ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Um guia turístico no front
Notícias de vida e morte no Alemão
Paula Scarpin | Edição 108, Setembro 2015
A
tarde já chegava ao fim no Complexo do Alemão, região pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro, quando o celular de Cléber Araújo tocou. De onde ele estava, na última e mais alta das seis estações do teleférico que atravessa parte da favela, é possível ter uma vista panorâmica da cidade. Diariamente Araújo arma ali a banca em que vende pequenos quadros retratando o próprio teleférico, principal ponto turístico do Alemão. Do outro lado da linha, um conhecido avisava que um policial acabara de balear um menino. A vítima não devia ter mais do que 10 anos de idade.
Araújo deixou a barraca aos cuidados de um colega e correu o mais rápido que pôde até o local do crime. Com o celular em punho, chegou a tempo de filmar o atirador ainda no local, e a mãe da criança, em estado de choque. “Meu impulso foi o de divulgar sem filtro”, lembrou numa manhã recente. Antes de publicar na internet, o comerciante teve o cuidado de marcar veículos internacionais, como BBC, The Guardian e Al Jazeera.
Araújo e a mulher são os responsáveis por um conglomerado de páginas nas redes sociais: Alemao Morro e Complexo Alemao, abrigadas no Facebook; @novoalemao, no Twitter; e @complexoalemao, no Instagram. Na maior parte do tempo, os canais lembram uma versão mais tecnológica de um meio de comunicação comunitário, como um jornal mural ou uma rádio poste: anúncios de pessoas desaparecidas e campanhas de vacinação. Já quando se trata de uma notícia de maior gravidade, as páginas cumprem a função de uma agência de notícias direto do front, pautando os grandes meios. “Uma vez um jornalista do Globo me ligou para dizer que tinha visto uma postagem, mas que a Secretaria de Segurança Pública não confirmava nenhum tiroteio na região.” Ao fundo, durante a conversa com o repórter, a troca de tiros continuava, segundo Araújo. “Você não está escutando?”, ele perguntou, irritado. “Publique o que quiser.”
Cléber Araújo é negro, alto, forte. Tem 38 anos. É muito simpático – sorri com frequência e com gosto. Na juventude, não pensava em se tornar jornalista. Baiano de Porto Seguro, gostava de ler e tinha facilidade para se expressar. Concluiu que podia ser pastor. Aos 20 anos, mudou-se para a Baixada Fluminense, a fim de cursar o Seminário Teológico Batista em Belford Roxo. Não passou muito tempo até se convencer de que a religião não respondia a suas inquietações. Trancou o curso, começou a trabalhar numa empresa de instalação de gás e encontrou um espaço para a filosofia numa comunidade do falecido Orkut, batizada de Ler, Pensar e Refletir. “Eu postava trechos do que estava lendo, um ou outro comentário, mas não sentia que estava alcançando as pessoas.”
N
um churrasco na laje de um colega de trabalho, no Complexo do Alemão, Araújo conheceu Mariluce Mariá de Souza. Era início de 2008, e o papo não podia ser outro: a recente visita do então presidente Lula para inaugurar o braço do Programa de Aceleração do Crescimento nas favelas cariocas. A notícia de que um teleférico cortaria a comunidade dividia opiniões. Cético, Araújo não acreditava que a empreitada faraônica faria diferença na vida dos moradores. Mariluce de Souza, por sua vez, antevia a chegada de turistas. Conseguiu, depois de muita conversa, instilar algum entusiasmo no interlocutor. A animação virou romance e, quando o teleférico foi afinal inaugurado, em julho de 2011, o casal já tinha montado um pacote inteiro de empreendedorismo turístico para recebê-lo.
Imaginando que os visitantes estariam ávidos por suvenires, ela começou a pintar. Seus quadros – em que o teleférico é tão constante quanto as bandeirinhas nos de Volpi – passaram a ser vendidos pelo companheiro. Ofereciam também visitas guiadas pela favela, um sucesso arrebatador. Os dois chegaram a conduzir grupos de mais de oitenta turistas pelos becos do Complexo do Alemão. As páginas nas redes sociais nasceram para divulgar esses projetos – e outras iniciativas da vizinhança. O tempo era de prosperidade, e não faltavam pautas otimistas.
Quatro anos depois, dias após o apito final na Copa do Mundo, a programação de otimismo foi interrompida. No dia 18 de julho de 2014, a página Complexo Alemao postou: “O maior símbolo do PAC foi parado na bala”, em referência ao tiroteio que interrompeu o serviço do teleférico. Na sequência, a ocupação policial e a troca de tiros com traficantes motivaram uma nova publicação no mesmo tom: “Estamos sitiados. Há muito tempo não via nossa favela assim. ESTAMOS PEDINDO SOCORROOOO.” As postagens seguintes culminavam com a frase “A pacificação da mentira”, publicada em várias línguas, com a ajuda da ferramenta de tradução do Google.
No início de agosto, Cléber Araújo comentou a mudança radical de suas páginas de notícia: “Não dá pra falar de arte nesse momento angustiante. Como eu vou incentivar o morador a ir ao cinema, a conhecer a pizzaria da outra rua debaixo de tiro?”
Depois da publicação do vídeo do menino Eduardo de Jesus, baleado por um policial no último dia 2 de abril, as páginas atraíram um público novo, que queria ter acesso a essas notícias “sem filtro”, como definiu Araújo. Segundo ele, o número de seguidores aumentou em 10 mil pessoas só naquela semana. “Claro que não estamos felizes com isso, não temos nenhum patrocínio e só tivemos prejuízos com a diminuição das visitas guiadas ao Alemão. Mas nos sentimos na obrigação de continuar contando o que acontece aqui dentro.”
O objetivo de suas publicações agora, ele disse, é sobretudo alertar a população local dos lugares de perigo, avisar sobre os tiroteios em andamento. Araújo sabe que, além dos moradores, policiais e traficantes também monitoram suas postagens. Às vezes, escuta avisos. “Estamos de olho”, lhe disse um policial, um dia desses. Araújo respondeu: “Olha mesmo, pra você também se proteger.”