Severa, a proprietária da livraria é tratada pelos fregueses com um misto de admiração e temor. Dona Vanna atribui aos militares, que já haviam apreendido livros, um incêndio que consumiu a loja, em 1973. As vitrines teriam sido quebradas para o fogo se alastrar. As estantes, derrubadas. Anos depois, Golbery foi à sua mesa e pediu desculpas pelo "equívoco" FOTO: BRUNO POPPE_2015
Cerimônia do adeus
A livraria Leonardo da Vinci sobreviveu à morte do fundador, a um pedido de concordata e a um incêndio criminoso. Mas não resistiu à Amazon
Luiz Fernando Vianna | Edição 107, Agosto 2015
Na tarde do último 29 de maio, o arquiteto Antonio Mello desceu uma rampa cujo formato seus colegas de profissão identificariam como helicoidal, mas que também pode ser reconhecida pela locução “em caracol”. Deixou 4 metros acima o barulho das obras e das pessoas que, em dias úteis como aquela sexta-feira, movimentam a avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro. Chegou ao subsolo do Edifício Marquês do Herval e, como faz com frequência há quase cinquenta de seus 70 anos, abriu a porta que dá acesso às salas da livraria Leonardo da Vinci.
Mello escolheu vários volumes, entre eles uma edição francesa das peças de Victor Hugo. Dirigiu-se à dona da loja, Vanna* Piraccini – que todos conhecem por dona Vanna – e disse que fazia questão de pagar o preço cheio, sem desconto. Desprezava, portanto, aquilo que atraía outros clientes: a liquidação anunciada na véspera, quando um texto no jornal O Globo informou que a Leonardo da Vinci estava prestes a encerrar 63 anos de história. “Deu vontade de chorar. As pessoas pareciam abutres comprando livros”, disse. “Fui à mesa de dona Vanna e ofereci 100 mil reais para ajudar. Falei que podia virar sócio. Mas ela só disse: ‘Não, meu filho, não.’”
A angústia do arquiteto é semelhante à de escritores, historiadores e outros devotos dos livros. A Da Vinci, como costuma ser tratada, fez a cabeça e a biblioteca de muitos. Sua marca sempre foram os títulos importados, e neste ramo ela se firmou como a mais importante do país. Até que, em 1995, a Amazon começou a vender livros pela internet. Para a livraria, foi o início do fim do que os capitalistas hoje chamam “modelo de negócio”.
A situação atual da Da Vinci não se resolveria com 100 mil reais. O faturamento, que vem encolhendo nos últimos anos, caiu de 3 milhões de reais em 2013 para 2,7 milhões em 2014. É verdade que, com exceção de um empréstimo de 50 mil reais contraído com o Banco do Brasil e cujas parcelas vêm sendo pagas, não há dívidas. Mas também não há retomada de crescimento no horizonte. Antes que fosse tarde demais, Milena Piraccini Duchiade, filha de dona Vanna e há dezoito anos gerente da livraria, decidiu: se até setembro ninguém fizer uma proposta satisfatória, as portas de vidro do estabelecimento vão fechar.
Ao lado de uma delas está afixado o poema “Livraria”, que Carlos Drummond de Andrade, seu mais célebre freguês, publicou em As Impurezas do Branco, de 1973. Diz a primeira das quatro estrofes: “Ao termo da espiral/que disfarça o caminho/com espadanas de fonte/e ao peso do concreto/de vinte pavimentos,/a loja subterrânea/expõe os seus tesouros/como se os defendesse/de fomes apressadas.”
Nos salões subterrâneos, antes que as fomes apressadas tivessem triunfado, Drummond selecionava livros, às vezes ao lado da amante, Lygia Fernandes. Dona Vanna lhe servia café com rum enquanto falavam de literatura. Guimarães Rosa descobria as obras dos místicos George Gurdjieff e René Guénon. O sociólogo francês Edgar Morin sentava para conversar com a anfitriã. O historiador alemão-americano Peter Gay, quando visitou o Brasil para lançar sua biografia de Freud, disse que era a melhor livraria que já conhecera na vida.
Para entender o que foi a Da Vinci, convém saber quem é Vanna* Piraccini, hoje com 89 anos. Se ela vendesse os direitos de sua vida para um estúdio de Hollywood, talvez a livraria não precisasse fechar.
Vanna nasceu em Bolonha, em 1926, filha de mãe romena e pai italiano, o que lhe valeu dupla cidadania. Desejando ser independente da família, casou-se aos 18 anos com um jovem a quem não amava. O ditador Ion Antonescu levara o país a se aliar aos nazistas na Segunda Guerra e Vanna estava do outro lado. Chegou a participar da Juventude Comunista e, logo após a guerra, atuou como voluntária na reconstrução de uma estrada de ferro na Iugoslávia socialista do marechal Tito.
Em 1948, a Romênia, então dominada pela União Soviética, estava economicamente destruída. Vanna resolveu ir para Roma, onde ficou num campo da IRO (Organização Internacional de Refugiados, na sigla em inglês). Lá, apaixonou-se pelo advogado romeno Andrei Duchiade, que, cinco anos mais velho, saíra clandestinamente de seu país – fuga que lhe custou a condição de apátrida até, anos depois, naturalizar-se brasileiro. Um grave acidente de bicicleta na adolescência deixou-o com uma perna menor do que a outra, e por isso não lutou na guerra.
Antes da viagem a Roma, Vanna já manifestara ao marido o desejo de se separar, mas ele não aceitava. Duchiade foi para Paris, e ela partiu em seguida. Vanna matriculou-se na faculdade de letras e belas-artes da Sorbonne, dando sequência aos estudos iniciados na Universidade de Bucareste. Certo dia, o marido, que também estava em Paris, aguardou Duchiade num ponto da Sorbonne. Estava armado. O tiro feriu o rival no braço esquerdo, perto do coração. Vanna não presenciou a cena. Assustada, mudou-se temporariamente para Londres, onde trabalhou como babá. (Em 1994, caminhando com a neta Joana em frente à Catedral de Notre Dame, em Paris, Vanna reencontrou por acaso o ex-marido. Ele se tornara psicanalista lacaniano.)
