ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Regras para desafinar
O segundo melhor karaokê
Paula Scarpin | Edição 106, Julho 2015
Maria Vilani Maia Fu, não bastasse ser uma simpática senhora de 66 anos, baixinha, de cabelos curtos e dona de generosas bochechas, ainda se gaba por gerir aquele que é, na sua avaliação, o segundo melhor karaokê da Feira de São Cristóvão. Não é pouca coisa. A feira permanente de tradições nordestinas, organizada num grande pavilhão de cerca de 150 mil metros quadrados no bairro da Zona Norte do Rio que lhe empresta o nome, possui mais de vinte karaokês – além de restaurantes e lojinhas de todo tipo, de artesanato a literatura de cordel. Também o público é variado, reunindo nordestinos saudosos e jovens hipsters.
O principal concorrente de dona Vilani e, segundo ela, o melhor lugar para desafinar ao microfone na feira tem um jeitão de coisa quase grã-fina, considerando o entorno. Isolado com vidro fumê da incessante circulação de pessoas pelas ruas internas do pavilhão, o Bazar da Cantoria oferece aos clientes o conforto de um ar-condicionado poderoso. Pagam-se 10 reais só pela entrada.
“Aqui o público é outro”, compara dona Vilani, ao falar sobre o seu próprio estabelecimento, o Já Disse, nome que é uma espécie de homenagem. “Minha avó tinha uma cadela com um nome dificílimo, que ninguém guardava. Quando a gente perguntava, ela só respondia ‘Já disse’. Desde então decidi que, quando tivesse um comércio, ia se chamar Já Disse.” Em contraste com o Bazar da Cantoria, não há separação física entre o Já Disse e o restante da feira. Ali entra e sai quem quer, num espaço equivalente a uma garagem para dois carros, equipado com uma máquina de karaokê, três televisores de plasma, quatro caixas de som e duas geladeiras comerciais. “Às vezes alguém passa e fica pra cantar uma única música, aqui é mais livre”, ela conclui.
Na verdade, nem tão livre assim. Há quem veja no nome do karaokê uma alusão ao pulso firme da dona. Apesar de lembrar, na aparência rechonchuda, a apresentadora e cozinheira Palmirinha Onofre, Maria Vilani Maia Fu pode ser durona. O Já Disse tem regras rígidas, expostas num cartaz que a proprietária escreveu de próprio punho. Para quem chega desavisado, ela pergunta: “Leram as regras? Se aceitarem, podem ficar.” E aponta para o quadro onde estão desde o preço das canções – 4 reais por duas músicas seguidas, que devem ser pagas com antecedência e em espécie – até restrições de conduta – não falar palavrão e não sentar no colo.
Para manter em ordem o Já Disse, dona Vilani também se serve de um bloquinho de papel e de um microfone sem fio, igual ao que Madonna popularizou na turnê Blond Ambition. Além de servir para os participantes registrarem os números das músicas que desejam cantar, o bloquinho permite a dona Vilani enviar regras complementares aos clientes, por bilhetinhos.
Munida do microfone, ela anuncia cada uma das apresentações: “Hoje o Freddie Mercury não pôde vir, mas a gente vai ouvir I Want to Break Free com a dupla Edson e Natália.” E também intervém se alguma regra não for respeitada. Quando uma cliente tropeçou antes de cantar e, de microfone em punho, soltou um palavrão, dona Vilani lhe deu um puxão de orelha público. “Pra ficar aqui, tem que respeitar as regras. Se gostar, conte aos amigos; se não gostar, mande os desafetos. Deixa comigo, que eu torturo eles!” O bordão, conhecido dos habitués, provocou uma gargalhada geral.
O caso de amor de dona Vilani com karaokês é antigo. Advogada trabalhista, nos anos 90 ela frequentava as boas casas do ramo no Centro do Rio de Janeiro. Numa happy hour, em 1998, conheceu o contador José Carlos de Souza, que também batia ponto naquela região.
Souza ainda curtia a dor de um divórcio recente e subiu ao palco para cantar Amigo É pra Essas Coisas, de Aldir Blanc. Dona Vilani ajudou no dueto, interpretando a segunda voz, que oferece consolo ao amigo abandonado pela mulher. A conexão foi imediata. Na sequência, os dois já embalaram um Endless Love, sucesso de Diana Ross e Lionel Richie. Dona Vilani se orgulha de ter entoado a canção num inglês fluente e escorreito. “Eu fiz curso nos Estados Unidos, meu inglês é muito bom, e falsa modéstia é pecado.”
Havia um impedimento, contudo. A advogada era casada com um engenheiro chinês, 25 anos mais velho que ela – daí o sobrenome Fu, que ainda mantém –, e mãe de dois filhos. Conservou em segredo o relacionamento com Souza até que em setembro de 2001 os aviões sequestrados pela Al-Qaeda derrubaram as torres gêmeas, em Nova York. “Tive consciência da brevidade da vida”, explicou.
Ela e o contador foram morar juntos. Oito anos depois, aposentados, depararam com um espaço vago na Feira de São Cristóvão. Resolveram deixar de ser apenas clientes de karaokês para abrir um negócio próprio. Nascia o Já Disse. Ali a ex-advogada e o marido dividem o trabalho: ela cuida exclusivamente das fichas e do funcionamento do karaokê, enquanto ele negocia e serve as bebidas.
Numa madrugada de sexta para sábado, em junho, Souza vendia cerveja, no fundo do salão, quando um jovem frequentador veio perguntar por dona Vilani. O rapaz queria entregar a ela o papelzinho para mais uma rodada de canções, mas não a encontrava – e, de fato, já fazia um bom tempo que não se ouvia a voz da proprietária ao microfone, tampouco chegava aos clientes algum bilhete seu.
“Ela está no camarim”, disse o marido, indicando um cantinho escondido atrás das geladeiras. Pouco depois dona Vilani surgia, transformada e exuberante, com três boás coloridos e plumas no cabelo, presas por uma grande borboleta cor de prata.
A sexagenária entoou o verso What good is sitting alone in your room? ao abrir o número musical em que sentava, levantava e dava voltas numa cadeira, como Liza Minnelli ao cantar Cabaret. Os frequentadores neófitos não conseguiam conter a surpresa, empunhando iPhones às pressas para registrar o momento. Souza, acostumado com a diva, sorria discretamente no canto do salão.