ILUSTRAÇÃO: CIPIS_2006
Hoje o bicho pega na boate
O primeiro emprego em Nova York ninguém esquece
Cecília Giannetti | Edição 1, Outubro 2006
Cecília Giannetti é carioca da Ilha do Governador, tem 29 anos e é formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem um livro de contos publicado e um romance no forno. Um belo dia, decidiu ir embora, para sempre. “Quando falei com os editores de piauí sobre escrever um diário de imigração, fiz piadas sobre não suportar mais a monocultura de pagode, o milionésimo renascer da Lapa. Mas deixei de fora o principal. Ninguém deve achar normal viver num lugar onde a violência é encarada como algo corriqueiro. Vários de meus amigos debandaram, todos na faixa dos 20 aos 30 anos. Alguns têm diploma, outros não. Desembarquei em Nova York só com uma mala e vou trabalhar ilegalmente. Radical, eu? Radical é viver sem plano de saúde, sem direitos, salário perigando não sair.”
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DIA 12 DE SETEMBRO, TERÇA-FEIRA Saí para procurar emprego à noite. Só tenho coragem de arriscar um tímido-mas-firme: are you hiring? (tem vaga?) em alguns dos estabelecimentos mais baixa-renda – uma pizzaria que não passa de uma portinhola numa calçada; um pub irlandês vazio em que o barman bebe sentado com um garoto punk, deixando abandonado o balcão. Todos me dizem para voltar no dia seguinte e falar com o gerente.
Passo por um lugar de fachada preta e dourada e vidros fumê refletindo a rua, guardada por duas estatuetas egípcias pretas de mais ou menos 1,80m. Idênticas, têm saiotes dourados, levantados à frente que lembram uma ereção de gesso. Procuro espiar através do vidro e uma porta se abre. Um sujeito aparece, sentado num dos bancos altos em frente ao bar. Ele me dá brecha para falar. Eu peço trabalho, qualquer trabalho. Ele tem cabelo castanho-claro e um penteado complexo, num moicano empinado só à frente, e barbicha pontuda que parte do queixo. É branco e tem olhos verde-claros, usa jeans estrategicamente rasgados e camisa social branca por baixo de uma camiseta marrom. Anéis prateados distribuídos por quase todos os dedos. No pescoço, um pingente com o símbolo da fertilidade egípcio.
– O que você é? [Traduzido do inglês quebrado e sotaque pesadão do gerente]
– Sou jornalista. [Tenho a impressão de que não era exatamente a resposta para pergunta, mas a pergunta não tinha ficado clara.]
– OK, come back tomorrow 5 start training. [A resposta é claríssima].
DIA 13, QUARTA-FEIRA Foi a pior entrevista de emprego de todos os tempos – me diz Mo no dia seguinte, segurando na minha mão. Como dezenas de egípcios e árabes a quem serei apresentada esta semana, enquanto treino para virar bartender no Tutankamon, este não é seu nome. Ele usa um apelido em vez do nome que todos eles têm em comum: Mohammed. O dono do lugar é a exceção; diferentemente de Mo, do chef e do ajudante de cozinha, o dono desta combinação de boate e restaurante egípcio se chama Lateef, e se apresenta como Alex.
Mo entra na cabine de DJ e comanda um karaokê sobre as bases pré-gravadas da indescritível dance music árabe. A garçonete Mona (apelido de Monifa) grita tão alto que não precisa do microfone para ser ouvida de onde estou. Morena baixinha, do tipo “gostosa” – poderia ser brasileira, à primeira vista – coloca a mão no lado esquerdo do peito decotado e depois a leva até Mo, que lhe dá um beijinho. Depois de Mona, a barman Katie recusa sua vez de cantar. Mo não tem nenhuma canção grega e ela não vai arriscar hip-hop americano. Sou a próxima da fila. Mo coloca “Clandestino”, do Mano Chao – o mais próximo de música brasileira que se pode chegar neste lugar – e me manda para o microfone. Conheço a letra, é minha piada interna musical: “Solo voy con mi pena, sola va mi condena (…) me dicen clandestino, por no llevar papel”.
As meninas passam a falar sobre amor. É seu único assunto – cíclico, inesgotável, a distração preferida quando os olhos verdes de Mo não estão por perto. Isso e os drinks que acompanham cada rodada de decepções, confissões e conselhos trocados por cima do balcão no bar.