Duchiade emigrou para o Brasil em 1950 trazido por um primo seu, Trajan Coltescu, adido cultural romeno em Paris que se casara com Cordélia de Magalhães Castro, uma brasileira da “estirpe niteroiense” (palavras de Vanna). Coltescu decidira abrir uma livraria ao lado do Teatro Copacabana, nos fundos do Copacabana Palace, e chamou o primo para ajudá-lo. Dois anos depois, Duchiade voltou de navio a Paris para resgatar a amada, uma jovem de olhos castanhos, cabelo louro acobreado e inteligência tão intensa quanto sua beleza.
Em 1952, o casal Vanna e Andrei – que nunca oficializou o casamento, pois à época não havia divórcio – resolveu ter uma livraria própria. A sala ficava no 18º andar do número 446 da avenida Presidente Vargas, no Centro. Comemoravam-se os 500 anos de nascimento de Leonardo da Vinci, por quem Vanna tinha fascínio desde os tempos de colégio. Ela batizou a livraria, e Duchiade criou a logomarca – jamais alterada – com o nome do gênio renascentista em letras góticas.
Em busca de um endereço mais acessível, os dois descobriram em 1956 uma sala no subsolo do recém-inaugurado Edifício Marquês do Herval, projeto ousado dos três irmãos de sobrenome Roberto – Marcelo, Milton e Maurício. Por causa das fachadas desalinhadas, o prédio ganhou do humor carioca o apelido de “Tem Nego Bebo Aí”, título de marchinha que fez sucesso no Carnaval de 1955, composta por Mirabeau Pinheiro e Airton Amorim, gravada por Carmen Costa. Um dos destaques do projeto, brises móveis nas janelas para ventilação natural das salas, deu lugar, a partir de 1965, a aparelhos de ar-condicionado.
Era Vanna quem cuidava da escolha dos títulos importados, apenas franceses naqueles primeiros anos. Na década seguinte já estava importando ingleses, italianos, alemães. Passou a viajar à Europa pelo menos uma vez por ano, a fim de ver os livros, e não apenas selecioná-los pelos catálogos das editoras.
“Não entrou um livro na Leonardo da Vinci que não tenha sido escolhido por nós”, ela se orgulha de dizer a seus dois filhos e aos clientes. “Trabalho de livreiro não é pedir cinquenta exemplares de um livro. É pedir um de um, dois de outro, como se fosse uma biblioteca”, contou a primogênita Milena, irmã de Florin, dois anos mais novo que ela.
Duchiade era uma “figura sartriana”, na observação do jornalista Sérgio Augusto, que se tornou freguês em 1962, aos 20 anos. “Sério, de óculos, ficava numa zona de sombra, acho que cuidando da contabilidade.” Cuidando mal, como se provaria em 1965, quando ele morreu. Após fracassar na edição de uma coleção de livros infantis, a Da Vinci estava em concordata, acossada pelos bancos.
Ao ficar viúva, Vanna tinha 39 anos, uma filha de 11 e um filho de 9; a mãe morava na Itália e o restante dos parentes na Romênia. Enxugou as lágrimas e o amor-próprio, pediu dinheiro à mãe, pegou empréstimo com um cliente (o diplomata Raul Conrado), fez valer a credibilidade que conquistara com os fornecedores estrangeiros, passou a trabalhar de manhã à noite e, assim, ressuscitou a Da Vinci. Foi a primeira vez, mas não seria a última.
O descompasso de Duchiade com a realidade lhe tirou a vida aos 44 anos. Apicultor iniciante, leu numa revista alemã de divulgação científica que veneno de abelha podia prevenir contra o câncer. Na criação que mantinha em seu sítio, em Nova Friburgo (região serrana do Rio de Janeiro), certa feita resolveu entrar sem luvas, só com o macacão que parece um escafandro. Foi picado por um enxame de abelhas, mas o antígeno estimulou a produção de anticorpos. Duas semanas depois, porém, no dia 1º de junho, repetiu a imprudência. Teve um choque anafilático que a falta de assistência médica imediata tornou fatal.
Nascia aí “dona Vanna”, tratada por funcionários e fregueses com um misto de admiração e temor, dado seu “temperamento afirmativo”, no dizer eufemístico de um cliente. “Rude”, “séria”, “mal-humorada” e “enérgica” foram adjetivos que coletei, em meio a vários positivos. É célebre sua maneira de anunciar por telefone que uma encomenda está disponível: “Aqui é da livraria Leonardo da Vinci. Seu livro acaba de chegar.” E pá! Encerra a ligação.
“Não sou rude”, defendeu-se numa conversa ocorrida em junho, seu olhar demonstrando que não perdeu a contundência apesar da passagem do tempo. “Se uma pessoa é arredia a qualquer contato, a gente logo se fecha. O que será que ela tem? Qual é a problemática dela?” O inferno seriam os outros.
Seu humor pode ser muito cruel, como quando um caseiro lhe telefonou para dizer que o sítio de Nova Friburgo fora assaltado. “E os cachorros, o que fizeram?”, perguntou ela, em voz alta, na livraria. “Nada? Então, manda matar.”
“Ela é uma pessoa dura porque a vida a fez dura”, disse a filha. “Se a vida está pegando fogo, metafórica ou literalmente, não dá para ficar de nhenhenhém, dizendo ‘Filhinho…’. Ou enfrenta ou enfrenta.”
Além da concordata e da morte do marido, dona Vanna precisou enfrentar a antipatia que o regime militar lhe dedicava. Não que a Da Vinci se recusasse a vender obras de autores conservadores, como o teórico racista Arthur de Gobineau. Mas os livros marxistas, de editoras francesas como Maspero e Éditions Sociales, eram exibidos logo na primeira mesa à esquerda de quem entrava. As ofertas fascinavam jovens como o jornalista Fernando Gabeira, que em 1969 participou do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick.
“Mas não posso culpar a livraria pelas besteiras que fiz”, disse, com ironia. Ele costumava ir lá enquanto esperava começarem as manifestações contra a ditadura na avenida Rio Branco – onde também trabalhava, no Jornal do Brasil. “A Leonardo da Vinci era um centro de cultura.”
