ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
O antúrio foi passear
Fauna e flora na Virada Cultural
Daniela Pinheiro | Edição 106, Julho 2015
À uma e meia da tarde, duas pessoas e cinco vasinhos de plantas da família das suculentas e das cactáceas estavam instaladas num trecho diminuto no meio do Minhocão – assim é conhecido o Elevado Presidente Costa e Silva, uma aberração de concreto e asfalto de 3,4 quilômetros que, rasgando o Centro de São Paulo, permite a ligação da região central com a Zona Oeste. Se dependesse da suposta capacidade de mobilização das redes sociais, o cenário seria outro. Só no Facebook, quase 100 pessoas haviam confirmado presença no 1º Encontro de Pessoas que Levam Plantas para Passear, na última Virada Cultural paulistana, realizada no final de junho.
“Vem mais gente, com certeza”, dizia o idealizador do evento, o estudante de arquitetura João Vitor Lage. Mineiro, 22 anos, de voz doce e gestos gentis, ele contou que a ideia nasceu depois de uma visita à Casa de Vidro – antiga residência da arquiteta Lina Bo Bardi e do crítico de arte Pietro Maria Bardi, hoje transformada em museu. Chamou-lhe a atenção que todas as plantas expostas na cozinha tivessem crescido em direção ao sol. “Por que as pessoas levam cães para passear e não fazem o mesmo com as plantas, que também precisam tanto de luz natural?”, perguntou-se.
O curador das atrações da Virada no Minhocão, Felipe Morozini – um rapaz alto e magro com voz possante –, ouviu a sugestão de Lage e gostou da ideia, transformando sua proposta num evento paralelo à programação oficial. “A ideia era que as plantas ocupassem o ambiente que lhes caberá no futuro. Acreditamos num futuro Parque Minhocão”, argumentou Morozini. Na véspera da Virada, a Prefeitura cancelou as dezoito atrações no elevado, alegando falta de segurança. O passeio das plantas foi o único a ser mantido na via suspensa.
Concebido e engavetado na década de 60, durante a gestão do prefeito Faria Lima, e retomado pelo prefeito Paulo Maluf, o Minhocão foi inaugurado em 1971. À época já era alvo de debates acalorados – local perigoso, foco de poluição, intervenção urbana de gosto duvidoso –, e ainda hoje divide opiniões. O novo plano diretor da cidade idealizado pelo prefeito Fernando Haddad prevê a desativação gradual da via suspensa. Parte dos moradores quer ver o elevado no chão, outra parte torce para vê-lo coberto de plantas e convertido em área de lazer e esporte, numa versão brasileira da High Line, a linha de trem elevada transformada em área verde no Centro de Nova York.
“Levar as plantas para passear é uma ode a uma intervenção urbana mais humana, mais social”, pontificou Lage, que cultiva em casa cactos e plantas que dispensam irrigação constante. Disparado pela internet, o convite para o encontro provocou estranheza em muita gente. “Uma amiga ligou para saber se era verdade, outra duvidou que ocorresse”, disse o estudante.
À medida que planejavam o passeio, os organizadores descobriram que a iniciativa já havia sido testada alhures. Encontraram fotos de chineses andando com repolhos presos a coleiras; um holandês posando em frente a um moinho empunhando uma cordinha ligada a um vaso; uma menina cercada de cachepôs num parque.
Às duas e vinte da tarde, Lage soube que um grupo estava concentrado mais adiante. Ele e o amigo cataram seus cinco vasinhos e seguiram firmes por 200 metros, onde outros doze vasos com plantinhas variadas jaziam enfileiradas no chão. “Não falei que vinha mais gente?”, murmurou Lage, aliviado. Ao lado das plantas, um grupo de dez pessoas vestia camisetas com a frase “Deixa o verde passar” e trocava ideias sobre plantio e espécies.
De acordo com o projeto inicial, o grupo que levou suas plantas para passear iria interagir com uma performance batizada de “Véu de Asfalto”. Um homem com uma capa de 50 metros de comprimento nos ombros, confeccionada em tecido que parecia ser feito de piche e pedras, desfilava desenvolto. A certa altura, ele se deitou de barriga para baixo no chão do Minhocão.
“Maravilhoso. Vamos intervir. Cadê o diretor de arte?”, bradou um dos presentes. Na mesma hora, umas sete pessoas passaram a posicionar esteticamente os vasos ao longo da cauda da capa. Destacava-se um grande vaso de antúrios vermelhos (Anthurium Andraeanum) em meio a plantas miúdas como dedo-de-dama (Mammillaria elongata), orelha-de-coelho (Opuntia microdasys) e flor-estrela (Stapelia hirsuta).
Nessa hora, a artista plástica suíça Mona Caron apareceu com galhos de falsa-vinha (Parthenocissus tricuspidata) enrolados no topo da cabeça, qual uma fada de Sonhos de uma Noite de Verão.
O grupo teve a adesão de rapazes que chegaram com três coqueiros (Cocos nucifera). Ao longo das horas o movimento esquentou. Outra performance – não programada – cruzou o grupo dos amantes de vegetais: um unicórnio azul-celeste feito de acrílico coberto por heras deslizava sobre um carrinho de madeira puxado por figuras fantasiadas em cores cintilantes. A essa altura, uma harpista dedilhava uma sonata. “Onde há harpa, há silêncio. Essa foi a ideia: mostrar que pode haver verde e silêncio em meio à aridez do concreto”, explicou o curador Felipe Morozini.
Fotos, aplausos e uma nuvem de gás azul que saiu de um rojão encerraram o evento, que durou cerca de duas horas e reuniu umas quarenta pessoas, se tanto. “Foi um sucesso”, definiu Lage. Ficou decidido que no ano que vem, se ainda houver Minhocão, tem mais.