Quando o chefe Alex vai embora, por volta de meia-noite, começa uma movimentação diferente em direção ao subsolo da boate. Chega uma dupla de garotas que não estavam aqui durante o dia. Fadma e Nashiema, marroquinas. O expediente está só começando. Há outra cabine de DJ, pista de dança, um segundo bar e uma cama cheia de almofadas de cetim brilhante, véus coloridos e lençóis estampados com motivos egípcios. No porão acontecem tanto os afterhours oficiais da casa, aos sábados, quanto os clandestinos, organizados por Mo. Esses costumam ir até as 10h da manhã de quinta-feira. Mo pergunta se eu tenho que ir para casa cedo ou se eu quero ficar e ver como é o afterhours. Eu fico. Diz que qualquer coisa de que eu venha a precisar basta pedir que ele resolve.
Correram apenas sete ou oito horas do meu primeiro dia de trabalho e já sei algumas coisas sobre Mo. Sei que ele cheira, que ele bebe, que ele carrega Xanax – um ansiolítico, no bolso da calça –, que só dorme depois de ter passado três noites seguidas acordado, que ele tem uma namorada em casa e meia dúzia fora. Deixa claro que, se eu quiser integrar o harém, há espaço.
Só posso creditar a alguma espécie de Síndrome de Estocolmo de imigrante o fato de eu ainda me sentir agradecida ao gerente por ter me dado meu primeiro emprego. Donos de restaurantes brasileiros não tinham nada para uma recém-chegada sem experiência: bati na porta do Sushi Samba, Esperanto – nada. Num curso de português para estrangeiros com vagas para professores, respondi errado a uma pergunta: você tem Social Security (registro no INSS americano, que serve de identificação nacional)? Eu disse que não. A vaga continua aberta. Sequer exigem experiência. Vai ver é melhor fazer um Social Security falso. No bairro de Queens, consegue-se um por 200 dólares. Basta procurar pelos trambiqueiros certos que circulam pelas ruas ou em algumas lojinhas pequenas, negócios de fachada, com placas na porta: Passport photos.
Saio da boate às sete da manhã; o afterhours segue no porão do Tutankamon. Como um sanduíche num mercadinho e só consigo apagar às 11h.
DIA 14, QUINTA-FEIRA O cozinheiro me chama para jantar com os outros funcionários. Ontem não comi porque não sabia que tinha direito à refeição. O Chef me dá uma dica: hoje Alex chega mais cedo e só sai quando o último cliente for embora, então é bem possível que eu já ganhe algum dinheiro, mesmo estando em treinamento.
A primeira vez que senti qualquer coisa parecida com nostalgia em relação ao Brasil foi dentro de um restaurante mexicano, próximo ao Tutankamon. Foi hoje, no primeiro dia com os egípcios. Cheguei uma hora antes do horário marcado (saí de casa cedo demais, com medo de me perder por não conhecer direito o caminho ainda) e fiquei matando tempo, com uma Corona gelada e fatias de limão. Até que olhei para o lado e me dei conta das paredes pintadas de azul-claro, os rodapés brancos, os mexicanos falando alto. Uma birosca. Não chega a ser um restaurante étnico temático, como o Tutankamon. Não é um parque de diversões exótico. É uma autêntica birosca mexicana, porque aqueles caras ali não conseguiriam fazer de outro jeito nem que se esforçassem muito. Cortinas brancas curtas, de renda, e detalhes em azul-claro, toalhas de plástico em cima das mesinhas espalhadas pelo salão, uma jukebox tocando dores-de-cotovelo. Parecido demais com um lugar do mundo real para existir em Nova York, onde tudo se esforça para ter um sabor artificial.
Por um motivo qualquer, minha cabeça ligou aquele lugar ao Brasil. Mas aí é pagar a cerveja e sair, Tutankamon espera. Não esquecer de deixar gorjeta, está todo mundo no mesmo barco.
Para achar emprego como jornalista, eu preciso arrumar um número de Social Security e um Work Permit (autorização de trabalho para estrangeiros), emitidos pelo governo americano. Ou então arranjar um “patrocinador”, alguém que queira não só me dar um emprego como assumir um processo conjunto comigo diante da imigração, afirmando que tenho, como trabalhadora, habilidades específicas que servem a um propósito para o empregador.