E de política, mas sem sectarismo. De Carlos Lacerda a Glauber Rocha, de Gustavo Corção a Alceu Amoroso Lima, o arco de intelectuais que visitavam as instalações de dona Vanna era vasto. “Direita, esquerda, seja o que quiser. Os livros dão as opções para você saber o seu caminho. Essa sempre foi a política da livraria. Mas eu sou de esquerda. Acho que o mundo tem que ser da igualdade”, afirmou a proprietária.
Agentes do regime militar passaram a aparecer nos horários de funcionamento e fora deles. Abriam caixas e levavam livros para serem avaliados. Os de capa vermelha sempre eram escolhidos. Nem um volume sobre os irmãos Marx, comediantes americanos, foi poupado. Dona Vanna se sentia vigiada. Um policial foi a Nova Friburgo e perguntou aos trabalhadores da região se ela os presenteava com obras subversivas. A ditadura sabia que mercadorias da Da Vinci eram entregues pela proprietária e pelo padre Bruno Trombetta a detentos e detentas dos presídios da Ilha Grande e de Bangu. “Tinham uma fixação pelo comunismo. Houve uma vez em que quebraram a vitrine da livraria e gritaram: ‘Russa comunista!’ Nem russa, nem comunista. Erraram nas duas”, recordou, divertida.
Dona Vanna chegava a afrontar os militares. Um dia, um oficial foi à Da Vinci apenas para comprar livros: “Coronel, eu soube que o senhor está querendo sumir com meus clientes.” Já na década de 70, deu uma bronca no poderoso general Golbery do Couto e Silva (chefe da Casa Civil nos governos Geisel e Figueiredo). Ele telefonou reclamando do atraso de uma obra que encomendara. “Por que o senhor não dá um jeito e libera os livros que estão presos na alfândega?”
Risco maior correu ao franquear uma sala do depósito, no 3º andar do edifício, para que o professor de história Manoel Maurício de Albuquerque, então uma referência para jovens de esquerda, desse um curso de marxismo. As lições se pretendiam clandestinas, mas eram do conhecimento de muita gente.
O cerco se fechou em 6 de dezembro de 1973, uma quinta-feira. Um incêndio iniciado na boate Tropicália, do outro lado do corredor, alcançou a livraria e a consumiu. Bombeiros levaram dona Vanna para a Rio Branco e a obrigaram a aguardar o desenlace. Seu filho quis romper o cordão montado pela polícia, foi agredido e encaminhado a uma delegacia. Ela soube por um coronel bombeiro que a loja estava calcinada. O marceneiro João Correia de Andrade, de 58 anos, que trabalhava no local, morreu. As chamas só pouparam um abridor de páginas feito em marfim.
Ela tem convicção de que o incêndio foi criminoso. As vitrines teriam sido quebradas para o fogo atingir os livros. As prateleiras, propositalmente derrubadas. Contou que, anos depois, Golbery foi à sua mesa e pediu desculpas pelo “equívoco”. O retrospecto de atentados já registrava a explosão de uma bomba, em 1968, na agência de classificados do jornal Correio da Manhã, no mesmo Marquês do Herval. E com um incêndio, em 1970, na editora Civilização Brasileira.
Dona Vanna partiu para a segunda ressurreição da Leonardo da Vinci. Pôs para funcionar seu lema de vida, tirado de um provérbio japonês: “Cair nove vezes, levantar dez.” Transferiu-se provisoriamente para uma pequena sala da rua da Ajuda (então rua Melvin Jones), travessa contígua à Rio Branco. Voltou a usar o crédito que tinha com os fornecedores estrangeiros e recebeu remessas em consignação. Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica no Jornal do Brasil instando os fregueses da livraria que tinham contas em aberto a pagar o que recordassem dever.
Victor Arruda, então um bem-sucedido operador do mercado financeiro e mais tarde galerista e pintor, leu a crônica, passou no banco, raspou suas economias e as entregou nas mãos de dona Vanna. Combinou ser reembolsado, aos poucos, em livros. “Nunca se esqueça do Victor Arruda” é uma frase que Milena já ouviu várias vezes da mãe.
“Os livros que adquiri lá mudaram minha vida. Se não tivesse feito aquilo, o que teria acontecido comigo? Hoje, que estou mais velho, fico feliz em constatar que escolhi um bom caminho”, emocionou-se o artista, de 68 anos, ao saber que permanece alvo de gratidão.
Entre os escombros estavam obras recém-importadas de história do Brasil, escritas por viajantes como Hans Staden. Pouco tempo antes, espantada com o mau estado do carro que a filha dirigia, a mãe de Vanna, de passagem pelo Rio, lhe dera 10 mil dólares para comprar um novo. O dinheiro foi transformado nos livros raros e, pouco depois, em cinzas. “Foi tudo para o brejo”, resume ela, fazendo vibrar o “r” que mantém vivo o sotaque romeno.
A família de dona Vanna tinha uma casa em Florença, “grande luxo de uma velha aristocracia decadente”. E uma propriedade perto do mar Adriático. Negociou a parte que lhe cabia e investiu no negócio. “Foi tudo para a Leonardo da Vinci. Está tudo nos livros”, disse, erguendo a mão direita num gesto que simulava envolver os volumes nas estantes. Ela, que mora sozinha num apartamento de Copacabana, continua pegando táxi quase todas as tardes para ir trabalhar.
Nos últimos três anos, depois que vendeu um espaço do outro lado do corredor, a Leonardo da Vinci passou a ser um conjunto de quatro salas contíguas, somando 400 metros quadrados. A principal, que dá acesso à livraria, é a segunda à esquerda de quem desce a rampa – ou os 55 degraus que não constavam do projeto original e foram instalados para oferecer uma alternativa mais segura. Nessa loja são feitos os pagamentos. Dona Vanna ficava ali até janeiro de 1997, quando se transferiu para a terceira sala, na qual ocupa uma mesa ampla que serve de suporte para as pilhas de livros. Sua filha passou a gerenciar a Da Vinci.
