ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
A solista
Um olho na orquestra, o outro no gato
Roberto Kaz | Edição 101, Fevereiro 2015
A orquestra afina os instrumentos. O maestro entra, agradece os aplausos e empunha a batuta. A imagem do pianista, projetada no fundo do palco, mostra-o com as patas sobre o teclado. A plateia ri: o pianista é um gato. Ou melhor, uma gata.
Do riso ao aplauso, o roteiro é quase sempre o mesmo nas apresentações de CATcerto, composição para piano – a cargo de uma felina chamada Nora – e orquestra. A peça de Mindaugas Piečaitis, que estreou com um grupo de câmara da Lituânia há quase seis anos, desde então tem sido executada por ao menos vinte conjuntos, espalhados por cinco países. Foi vista 4,8 milhões de vezes no YouTube (o vídeo mais popular da Filarmônica de Berlim – tocando Mozart – teve 660 mil visualizações).
Piečaitis, professor de música lituano, de 45 anos, conheceu sua musa em 2009, por meio de um link em que ela, sentada num banquinho, tocava uma melodia com as duas patas da frente. “Já tinha visto gatos pulando sobre o teclado, mas ali havia algo diferente”, contou. Conseguiu o contato da proprietária e perguntou-lhe se havia mais vídeos como aquele. Recebeu meia hora de gravações na sua caixa de e-mail.
Para melhor organizar o material, o músico resolveu anotar todas as melodias. “Somaram cinco folhas de papel. Comecei a examinar aqueles trechos como se fossem pedaços de um quebra-cabeça, tentando perceber quais partes se conectavam”, explicou. À medida que encontrava semelhanças, juntava os fragmentos no vídeo para ver como se comportavam tocados por Nora. “Quando vi, já estava compondo.”
Foi sua primeira e única peça para orquestra. O maestro Richard Rosenberg, que a apresentou três vezes nos Estados Unidos, comparou-a aos concertos para piano de Rachmaninoff e às peças para orquestra de Dave Brubeck. Já Michael Tilson Thomas, diretor da Sinfônica de São Francisco, descreveu o CATcerto como “uma obra muito sofisticada”. A partitura foi publicada pela Edition Peters, uma importante editora musical, que também tem Bach, Beethoven e Villa-Lobos no catálogo.
Aos 10 anos, Nora é a caçula de uma casa habitada por uma professora de piano, um artista hippie de barba branca e outros seis felinos por quem ela nutre total desprezo. Juntou-se à família, da Filadélfia, em 2005, quando Betsy Alexander resolveu adotá-la num pet shop. A empatia foi instantânea. Nora passou a seguir Betsy pela casa e a acompanhar seus alunos durante as aulas. Seis meses depois, arriscou a primeira nota. “Eu estava no quarto quando ouvi o piano. Me deparei com Nora já sentada, com as patinhas em ação”, lembrou Betsy, de 58 anos. “Apenas aplaudi. Ela continuou tocando, como se eu a estivesse interrompendo. Dali em diante, não parou mais.”
Nora passou a explorar os agudos, com um toque suave e geralmente repetitivo. “Ela não gosta das notas graves”, explicou Betsy. Arriscou também improvisações a quatro mãos, em especial quando os alunos tocavam o Minueto em Sol Maior, de Bach, ou o último movimento da Nona Sinfonia, de Beethoven. Determinou, por fim, que, dentre os dois pianos da sala, o seu seria o Yamaha de meia cauda, comprado por 15 mil dólares. “Ela nunca usa o outro piano, que tem um som diferente e não reflete a imagem dela na madeira”, contou a dona.
Durante dois anos, ficou restrita a amigos e familiares a história da gata vira-lata, cinza e gorda, procedente de um gatil, que tocava piano. Até que Betsy resolveu mostrar os talentos de Nora a uma sobrinha que morava a 3 mil quilômetros da Filadélfia. Por sugestão de um aluno, publicou um vídeo no YouTube. No primeiro dia, foi visto setenta vezes. Dali a pouco, chegaria ao conhecimento de Piečaitis.
Com duração de cinco minutos, o CATcerto começa como uma típica obra para piano e orquestra. Os músicos pavimentam a base, enquanto a solista – Nora, projetada na tela – aguarda o momento de sua intervenção. A um minuto e treze segundos, ela toca seis notas melancólicas em lá menor. Cerca de um minuto depois, modula a peça para mi maior.
A cadência varia entre batidas de dois, três, quatro e seis tempos. “O gato tem seu próprio ritmo”, explicou o autor. “Os maestros que não ensaiam penam para segui-lo.” Quando conduz, Piečaitis anota na partitura os movimentos do animal (uma orelha que empina, um fio de bigode que se ouriça), para marcar os segundos que antecedem uma nota. “À diferença dos humanos, antes de tocar o gato não faz necessariamente um movimento de inspiração. Pode dar uma entrada de forma completamente imprevisível.”
Betsy acredita que Nora tenha começado a tocar piano como forma de atrair o olhar da dona. “Ela deve ter percebido que os alunos conseguiam minha atenção quando colocavam as mãos sobre as teclas. Então, de um modo muito sofisticado, imitou-os.” Crê que outros gatos, se pudessem, fariam o mesmo. “Pensei que encontraria dezenas de gatos pianistas no YouTube. Mas não. Acho que de fato ela é especial.”
Como prega a cartilha da celebridade animal, a fama de Nora gerou um site, um livro para crianças, um calendário e um sem-número de subprodutos. Betsy disse que a gata “enriqueceu sua vida”, embora não no plano material. “Se eu gostaria de tirar proveito financeiro? Claro. Mas sou professora de piano. Ganhar dinheiro não é comigo.” Anos atrás, chegou a procurar o empresário Ben Lashes, que assessora a carreira do mal-humorado Grumpy Cat (o Donald Trump dos felinos, dono de um império de marketing calcado no seu semblante fechado que, segundo um tabloide britânico, movimentou 100 milhões de dólares em 2014). Nunca recebeu resposta. “Talvez Nora esteja num nível alto demais”, justificou.
Nora foi filmada pela BBC e perfilada pela CNN, além de passar pela peneira definitiva da fama americana – as palavras cruzadas do New York Times –, mas segue com uma vida algo prosaica. Dorme dezesseis horas por dia, lambe-se, come dois potes de ração úmida (dieta que a fez perder 2 dos 8 quilos que chegou a pesar). Vez por outra, interrompe uma nota no piano para brigar com um gato laranja, de nome Max. Há quem veja, ali, um embate com o crítico.