Luciana, uma brasileira que conheci ainda no Rio de Janeiro, teve a sorte de encontrar uma patrocinadora logo que chegou aos Estados Unidos. Sua sponsor era uma fotógrafa (especialidade de Lu) e a contratara como ajudante num estúdio. Era o processo perfeito, do tipo que a imigração aceita sem problemas. Tão perfeito que foi revendido a terceiros pelo próprio advogado de Luciana. É uma prática comum aqui: quando a papelada está toda em ordem e a probabilidade de se conseguir a licença é grande, o estrangeiro com recursos compra uma papelada já em andamento. O advogado abandona o cliente original sem lhe dar maiores justificativas.
Vim para cá sabendo que, se eu desse sorte, o começo seria em restaurante. A maioria dos meus amigos de adolescência está em NY agora, casada(os) com americanos(as) e legalizada(os). Todos tiveram um começo duro, hoje recompensado com estabilidade. Vitor, 36 anos, nosso vizinho aqui e ex-vizinho no Rio, trabalha em construção civil. “Trabalho de peão”, diz ele, que tem fins de semana, de tarde e de noite livres. E pode chegar a fazer, em época boa, mais de 100 dólares por dia, 800 por semana. Isso permite que more no Lower East Side, área moderninha e valorizada em Manhattan, viaje de férias para o México com a mulher (americana, professora de inglês para estrangeiros), pague escola particular para o filho. E sobra para o lazer: a família gosta de música eletrônica e de caprichar no visual gótico – Calvin, de 15 anos, usa moicano e cabelos roxos, os pais vestem sempre roupas escuras e costumam freqüentar as boates da moda. Vive-se direitinho. “E não preciso pagar academia. Derrubar parede é musculação suficiente”, diz.
DIA 15, SEXTA-FEIRA Chego no Tutankamon às 17h e me avisam que hoje o bicho pega na boate. A noite de sexta é uma das mais movimentadas. A música romântica árabe enche o salão que fica no nível da rua, faz tremer os copos e balança as saias curtas das egípcias no ritmo rápido. Mas quem sou eu para criticar, se também estou usando o uniforme da casa – blusa preta e saia preta pregueada, do tipo jogadora-de-tênis, com botas de caubói vermelhas de cano alto, gastas, que mastigam as pontas dos meus dedos como qualquer par de botas emprestado?
Mo sumiu da boate depois de uma discussão em altos decibéis na calçada do Tutankamon. Alex, ele e Nashiema gritavam em árabe até que Mo entrou numa picape e arrancou. Ninguém me explica o que aconteceu.
Dinheiro? Garçonete – ainda não é o meu caso – faz 200 dólares por noite só de gorjeta. Esta semana começo a poder aceitar pedidos nas mesas. Mas não vou ficar no restaurante. O faraó está abusado.
DIA 16, SÁBADO O dia é um borrão, durmo. Pernas e pés latejando. A noite no Tutankamon é igual, correria. E nenhum sinal do Mo.
Quando saio, já é dia. Na esquina da Bowery com Houston, Mo bota a cabeça para fora de um carro e grita meu nome. Estaciona e vem falar comigo. Pergunta se foi tudo bem, se me deixaram ficar no emprego. Pergunta se ainda tem alguém na boate. Ele tem dois arranhões na altura do nariz e da testa, além de um hematoma pequeno, esverdeado, abaixo do olho direito.
DIA 17, DOMINGO Coquetel Tutankamon: duas doses de Absolut Mandrin, Stoli Razberry, Malibu, duas colheres de sucos de limão, abacaxi e cramberry. Não era bem isso que eu esperava escrever na minha caderneta Moleskine quando paguei 14 dólares por ela numa livraria-sebo metida à besta. As cadernetas vêm com um folheto que explica, em cinco línguas, todo o peso que existe em se adquirir uma tradicional caderneta Moleskine. “Moleskine é a legendária caderneta usada por artistas europeus e pensadores dos últimos dois séculos, de Van Gogh a Picasso, de Ernest Hemingway a Bruce Chatwin. Esta companheira de viagem confiável, em formato de bolso, já guardou rascunhos, anotações, histórias e idéias antes que se tornassem imagens famosas ou páginas de livros reverenciados.”
Ora, pitombas.
O livrinho preto cabe no bolso da minissaia, jeans e ainda sobra espaço para uma caneta e um batom. Seguindo ordem do gerente deste restaurante-boate egípcio, a bartender versa os ingredientes de cada drink sem se deter em detalhes, como quantidade ou jeito de misturar. Ela sabe que não tenho experiência, mas não cogita dar uma ajuda.