Milena não aparenta 61 anos. Alta e magra, modela a saúde na prática do montanhismo. Prefere caminhar a escalar, mas já venceu o costão do Pão de Açúcar. Como trabalha todo sábado, é aos domingos que se embrenha na Floresta da Tijuca ou em outras veredas, às vezes em missões de reflorestamento. Usa óculos de aros finos, atrás dos quais seus olhos piscam muito enquanto ela fala. E fala bastante, como enfatiza durante a conversa, mais resignada do que constrangida com a própria loquacidade. É capaz de metralhar palavras em mais quatro línguas: inglês, francês, italiano e romeno. Pontua frases com um “meu amigo”, que pode soar carinhoso ou incomodar o interlocutor, como o “meu querido” de Dilma Rousseff. Alterna satisfações consigo mesma (“Mas elogio em boca própria é vitupério”) com quedas de autoestima (“Não sou uma pessoa interessante”).
Ela se formou em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuou como pediatra e se radicou na epidemiologia. Por treze anos deu aulas na Fundação Oswaldo Cruz, centro de excelência em pesquisas sobre saúde pública e notório endereço de médicos de esquerda. Acredita ter escolhido a profissão para tentar entender a morte do pai. Virou adulta na adolescência, o que estreitou sua paciência para sentimentalismos. Um cliente a definiu como “áspera”, mas há quem veja na substituição de dona Vanna por ela um avanço significativo no campo da diplomacia.
“Meu amigo, quem fica órfão cedo tem duas opções: virar vítima ou herói. Todos os super-heróis são órfãos: Super-Homem, Homem-Aranha, Batman… Fui por esse caminho. O custo é alto, mas não me queixo. Não a esta altura”, analisa.
Tivesse virado vítima, poderia lamentar ter sido registrada como “filha natural” – Duchiade e Vanna nunca se casaram no papel –, uma condição que na época poderia estigmatizar as crianças. Prefere exaltar legados mais concretos transmitidos pelos pais, como o prazer de ler. “O que eles me ensinaram passei para os meus filhos: ler qualquer coisa. Quadrinhos, fotonovela, autoajuda. Deixa os meninos lerem. Leitura precisa ser algo prazeroso.”
Da mãe herdou ainda a inclinação socialista. No colégio já era representante de turma. Na universidade, foi escolhida porta-voz dos alunos na congregação, perante todos os chefes de departamento. Em 1974, namorando* com o também universitário Clóvis Gentil de Magalhães Costa, uniu-se a ele no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (data da captura de Che Guevara na Bolívia). O MR-8 – que estivera à frente de ações como o sequestro do embaixador americano –, após ser praticamente dizimado, trocara a luta armada pela defesa das “liberdades democráticas”, como então se dizia.
Em 1982, quando nasceu sua filha, Milena saiu da organização – depois ela teve um menino. Aninhado no PMDB, o MR-8 se tornara a infantaria do futuro governador Orestes Quércia. “Quando o 8 virou carrapato do poder, saí. Mas não cuspo no prato em que comi. Entrei para o 8 porque achei que era o que tinha de fazer”, disse a ex-militante.
O desligamento não se deu sem um susto no ano anterior. A polícia invadiu o sítio da família em Nova Friburgo, acreditando que o local servira às reuniões em que o MR-8 teria tramado o atentado do Riocentro. Como se sabe, foram militares que planejaram jogar bombas durante um show realizado na noite de 30 de abril de 1981, véspera do Dia do Trabalhador. Uma explodiu no carro que a conduzia, matando um sargento e ferindo um capitão.
Sem o conhecimento da irmã e da mãe, Florin Duchiade usava uma Kombi da livraria para transportar de São Paulo até o Rio papéis do MR-8, como exemplares do jornal Hora do Povo – que não era clandestino – e panfletos. Eles ficavam armazenados numa das casas da propriedade, conhecida como Sítio dos Abacateiros, onde os militantes se reuniam. Um tanto anacronicamente, chegaram a improvisar um curso de tiro no local, o que pode ter alertado a vizinhança. Policiais prenderam o caseiro na sede do imóvel e o levaram para interrogatório (não foi torturado) no Rio, esquecendo-se de vasculhar os outros ambientes. A incompetência deles permitiu que Milena, então morando em São Paulo, ao chegar a Nova Friburgo incumbisse outro caseiro de queimar todos os papéis que encontrasse no aparelho dos Abacateiros. Com isso, a Leonardo da Vinci escapou de ser arrolada num turbulento inquérito. O caçula, que trabalhou na livraria, hoje mora no sítio e vende produtos naturais.
Logo que se tornou gerente, em 1997, a médica socialista anunciou aos funcionários que eles passariam a ganhar cestas básicas. Depois que a filha de um empregado morreu de úlcera, começou a pagar integralmente planos de saúde para todos. A situação já estava ruim em 2008, mas ela distribuiu bônus após receber considerável soma de uma universidade de Angola cuja biblioteca fora montada pela Da Vinci.
Esse “modelo de gestão” não passaria pelo crivo de nenhuma empresa de consultoria financeira. Mas foi assim que dona Vanna e sua filha formaram livreiros competentes e leais, alguns com mais de trinta anos na casa. A fundadora os chama de “nossa gente”.
É o caso de Renato Alexandre, que começou como entregador em 1983, aos 20 anos. Hoje, é o mais experiente dos atendentes. Dona Vanna lhe ensinou uma profissão e lhe emprestou dinheiro a juros baixos para que comprasse um imóvel. O possível fechamento da livraria, disse Alexandre, “é o mesmo que perder uma pessoa querida”. E assegurou que não continuará trabalhando no ramo. “Ninguém vai pagar o que eu ganho aqui. Não fiz faculdade, não tenho perfil para livraria de shopping. Vou ser motorista ou abrir um negócio.”
Sua amiga Gilda de Almeida Lucas pensa o mesmo. Aos 16 anos, em 1990, anotava recados para dona Vanna. Teve cursos de inglês e francês pagos pela Da Vinci, além de empréstimo para a casa própria. Cursou história na UFRJ pesquisando nos livros que seu emprego lhe franqueava. Sua função é atender pessoas jurídicas, professores e estudantes que usam recursos de bolsas de pesquisa para fazer suas compras. “Quero ser professora de história.”
