ILUSTRAÇÃO: LOREDANO_2015
Uma segunda oportunidade
A parábola de David Carr
Graciela Mochkofsky | Edição 102, Março 2015
O relato americano por excelência é o da redenção: depois de ter afundado no abismo, o sujeito consegue se levantar à força de pura vontade. Ou seu reverso: o indivíduo chega ao topo e então despenca, estatelando-se nas profundezas.
David Carr era o narrador perfeito para essa parábola. Embora comunicasse suas ideias de modo duro e direto, inimigo dos eufemismos e dos medíocres, Carr costumava demonstrar empatia com o descaído, revelando uma inclinação conradiana a enxergar no outro one of us.
Os dois últimos textos de sua coluna semanal no New York Times, The Media Equation, foram dedicados a Brian Williams, o mais recente ídolo em desgraça do jornalismo americano, depois de uma década como âncora do noticiário noturno da NBC. Em 2003, um helicóptero militar que transportava Williams no Iraque foi derrubado por fogo inimigo. Ou pelo menos foi o que Williams contou publicamente. Mas não era verdade. Williams viajava num segundo helicóptero, tendo alcançado o helicóptero atacado só depois de uma hora.
Quando todos clamavam pelo degredo do âncora, Carr o entendia. A memória, afirmou, era elusiva. Ele próprio havia lidado com isso ao escrever, anos atrás, seu único livro – uma autobiografia –, chamado A Noite da Arma. O título se refere a uma passagem especialmente dramática em sua vida. Ele se lembra do momento em que um amigo muito próximo teria apontado uma arma contra a cabeça dele, Carr. Essa era sua recordação. Ao investigar o episódio, descobriu que a memória o havia traído e os papéis estavam invertidos: fora Carr quem ameaçara o amigo com uma pistola. “Se eu não sou capaz de contar a verdade sobre um dos piores dias da minha vida, o que dirá de todo o resto, da minha história?”, ele se perguntava.
Em defesa de Williams, comentou: “Queremos que os apresentadores de nossos telejornais estejam em todos os lugares, que sejam célebres, globetrotters, divertidos, mas que tenham pés no chão e sejam sobretudo confiáveis”, disse. “É um conjunto de atributos profissionais que ninguém reúne.”
Anteriormente, o Washington Post despedira o blogueiro Dave Weigel depois que se tornaram públicos comentários cáusticos que fez, em privado, acerca de políticos conservadores sobre os quais escrevia. Os editores do jornal alegaram que os jornalistas deveriam se manter neutros. Carr intercedeu por Weigel. Como ter uma opinião original, como se exigia de colunistas e blogueiros, e ao mesmo tempo ser neutro?
A “humanidade” de David Carr – qualidade ressaltada nos obituários que se seguiram à sua morte súbita em 12 de fevereiro – se aplicava também a jovens jornalistas com problemas. Um deles, Nick Bilton, lembrou que no pior momento da sua vida, tendo fracassado no New York Times e em seu casamento, submerso na autocompaixão de quem não vê uma saída, o veterano conversou com ele e lhe disse que iria se recuperar. Assim era a vida: cada relação, cada pessoa, inclusive cada trabalho tem seu momento, e logo depois deixa de existir.
Carr carregava sua própria experiência de redenção, e era isso que o transformava no narrador perfeito para essas histórias. Em A Noite da Arma, fez uma reportagem de sua vida. Contou dos anos do vício em cocaína, do qual foi resgatado pelo amor às gêmeas que teve com a sua traficante (ela desapareceu, as meninas terminaram sob a tutela do Estado, e Carr conseguiu recuperar a guarda das filhas depois de um tratamento de desintoxicação); da batalha vencida contra o câncer linfático; de como alimentava a família com vale-refeição do governo – e de como se tornou um dos mais admirados e influentes colunistas do maior diário do mundo.
“Eis o que eu merecia: hepatite C, uma temporada numa prisão federal, HIV, um banco gelado num parque, uma morte precoce, drogado. Eis o que tive: uma mulher inteligente e linda, três filhas adoráveis, um trabalho respeitado.”
Todo mundo merecia uma segunda oportunidade.
David Carr tinha 58 anos quando desabou na redação do New York Times, em consequência de um ataque cardíaco – tinha um câncer de pulmão descoberto pela autópsia. Era considerado um dos colunistas mais brilhantes dos Estados Unidos. Ao lamentar sua morte, Arthur Ochs Sulzberger Jr., o publisher do Times, disse que “David Carr era um dos jornalistas mais talentosos que já trabalharam no jornal”. Dean Baquet, o editor-executivo, o descreveu como “o melhor jornalista de sua geração especializado em meios de comunicação, um homem extraordinário e divertido, e um dos líderes da nossa redação”.
Não posso dizer que o tenha conhecido. Nós nos vimos em duas ocasiões. Na primeira, em 16 de junho passado, tomamos um trago – eu, uma taça de Malbec; ele, um copo de Coca-Cola – no Bar Central, na rua 48 de Nova York, frequentado por atores da Broadway e celebridades locais. Havíamos sido convidados a participar de uma mesa de debates na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, intitulada Narrating Power, sobre a relação entre imprensa e poder. Parecia sensato conversar de antemão.