O meu coquetel Tutankamon é uma porcaria. O meu Sex on the Beach é uma porcaria. Manhattan, Cosmopolitan, Metropolitan, Tequila Sunrise, Piña Colada – qualquer coisa que eu sacudo nessa coqueteleira com símbolos egípcios gravados em alto relevo fica uma porcaria. Quando o movimento no Tutankamon é zero, e todas as garçonetes desaparecem para fumar na calçada, e a bartender desaparece para fumar na esquina e fazer ligações para o ex-namorado casado, e eu fico sozinha atrás do balcão, lá vem ela, a chinesinha que trabalha na cozinha. Surge discretamente, com passos miúdos, sem qualquer ruído; parece que tem uma esteira móvel debaixo dos pés.
– Drink? Me?
– O que você quer? O inglês dela é bem limitado. Ela dá de ombros. Jogo na coqueteleira os ingredientes para criar minha versão do Long Island Ice Tea.
– Você tem idade para beber?
– Yes!
– Você é menor de idade?
– Yes!
– Há quanto tempo você está nos Estados Unidos?
– Yes, yes!
Ela desaparece, levando duas cervejas da geladeira do bar para a cozinha.
Domingo é um dia devagar no Tutankamon, e este está especialmente lento. Há um jogo dos Yankees e os fregueses estão todos em casa bebendo sua cervejinha em frente à TV ou em bares que têm televisão. As garotas retomam a falação do ponto de onde todas as suas conversas começam e terminam. Paixão, traição, motéis.
O namorado novo da garçonete egípcia embarca dentro de uma semana para o Iraque com o exército americano, do qual faz parte. Ele é árabe.
– Se ele conseguir ajudar… traduzir quando as coisas ficarem difíceis, sei lá, quando os dois lados precisarem conversar… Talvez ele consiga evitar que matem gente inocente descobrindo quem é civil, interrogando. Mas se ele for para o inferno, eu vou junto.
Quando o clube fecha, por volta das 2h da madrugada de segunda-feira, Alex me oferece uma carona até a Avenida D, onde moro. Oferecer é maneira de dizer. Ele diz: “Get in da car.” com um tom desagradável de autoridade na voz, que pode ser impressão falsa por causa do sotaque e do inglês quebrado. Ou pode ser a atitude machista que ele adota no clube com todas as garçonetes.
Passamos pela Avenida D e ele não pára o carro.
-You eat something.
Insiste que eu tenho que jantar antes de ir para casa. Passa por vários restaurantes e não pára. Começo a ficar nervosa. A dance music árabe continua gemendo dentro do carrão do chefe. O som alto e o excesso de colônia masculina no carro fechado se juntam ao frio na barriga. Se eu tivesse comido alguma das especialidades do Tutankamon, não estaria melhor. Comida egípcia e medo são uma combinação terrível.
Ele estaciona numa rua escura próxima à área do Bowery. Sem dizer qualquer palavra, salta do carro, dá a volta pela frente e abre a porta para mim do outro lado. Se eu tentar correr com essas botas acho que não chego até a esquina. Ou chego. Desespero faz milagre.
– Vegetarian. You don’t meat, you?
Ele estava rodando atrás de um restaurante que tivesse comida vegetariana para mim. Escolhemos uma mesa de canto. Espero que ele sente à minha frente mas ele se aboleta ao meu lado no banco encostado à parede. Peço uma panqueca de queijo. De volta ao carro Alex tira o cinto de segurança e pula em cima de mim, já perto da Avenida D. Consigo voltar à conversa: não é assim que estou acostumada a conhecer pessoas, você é meu chefe, nós não nos conhecemos etc.
– I work 16 hours a day. I don’t have girlfriend. I like you. Anything you need, I give to you. At work, nobody touch you, protect. If you like me, we go out. If you don’t, it’s ok. You need job, I give you. I give you shift you want. (algo como: Trabalho 16 horas por dia. Não tenho namorada. Você me agrada. Tudo o que você precisar eu dou. No trabalho, ninguém toca em você, protegida. Se você gosta de mim, saímos juntos. Se não, tudo bem. Você precisa de trabalho. Você faz o plantão que quiser).
Em casa, num dos raros intervalos em que não estou no Tutankamon, nem me recuperando de 16 horas no Tutankamon.
– Lavei a roupa hoje naquela lavanderia que tu recomendou, a do chinês da rua D. Ele é todo amigo, veio ajudar e tal, todo sorrindo.