Dona Vanna costumava perguntar aos funcionários com alguns anos de serviço se queriam ajuda para adquirir casa ou carro. Quando completou sete anos de casa, Sergio Dortas pediu uma viagem à Europa. Ele fora contratado em 1965, o tumultuado período da morte de Duchiade e da concordata. Tinha, então, 15 anos e vendia cocada e linguiça nas ruas para ajudar o pai motorista e a mãe costureira. Pela manhã, lavava o chão da livraria e passava pano nas estantes. À tarde, fazia entregas. À noite, ia à escola, exigência da patroa. Como saía muito tarde para retornar ao subúrbio de Anchieta, dormia numa das salas usadas como depósito, no 3º andar do Marquês do Herval. Só ia embora aos sábados.
Tornou-se uma espécie de secretário de dona Vanna. Seu “bagrinho”, como ele diz. Ela o matriculou no curso de francês, mandava-o cuidar dos pés no Dr. Scholl’s e dizia que ele não podia se casar até dar um rumo à vida. Em 1972 ele viajou à Europa, acompanhando-a em encontros com editores holandeses, italianos e franceses. A livreira lhe conseguiu um estágio de um mês na maior editora da França, a Hachette. Dortas voltou com grande preparo, tanto que logo se incomodou por não ter mais como ascender. Em 1974, depois de ter escapado por pouco do incêndio, irritou-se quando dona Vanna ordenou que cortasse o cabelo black power. Brigaram e ele foi demitido. Ambos choraram.
“Ela dizia que eu era insolente. Eu nem sabia o que significava, mas era mesmo”, disse Dortas na noite do último sábado de junho, no playground do prédio onde mora, no bairro do Jardim Botânico. O ex-funcionário se orgulha de ter construído um bom patrimônio após criar uma editora de títulos de medicina. “Ela me ensinou como comer, sentar à mesa, me vestir. Tenho por ela amor e gratidão. Por mais que eu agradeça, vai ser pouco.”
Dias depois de nosso encontro, Dortas foi à Da Vinci contar que acabara de voltar de Bucareste, cidade que sempre sonhara conhecer por influência de dona Vanna. Convidada a ir junto com ele, ela recusara por causa da saúde. Serginho, como é conhecido, chorou ao rever a livraria. “Se for para chorar, não precisa vir”, brincou Milena, à sua maneira.
Outros ex-vendedores tiveram sucesso em suas carreiras, como o antropólogo Luiz Felipe Baêta Neves, o psicanalista Manoel Barros da Motta e o sociólogo Severino Cabral, este um capixaba que burilou sua formação marxista nas estantes da Da Vinci e também precisou dormir nas salas de depósito.
Jorge Chaves manteve-se no ramo e toca uma pequena livraria na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Largou o estresse do mercado financeiro em 1980 para trabalhar na Da Vinci, da qual já era cliente. Assim como Dortas, conquistou a confiança da proprietária, cujo tino comercial passou a admirar – para os padrões da época e da loja. Quando ele sugeriu comprar três exemplares de um livro do romeno Mircea Eliade, a chefe mandou pedir dez. Rapidamente se esgotaram. Sugeriu dez de Lógica do Sentido, do francês Gilles Deleuze, e ouviu que deveriam ser cinquenta. Outro acerto.
“A Da Vinci era uma biblioteca de Babel, uma livraria multicultural com a cara de dona Vanna. Às seis da manhã, ela já estava lendo os jornais. E sabia de tudo, me ensinou a estudar os livros, não apenas lê-los”, disse Chaves, que saiu em 1990 também por não poder ascender. Dona Vanna o ajudou a abrir uma livraria em seguida, na Rio Branco, mas não deu certo. Eram os tempos do Collor e das cadernetas de poupança confiscadas.
Os clientes fiéis também faziam parte da “nossa gente”. Conversavam com a dona da livraria até sobre problemas sentimentais. E ela os deixava comprar a longuíssimo prazo. A cada visita, eles abatiam parte do que deviam e adquiriam mais livros. Tudo isso feito sem cobrança de juros, mesmo em períodos de inflação alta. “Nunca cobramos juros de ninguém. Acho muito feio”, justificou dona Vanna.
Especialmente beneficiados por esse costume nada capitalista eram os estudantes universitários, cuja sede de ler contrastava com a aridez de fundos. Sérgio Augusto, que estudava na Faculdade Nacional de Filosofia (extinta pela ditadura em 1968), abastecia-se de literatura francesa e publicações sobre cinema. “Eu tive, com o perdão da palavra, uma epifania quando vi na Cinemateca do MAM [Museu de Arte Moderna], pela primeira vez, um exemplar dos Cahiers du Cinéma. Na contracapa tinha o carimbo da Da Vinci. Foi aí que tudo começou.”
Cada freguês ganhava uma conta – e estima-se que tenham sido abertas 4 mil. A conta recebia um número, resultado de uma combinação entre algarismos supostamente fácil de ser lembrada pelo titular, como uma fração da data de nascimento e de seu endereço. Mas a maioria esquecia. Sérgio Augusto até hoje sabe a sua: 1403. A do poeta Antonio Cicero, que permanece aberta, é 2468. O poema “A cidade e os livros”, publicado em 2002 e que está afixado na porta da sala 4 do subsolo, é dedicado a dona Vanna. “Para quem estudava filosofia, como eu, era, de longe, a melhor livraria do Rio. Quando entrei na universidade, em 1968, estavam no auge o estruturalismo, os autores franceses e a Leonardo da Vinci”, recorda.
Os três itens citados por Cicero marcaram o teórico de literatura Luiz Costa Lima, hoje professor emérito da PUC-RJ. Cassado da Universidade do Recife em 1964, mudou-se para o Rio e logo descobriu a Da Vinci. “Era um centro de informação no nosso grande país pequeno. Paraíso de cultura e, ao mesmo tempo, um lugar onde supúnhamos, um tanto ingenuamente, estar seguros”, contou em seu apartamento na Gávea, em cujas estantes permanecem muitas obras compradas na livraria naquela época.
Em 1966, com o apoio de um colega, Costa Lima venceu a resistência ao estruturalismo e passou a ser um leitor sistemático de Claude Lévi-Strauss – além de Deleuze, Michel Foucault, Louis Althusser e outros franceses que então pautavam reflexões e debates. Foi sua grande virada. “Minha bagagem estruturalista foi construída na Da Vinci. Toda a bibliografia de Lévi-Strauss eu adquiri lá.”
