Tijuca, que abriga a floresta de mesmo nome, a região está entre as mais procuradas pelos praticantes cariocas de umbanda e candomblé para realizar seus rituais. Borges entende do assunto: em Nova Iguaçu, onde mora, ele é mais conhecido por Pai Alexandre de Oxóssi.
O gari ainda não havia completado três meses de contrato na Comlurb, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana, quando foi chamado à sala do gerente. O superior anunciou que já sabia que o novo funcionário era pai de santo. Escaldado pela perseguição que sofria de evangélicos dentro e fora do trabalho, Borges logo pensou que seria demitido. “Mas nada! Ele falou que o Eduardo Paes estava incomodado com as oferendas apodrecendo no Alto”, contou. O casarão da Gávea Pequena, residência oficial do prefeito, fica justamente naquele bairro. O gerente queria saber se o babalorixá se dispunha a recolher os trabalhos – tarefa que os outros garis evitavam fazer, por medo ou nojo.
Borges encarou a missão com serenidade. “Não há mal nenhum em recolher um trabalho com respeito, sendo o gari praticante ou não”, disse. Segundo ele, uma vez feito o despacho, a mensagem ao além já foi enviada – e a coleta não traz prejuízo algum, seja para o autor do pedido, seja para quem o recolhe. Pelo sim, pelo não, Borges pede licença antes de encostar na oferenda alheia.
Ao fim de um expediente menos produtivo, às vezes Alexandre Borges se envereda pelo mato para assistir aos já tradicionais rituais numa cachoeira vizinha. O espaço ganhou projeção recentemente com a implementação do Projeto Florestas Sagradas, da Secretaria de Estado do Ambiente. Proposto em 2008 pelo então secretário Carlos Minc, o plano foi engavetado – deputados evangélicos alegaram que o governo queria promover “macumbódromos” – e só saiu do papel no ano passado.
Numa placa posicionada na entrada do espaço da cachoeira – não mais do que um filete de água em tempos áridos na região Sudeste –, lê-se: “Espaço Sagrado da Curva do S.” As recomendações aos usuários do local misturam preocupações espirituais e ambientais: “Acender velas aumenta o risco de danificar as árvores e as matas de Oxóssi”; “Utilizar materiais sustentáveis para realizar oferendas protege a fertilidade do solo e a saúde deste espaço, alegrando Omulu e Intôto”. Num intervalo de meia hora naquela manhã de quinta, sete carros estacionaram em frente à placa, dos quais desembarcaram pessoas vestidas de branco trazendo suas oferendas.
Ao adentrar o espaço, o gari foi logo abordado por um morador de rua, seguido por dois cachorros: “Tá uma sujeira isso aqui. Vocês nunca mais vieram limpar!”, reclamou. Atencioso, Borges disse que não era sua responsabilidade direta, mas que levaria a queixa a seus superiores. Quando o sujeito virou as costas, ele contou: “Não posso aparecer aqui com um jornalista que ele vem dar um showzinho.”
Borges está habituado ao assédio da imprensa, que enfrenta com o mesmo cavalheirismo com que recolhe as oferendas. Naquela manhã, sugeriu que fosse filmado em ação e interpretou seu próprio papel com primor, como se estivesse num palco. “Quer que eu simule algum ritual antes de fazer a coleta?”, perguntou, voluntarioso. Pareceu intrigado ao perceber que a reportagem de piauí preferia que ele agisse como num dia normal.
Não seria a primeira encenação do gari pai de santo para as câmeras. Borges organizou certa vez uma festa de Iansã para a filmagem de um curta-metragem, com as despesas por conta da produção. Noutra ocasião, interpretou um ritual na cachoeira a pedidos da equipe do RJTV. “Foi legal, todo mundo veio postar o vídeo no meu Facebook”, contou. “Só não gostei que a Globo errou logo o nome do meu santo. Disseram que eu era filho de Oxum.”
Leia Mais