ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
A maldição do 25º
Por dentro da cabeça do torcedor
Bernardo Esteves | Edição 105, Junho 2015
“Quer participar de um experimento de ressonância magnética para saber como funciona o cérebro dos torcedores?”, sugeria um convite publicado no Facebook no final de março. Ilustrado com escudos do Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco, o anúncio foi postado na página do Instituto D’Or, centro de ensino e pesquisa mantido por uma rede de hospitais do Rio de Janeiro. Dirigia-se a torcedores daqueles times, homens de 18 a 50 anos que não tivessem tatuagem na altura da nuca nem sofressem de claustrofobia ou transtornos psiquiátricos.
O idealizador do convite era Tiago Bortolini, um pesquisador gaúcho de 28 anos que torce para o Grêmio. Formado em biologia, ele se especializou em psicologia evolutiva no mestrado, quando investigou se a filiação a algum credo religioso influenciaria o comportamento altruísta. Constatou que as pessoas preferiam colaborar com outras do mesmo grupo – religiosos com religiosos, ateus com ateus. O “Amai-vos uns aos outros” funcionava melhor com quem pensava parecido. Bortolini deu continuidade à pesquisa no doutorado, só que agora estudando torcedores de futebol. Queria entender se o fato de torcer para um time predispõe o indivíduo a colaborar mais com outros entusiastas da mesma equipe, como se a moralidade humana fosse relativa.
Para identificar a base cerebral do comportamento de cooperação, Bortolini recorreu à ressonância magnética funcional, método popular entre os neurocientistas, em que o voluntário tem que se deitar numa espécie de maca e ser introduzido num túnel cilíndrico branco e apertado. A cabeça deve ficar imóvel por um longo período enquanto é exposta a um forte campo magnético gerado por uma máquina que faz um barulho ensurdecedor. “Não é qualquer um que aguenta”, afirmou o cientista. “Tem gente que entra na máquina e pede para sair.”
As pesquisas feitas com essa técnica monitoram a atividade cerebral dos voluntários enquanto eles reagem a estímulos variados e executam uma série de tarefas. No experimento idealizado pelo gaúcho, os participantes tinham que apertar com força um instrumento que lhes permitia acumular dinheiro para si, para torcedores do seu time ou para indivíduos sem equipe alguma. Quanto mais longa e intensa a pressão, maior o valor da recompensa, que ao final seria trocada por um voucher de compras numa loja esportiva.
O experimento de Bortolini durava quase quarenta minutos. Como a tarefa solicitada aos voluntários exigia um esforço manual prolongado, muitos deles apertavam a alavanca com menos afinco à medida que o tempo passava. Um participante pressionou-a com vigor para premiar os torcedores da sua equipe até o fim, mas a partir de um dado momento pareceu ter desistido dos sem-time. “Eu ia me esforçar para dar dinheiro para todo mundo”, afirmou o torcedor, entrevistado pelo pesquisador ao fim do experimento. “Quando vi que ia me cansar muito, decidi dar só um pouquinho para os outros e manter a força só para mim e pro Mengão.”
Numa tela de computador, Bortolini mostrou um gráfico colorido que destacava as áreas do cérebro com maior atividade neuronal durante o exame. Chamou a atenção para uma região que ficava especialmente ativada quando os voluntários viam um vídeo da torcida de seu time. O padrão não se repetiu enquanto eram exibidas cenas da torcida do Avaí, equipe supostamente neutra para os cariocas.
A constatação deixou o pesquisador contente, pois a área em questão está envolvida com o sentimento de pertencimento a um grupo. Essa era justamente a região que ele esperava ver mobilizada durante o comportamento de cooperação com outros torcedores do mesmo time. “Esse é o resultado mais bonito que conseguimos”, disse. “Mas por ora não sabemos o papel dessa ativação.” Bortolini e seus colaboradores ainda precisam se debruçar sobre os resultados até chegar às conclusões definitivas da pesquisa, que serão relatadas num artigo científico a ser escrito este ano.
No início de abril, faltava fazer o último dos 25 exames de ressonância magnética previstos no estudo. Mas o gaúcho estava preocupado com as sucessivas desistências e problemas técnicos. Suspeitou que estivesse sendo vítima da “maldição do 25º”, que não o deixava finalizar o trabalho experimental. Naquela tarde mesmo havia um exame agendado, mas chovera forte pela manhã e, uma hora antes do combinado, o voluntário mandou um e-mail avisando que não poderia ir.
“Esse experimento é para provar que os torcedores do Fluminense têm uma área do cérebro mais desenvolvida, não é?”, brincou o voluntário que se apresentou numa tarde de sábado. “Com certeza vai mostrar que os flamenguistas têm o cérebro atrofiado.” O tricolor, um estudante de mestrado em administração, seria o 25º participante que faltava para encerrar o estudo.
Na sala de controle, separada do aparelho de ressonância magnética por uma janela de vidro, a maldição voltou a aprontar das suas. A técnica que operava a máquina não conseguiu colocá-la em funcionamento. Mais de meia hora se passou até que o exame pudesse ser iniciado, o que atenuou a tensão de Bortolini. Mas o alívio foi passageiro: pouco depois, o vídeo exibido para o participante começou a travar. Seguiu aos trancos e barrancos, até que congelou de vez quando faltavam 2% para o final.
Frustrado, Bortolini explicou ao voluntário que não era possível aproveitar o resultado, mas que ele poderia levar o exame de ressonância para casa quando ficasse pronto. Perguntou se ele poderia voltar noutra ocasião. O tricolor carioca não se mostrou muito disposto a colaborar com o gaúcho. “Aí já vai ser mais difícil”, respondeu. Menos mal que o pesquisador, precavido, houvesse agendado um exame extra para aquela tarde. O voluntário seguinte chegou ao laboratório trazendo a mulher e o bebê de colo. A técnica teve uma premonição: “Esse é Flamengo. Agora vai.”