Costa Lima é um dos muitos intelectuais não cariocas que foram acolhidos pelo estabelecimento de dona Vanna. O psicanalista Chaim Samuel Katz chegou ao Rio também em 1964, vindo de Belo Horizonte, e na Da Vinci se abasteceu de obras de filosofia, de todas as edições de Freud em francês e dos livros de Lacan, para citar itens que lhe foram fundamentais. Outro mineiro, o historiador José Murilo de Carvalho, comprava títulos de sua área em inglês e francês. O mesmo fazia o também historiador Evaldo Cabral de Mello, que se recorda de uma compra em especial: a obra completa, em doze volumes, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset. Em 2015, embora já tendo vendido 1 600 itens de sua biblioteca para o sebo Berinjela – que fica em frente à Da Vinci, também no subsolo – e dizendo não querer comprar mais nada, Cabral de Mello adquiriu na Da Vinci uma edição bilíngue (inglês–francês) de todas as peças de Shakespeare.
“Em relação a outras livrarias que importam títulos estrangeiros, a Leonardo da Vinci é incomparável”, disse o historiador. “A diferença entre a Da Vinci e as livrarias que temos hoje é como entre o céu e o inferno”, endossou Costa Lima.
Essas afirmações relativizam a certeza de que, havendo Amazon e demais importadoras online, não há por que existir uma loja física com esse perfil. Para Antonio Cicero, um estabelecimento como a Da Vinci “não pode ser totalmente substituído pela internet, pois lá o leitor se depara não apenas com os livros que já estava procurando, mas com outros cuja existência desconhecia e que podem vir a ser cruciais para o assunto que lhe interessa”.
O historiador Marcos Alvito percebeu isso em 1984, quando prestou concurso para professor de história antiga e medieval na Universidade Federal Fluminense. O ponto sorteado foram as invasões bárbaras do século IX, e ele só tinha sobre o tema informações tiradas do ortodoxo A Sociedade Feudal, de Marc Bloch. A 24 horas da prova, foi à Da Vinci em busca de outra visão e se deparou com Guerreiros e Camponeses, de Georges Duby. Estudou o livro como pôde e passou na prova. “A Amazon não resolveria meu problema, porque pude folhear o livro, constatar que era o que eu precisava e comprar na hora”, disse.
Usuário da internet desde os primórdios da rede no Brasil e escarafunchador de sites, o antropólogo Hermano Vianna deve à Da Vinci muito de sua formação – além do lançamento em francês, no ano passado, de seu O Mistério do Samba, pois foi Milena quem lhe apresentou o tradutor e apontou os caminhos para uma edição na França. “Não conheço outra livraria tão cosmopolita. Tente comprar livros em francês em Londres ou na imensa Seminary Co-op, de Chicago. Ou livros em inglês em Paris. Não há prateleiras tão variadas”, disse.
Sabiam disso fregueses que não estão mais aqui, como o empresário Roberto Marinho, que recebia em casa as novidades sobre arte, escolhia o que desejava e devolvia o restante. E o roqueiro Renato Russo, consumidor de literatura em língua inglesa.
“O Brasil está pirando”, pensou o norte-americano Benjamin Moser ao saber do possível fechamento da Leonardo da Vinci. Em 6 de junho, ele recordou, em artigo publicado no jornal O Globo, como a livraria o salvou na década de 90, quando aportou no Rio, mal conhecendo a língua portuguesa e a literatura brasileira. Com Clarice Lispector ele já se encantara estudando nos Estados Unidos, mas diz que foi na Da Vinci que comprou a maior parte da obra da escritora. Hoje, aos 38 anos, é o seu principal biógrafo.
“É preciso gerações para construir uma história e um acervo como os da Leonardo da Vinci”, escreveu Moser, ressaltando que muito do que leu em inglês foi comprado numa livraria brasileira.
Em Houston, onde o biógrafo nasceu, sua mãe se uniu a outras pessoas para impedir que a livraria mais tradicional da cidade fechasse. É o que ele acredita que deveria ser feito pelos cariocas. “Desistir da Leonardo da Vinci é, de certa forma, desistir do Rio de Janeiro”, escreveu. “Há tempos que o Rio enxerga um futuro cada vez menos de capital, cada vez mais de província.”
O raciocínio ecoa as falas de outros personagens. “A cidade fica mais acanhada. Fecha-se mais uma janela para o cosmos”, disse Fernando Gabeira. “O Rio se torna cada vez mais província, já não bastassem o futebol decadente e as universidades aos pedaços. Sobra apenas a beleza natural, mas estão fazendo uma força enorme para acabar com ela”, lamentou Costa Lima.
A crise na Da Vinci ocorre num momento em que o Rio privilegia grandes empreitadas, como eventos esportivos (Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016), equipamentos culturais (Museu da Imagem e do Som e Museu do Amanhã) e transformações urbanas (na Zona Portuária e na Barra da Tijuca).
Existem cerca de 200 livrarias no município, segundo a AEL/RJ (Associação Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro). Nos últimos três anos, 22 fecharam, mas dezessete foram abertas. O problema, portanto, não está na quantidade, e sim na qualidade das que sucumbem. Lojas tradicionais e que trabalhavam com importação arriaram as portas ou perderam o vigor. Foi o que aconteceu com a Padrão, a Kosmos, a Camões e, recuando no tempo, a Livraria Francesa e a Crashley. Em julho, a Solário desistiu da unidade da rua da Carioca. Desde 2012, quando o banco Opportunity comprou da congregação franciscana Venerável Ordem Terceira imóveis no lado ímpar da rua, os aluguéis vêm aumentando e expulsando o antigo comércio, como a loja de instrumentos musicais Guitarra de Prata.
A Prefeitura do Rio criou em 1979 o projeto Corredor Cultural, que aumentou de 34 para 3 mil o número de imóveis do Centro preservados, dos quais 1 600 têm características históricas. Parte deles também tem tombamento de uso – as confeitarias Colombo e Cavé, por exemplo, não podem ter outra destinação comercial. Mas as livrarias ficaram de fora.