Carr entrou cumprimentando a todos, como um habitué, e caminhou direto para a mesa. Não tinha o physique du rôle da autoridade que era. Alto e de ombros largos, a roupa vários números maior do que suas medidas exigiam, tinha a cabeça desproporcional ao pescoço de garça – pesada, ela tombava sobre o peito, obrigando-o a olhar para cima ao sentar-se diante de mim. Se você não o olhasse duas vezes, poderia confundi-lo com um sem-teto.
Voltamos a nos ver um mês e meio depois, em Paraty. Meu marido, meu filho de três anos e eu nos apaixonamos de imediato por Jill, sua mulher, uma loura calorosa e inteligentíssima, e nós quatro nos apaixonamos de imediato por Paraty. Não sei se David também se apaixonou pela cidade, porque não disse nada. No dia seguinte a sua chegada, porém, contratou um passeio de barco que, combinado para durar das dez da manhã às três da tarde, acabou se estendendo até o anoitecer. “é um barco de madeira barulhento que, tenho certeza, até mesmo o jovem super-herói de vocês será incapaz de destruir”, convidou-nos por e-mail, com sua característica ausência de maiúsculas.
Foi um dia maravilhoso. Conversamos, nadamos no mar, navegamos em silêncio, corremos por uma praia, jogamos pão para os peixes e bananas para uns macaquinhos alaranjados, almoçamos na ponta de uma ilha. David se comportava como um animador perfeito: tinha snacks sempre à mão, histórias para contar, ideias para que aproveitássemos mais e mais o passeio. Se todas as recordações que temos de uma pessoa que mal roçou as nossas vidas puderem se condensar numa fotografia, esta é a que guardarei dele: deitado no convés de um barquinho de madeira, as costas apoiadas em almofadões e as pernas estendidas para a frente, olhando silenciosamente o mar azul salpicado de ilhas selvagens, com uma expressão de satisfação, de tranquilidade, de gosto pela vida.
Suponho que esse desfrute da vida era o segredo (ou o ensinamento) da sua própria redenção.
Carr também acreditava numa segunda oportunidade para o jornalismo. Em suas colunas e artigos para o Times, retratava igualmente as personalidades do velho sistema, como Rupert Murdoch ou Michael Bloomberg, e as do novo, como Julian Assange ou Edward Snowden. (Carr morreu imediatamente depois de ter mediado um debate com Snowden, Glenn Greenwald e Laura Poitras sobre o documentário dirigido por ela, Citizenfour, do qual se declarou admirador.) Ocupava-se das novas ferramentas tecnológicas e linguagens à disposição dos jornalistas. Escrevia sobre liberdade de expressão, sobre a matança no Charlie Hebdo, sobre corrupção em empresas jornalísticas.
Em nosso encontro no Bar Central, ele descreveu seu típico dia de trabalho: apurar uma história, preparar um texto curto para o site, inserir um vídeo, postar nas redes sociais e, finalmente, no tempo que restava, escrever um artigo.
“Estamos entrando numa idade de ouro do jornalismo”, disse em uma de suas recentes palestras a estudantes universitários. Uma declaração extraordinária vinda de um jornalista da sua geração, que em geral chora a perda de um passado dourado. Carr dava aulas havia um ano na Universidade de Boston. Era sua primeira experiência como professor. O curso, intitulado “Press Play”, oferecia uma síntese de sua visão sobre o que chamava de “o atual futuro do jornalismo”: uma dose de inovação e outra de tradição.
Ao publicar a última coluna assinada por David Carr na semana seguinte a sua morte, o New York Times reproduziu trechos da programação do curso. Na aula “Você é o que você digita”, por exemplo, discutia como o meio era, cada vez mais, a mensagem. Para outra aula, “Novos modelos de negócio para contar histórias”, pedia que os alunos lessem um artigo publicado no Digiday – um site sobre publicidade e marketing – a respeito de como a General Electric produzia seu próprio conteúdo noticioso de alta qualidade, o que se conhece como native advertising.
Para falar sobre “Inovações narrativas”, mostrava “Reflektor”, um vídeo interativo da banda Arcade Fire, produzido com o Google. Na bibliografia do curso, incluiu também textos de narrativa tradicional, artigos e ensaios magistrais, como “The Case for Reparations”, no qual o jornalista Ta-Nehisi Coates defende uma compensação financeira para os afro-americanos pelos abusos praticados contra eles ao longo da história dos Estados Unidos, e “Pense na Lagosta”, de David Foster Wallace, sobre o dilema moral envolvido no ato de ferver as lagostas vivas em nome do prazer à mesa.
Seus escritos e discursos transmitiam um otimismo de fundo, uma esperança de ressurreição que os jornalistas americanos, em profunda crise e em grande parte desmoralizados, raramente encontram nestes dias. Carr era o grande animador da profissão. “David era nosso defensor: o melhor que tivemos e também o primeiro a argumentar publicamente, toda semana, em favor do que fazemos”, escreveu A. O. Scott, do New York Times.
Ao saber de sua morte, a redação inteira do jornal se reuniu numa cena impactante e raríssima – que só costuma ocorrer quando são anunciados os prêmios Pulitzer de jornalismo – para fazer um minuto de silêncio em seu nome.
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