“Eu não quero subsídio para o meu sebo. Mas não seria o caso de apoiar uma livraria de sessenta anos com a importância da Da Vinci, evitando que a cidade seja ocupada por bancos e drogarias?”, pergunta Daniel Chomski, do bem-sucedido Berinjela.
Ele é filho de argentinos. Buenos Aires tem 734 livrarias para 2,8 milhões de habitantes. As 200 do Rio servem a 6,3 milhões de habitantes. Em Paris, embora neste ano tenha fechado a histórica La Hune, seria mais difícil que uma casa como a Da Vinci acabasse, pois há programas de apoio financeiro (como aluguel social) e regras para evitar que o comércio tradicional seja retirado das áreas mais valorizadas.
“A única coisa que importa é pagar IPTU? Não é importante ter livraria na cidade, meu amigo?”, disse Milena, com indignação.
Ela rechaça subsídios, mas acredita que todos os comerciantes da Rio Branco deveriam ter recebido alguma compensação desde o ano passado. Em 29 de novembro, no período de compras natalinas, metade da avenida foi interditada para as obras do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), e táxis foram proibidos de embarcar e desembarcar passageiros. Com isso, reduziu-se a circulação de pessoas, caiu o faturamento do comércio, aumentou o temor de assaltos. O Centro vai deixando de ser um local de encontro e se firmando como lugar de passagem, de onde se quer sair rapidamente.
O poeta Alexei Bueno, frequentador da livraria e grande conhecedor do Centro carioca, classifica como “desinteresse vergonhoso” o tratamento dado pela prefeitura aos comerciantes da região. “A Prefeitura do Rio trata a população com o soberano desprezo de um czar ou do grão-duque de Moscóvia pelos seus mujiques, um horror digno de país de quinto mundo.”
Quando a imprensa noticiou que a Da Vinci estava para fechar, o prefeito Eduardo Paes orientou seu secretário de Cultura, Marcelo Calero, a procurar Milena. Ele lhe ofereceu um espaço gratuito para o funcionamento da loja: o hall do Teatro Carlos Gomes, na praça Tiradentes. Ela descartou.
“No dia em que você me vir pondo a Leonardo da Vinci nesse lugar, pode me internar. Não vai ninguém lá”, disse ela a piauí, referindo-se ao ponto de pouca circulação e comércio fraco. O secretário confirmou a oferta, mas não atendeu aos pedidos de entrevista.
José Mário Pereira é um cearense de 56 anos que se mudou de Quixadá para o Rio em 1974. Logo se tornou um dos maiores conhecedores não só de livrarias e editoras, como dos bastidores da Academia Brasileira de Letras. Quem quer mover uma peça no tabuleiro dos livros no Rio costuma procurá-lo. Foi o que fez Luiz Costa Lima ao lhe propor que buscasse uma salvação para a Da Vinci. E foi o que fez o empresário Omar Peres ao se oferecer como salvador.
De apelido Catito, o mineiro Peres, de 58 anos, figura nos jornais por comprar estabelecimentos marcantes da vida carioca, como o Bar Lagoa e o restaurante La Fiorentina. Antes de se encontrar com Milena, as colunas sociais já o noticiavam como o sujeito que impediria o fechamento da Da Vinci. Ao conversar com Milena, propôs que a livraria se restringisse a uma sala, enquanto outra abrigaria sua padaria chique, a Guerin, e a sala 4 seria vendida – a 1, que é alugada, já está sendo devolvida pelos atuais locatários.
“Como negócio, meu interesse é nulo”, Peres disse à piauí. “As livrarias vivem uma crise existencial definitiva. Tenho interesse como cidadão do Rio. Não podemos deixar enterrar um poema do Vinicius”, confundiu-se, querendo dizer Drummond.
Peres não ofereceu dinheiro. Segundo Milena, pelo menos a marca “Leonardo da Vinci” vale alguma coisa. E, de acordo com sua experiência, reduzir o tamanho da livraria pode piorar a situação, já que, quanto menos títulos forem comprados às editoras estrangeiras, mais caro será o frete. No momento, uma transportadora de Madri reúne todas as encomendas europeias e as envia por navio, a fim de baratear a operação.
O problema é que o pedido de um cliente pode levar até noventa dias para chegar, algo inimaginável na Amazon.
“Concordo que a livraria precise de um banho de loja, de um choque de gestão, de uma adequação aos novos tempos”, disse Milena, desfiando as expressões que têm lido e ouvido. “Mas não sei fazê-la ficar rentável. Confesso que não sei. Não sou boa gestora.”
O autoflagelo não significa entregar o negócio ao primeiro que abrir a carteira. Ela e a mãe acreditam que, para continuar, a Da Vinci precisa ser tocada por alguém que, como as duas, ama aquilo que vende. “Se o sujeito tem muito dinheiro, ele vai à boate, gasta com prostitutas, mas não com livros. Compra um restaurante, um bar”, resume dona Vanna. “Você precisa amar o livro, ficar com ele na solidão noturna, desligar a tevê e entrar em contato com outro mundo.”
Ao saber que a filha pegara um empréstimo, a matriarca foi dura: “Você é que nem seu pai. Vai levar a livraria à falência.” Milena sentiu o golpe: “É um troço pesado de ouvir.” Até por isso, orgulha-se de poder pagar todos os fornecedores e as rescisões com os funcionários. “Ninguém vai dizer que a Leonardo da Vinci deu golpe no mercado”, afirmou.
Ela não se mirou nos exemplos das livrarias de sucesso, que investiram muito na internet, na formação de cadeias de lojas e em atrativos como cafés e bistrôs. O site da Da Vinci não é forte, responde por menos de 10% das vendas; as tentativas de expansão (na Gávea, no Leblon e no Museu de Arte Moderna) não deram certo, por motivos variados; e o café-bistrô Vinci Rio, situado em frente, usa o nome, mas tem outros proprietários. Por ser no subsolo, nem celular pega direito na livraria. E Milena acha isso ótimo.
O mineiro Rui Campos foi um livreiro independente. Cuidou da Carlitos, da Muro, da Dazibao e há vinte anos fundou a Livraria da Travessa. A cadeia tem hoje oito unidades, sendo sete no Rio, e vende mais de mil livros por dia em cada loja. Seu endereço na internet dá conta de 15% do faturamento. Na rede, a Travessa aceita o que recusa nas lojas físicas: promove descontos de até 50%. “A internet não tem lugar para o amor”, reconheceu Campos, que mantém para si uma função que aprendeu admirando a Da Vinci: a escolha dos livros importados.
A Cultura é uma cadeia ainda maior: são dezoito lojas físicas e um site que vende mais do que elas. Por seu poder de fogo, consegue das editoras descontos de até 50% para pôr os livros à venda. É o mesmo benefício da Travessa. E ambas têm estatura para pegar financiamentos do BNDES na hora de abrir novas unidades. Foi o que Pedro Herz, dono da Cultura, fez ao decidir entrar no mercado carioca inaugurando uma grande loja no Centro. Com o esvaziamento da região, está amargando prejuízo. Mas o lucro das outras compensa.
“Atualizar-se é algo que não se aplica apenas a livrarias, mas a qualquer atividade econômica, da quitanda ao banco. Quem não se adapta à realidade fica defasado”, disse Herz, quando perguntado sobre o possível desaparecimento da Da Vinci.
A Saraiva, que recentemente fechou sua megastore do shopping Village Mall, na Barra da Tijuca, admite que poderá acabar com outras “lojas deficitárias”. Mas livro é apenas parte de seu negócio. Assim como a Amazon – que desde 2012 tem um endereço .com.br, pelo qual começou a vender títulos importados em abril passado – e cadeias como Americanas, Ponto Frio e Ricardo Eletro, os livros são chamarizes para que os clientes comprem outras coisas, de vitaminas a máquinas de lavar.
“Elas não fazem dinheiro vendendo livros, mas ganham o seu cadastro. E, como não vendo o que elas vendem, elas me matam. A competição é desigual”, disse Milena.
“É uma concorrência predatória”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Livrarias, Afonso Martin. As editoras dão às pequenas livrarias descontos de 35%, no máximo 40%. Elas não têm como vender abaixo do preço de capa. Já as grandes cadeias oferecem desconto na internet para os lançamentos, que são os mais procurados. “Em qualquer setor, liquida-se um produto quando sua vida econômica chega ao fim. Nos livros, é no começo”, disse Martin, cuja livraria, a Sampa Books, é a única que restou das dez que existiam na rua Doze de Outubro, na Lapa, em São Paulo.
As associações de livrarias defendem há décadas a lei do preço fixo, que está tramitando no Congresso. É, na verdade, um projeto que proíbe descontos – tanto em lojas físicas como nas virtuais – de mais de 10% em títulos lançados nos últimos doze meses. Essa lei existe em países como França e Alemanha, nos quais a Amazon procura driblar o obstáculo franqueando o frete para o cliente. No Brasil, vigora a lei do mais forte. As editoras nunca apoiaram o pleito das livrarias, mas mudaram de ideia neste ano diante da retração econômica do país e da redução das compras de livros por parte do governo federal. A união dos dois setores aumenta a chance de o projeto se consolidar em lei. Mas pode ser tarde para a Da Vinci usufruir dos benefícios.
“A Da Vinci tinha o melhor serviço quando a realidade era outra. Passou a não ter mais. O fim dela é uma tristeza histórica. Mas o fim de uma grande cadeia atrapalha o mercado todo”, afirmou Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, o Snel, lembrando como foram assustadoras as crises recentes das cadeias Siciliano e Laselva. Ele é dono de uma das maiores editoras do país, a Sextante, e neto de José Olympio, cuja livraria fez história na São Paulo dos anos 40 e que depois abriu uma editora de trajetória também marcante.
O mercado editorial não cresce há dez anos. Ou seja, os faturamentos das empresas não acompanham a inflação. A situação estaria muito pior se, em 2004, um projeto do então senador José Sarney não tivesse desonerado o setor de dois impostos similares, o PIS (Programas de Integração Social) e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). A medida resultou numa queda de pelo menos 3,65% nos custos das editoras.
Milena, que diz ter trocado a militância política pela militância dos livros, era presidente da Associação Estadual de Livrarias em 2004. Enviou a todos os integrantes da Academia Brasileira de Letras uma carta pedindo a desoneração para livros importados – que tinham ficado de fora de um pacote assinado pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Sarney leu e decidiu ampliar o benefício para os livros nacionais.
“As editoras foram muito favorecidas. Não quero gratidão ou reconhecimento. Ou quero? Acho que eu quero”, pensa Milena, que por vezes não contém certas mágoas. “O Snel fica na rua da Ajuda, aqui do lado. Nunca recebi a visita de nenhum dos grandes editores. Ou melhor, o Paulo Rocco veio uma vez para o lançamento de um livro. A Record está me dando apoio agora, ao recolher os livros sem cobrar, mas nenhum deles telefonou.”
Até junho, a cada mês a Leonardo da Vinci arcava com um custo próximo de 100 mil reais. Com a devolução da loja 1, de duas salas de depósito e o desligamento de alguns funcionários, o custo já baixou. Dos 40 mil volumes que compunham o estoque, um terço foi vendido desde o início da liquidação.
A livraria vai encolhendo, mas Milena está feliz. “Estou muito contente de minha mãe estar viva para colher todo esse reconhecimento”, disse.
Ela cogita voltar à medicina, profissionalizar-se no setor ambiental ou oferecer sua expertise de livreira a quem o desejar, inclusive ao futuro proprietário da Da Vinci, se ele vier a existir. “O que é a Sterling Cooper sem o Don Draper?”, perguntou, num rasgo de imodéstia, referindo-se à agência e ao publicitário do seriado Mad Men. “Eu não seria responsável pela parte financeira, mas poderia dar uma consultoria.”
Fiel a seu estilo, dona Vanna concordou: “Podemos continuar orientando. Não adianta alguém comprar e não entender porcaria nenhuma de livro.” Mas falou da obra maior de sua incrível biografia em tom de despedida. “A livraria tem um histórico, senão glorioso, ao menos digno. Sua tarefa está cumprida. Posso morrer tranquila.”
* Correções em relação à edição impressa