– Acho que o cara é coreano, não é chinês não. Chinês não é amigão assim, é carrancudo e não sai de trás do balcão para nada.
– E indiano não dá gorjeta! É o que as garotas lá do Tutankamon diziam. E eu vi!
Desde que cheguei, estou tendo de me policiar para não virar uma maluca, dessas que categorizam as pessoas por raça. Na teoria, é fácil refrear o preconceito. Mas aqui fica muito difícil não repetir o que se ouve, principalmente depois de uma semana no Tutankamon. Minha experiência ruim não foi só com um árabe; foram dezenas de árabes, todos eles fazendo questão de tentar passar a mão. No final da noite você acaba dizendo sem pensar: odeio árabe. Minha amiga define: “Preconceito acontece é na diversidade, quando um monte de povos de tudo que é lugar do mundo se mistura numa cidade só.”
DIA 21, QUINTA-FEIRA O Gouverneur Healthcare Center é o hospital de Nova York conhecido como immigrant friendly – trata os imigrantes como nenhum outro.
Logo no meu primeiro dia de NY, devido a um osso quebrado na perna direita da minha amiga, fui apresentada ao Governeur. E me assustei. Menos de trinta minutos depois de chegarmos para uma consulta, Tatiana foi chamada para tirar o gesso. Seu status no país ainda não é legal, mas nenhuma pergunta em relação a isso foi feita – aqui, o foco do médico e da enfermeira deve se manter no tratamento. Sua ficha foi acessada em um terminal de computador, e lhe deram a opção entre usar uma bota ortopédica ou engessar a perna uma segunda vez. No Brasil, da última vez que me machuquei, paguei cerca R$ 80 pela bota que usei durante um mês – e isso porque eu tinha plano de saúde e fui atendida numa clínica particular. Aqui, uma brasileira em situação ilegal ganha a bota.
Meus pais trabalharam a vida toda em postos de saúde, em Bangu e na Ilha do Governador. Não tinham com quem me deixar, então eu passava metade dos meus dias, depois da escola, em hospitais públicos. Quando não estava ouvindo alguma desgraça irremediável na sala do serviço social, onde minha mãe era diretora, acompanhava na ala médica (onde meu pai atuava) a falta de gaze, soro, gesso, muletas, óculos, material básico para tratar ou beneficiar quem não poderia obter essas coisas de outra maneira. Faltavam médicos para atender todo mundo e muitas vezes – eu ouvia as fofocas pelos corredores – faltava vergonha na cara. Alguns diretores tiravam a verba do hospital para enfiar no próprio bolso.
A diferença em relação aos postos de saúde pública brasileiros que conheço muito bem é brutal. Ar-refrigerado funcionando, chão encerado, salas de espera com cadeiras para todos. Faço o teste do banheiro: limpo. Pelos corredores, folhetos e murais com avisos em espanhol, russo, japonês, chinês e inglês, com informações sobre perigos e doenças comuns que podem ser evitadas com certos cuidados.
E meus remédios, como é que vou fazer depois que acabarem os que trouxe? Preciso tomar um medicamento para a tireóide que, nos Estados Unidos, só se consegue com receita médica. Se aqui até pílula contraceptiva só se compra apresentando receita, como é que eu vou fazer?
“Não esquenta, você não vai ficar sem o seu remédio”, explica Tatiana. “Basta escrever uma carta ao hospital, declarando que você não tem condições de pagar pelo tratamento, e você paga só 15 dólares pela primeira consulta.”
E se alguém me dedurar porque sou imigrante ilegal? Cairia no vazio – o status legal do imigrante que cruza as portas de um hospital público em Nova York só interessa aos agentes do serviço de imigração. É por essas e outras que tantos americanos gostariam de livrar o país das massas de ilegales – ou, então, alterar a lei que lhes franqueia o uso de hospitais e escolas públicas.
Só mais tarde fiquei sabendo que minha amiga tinha sido vítima de negligência médica, em outro hospital da mesma Nova York. Aconteceu três meses antes. Quando sofreu a queda que lhe arrebentou o joelho durante seu turno de garçonete de restaurante, saiu do setor de emergência do Hospital Bellevue com uma tala que parecia improviso de escoteiro e, na seqüência, três botas imobilizantes igualmente equivocadas. Deveria ter sido submetida a uma cirurgia nas 72 primeiras horas após a queda. Mas Tatiana não tem carteirinha do INSS americano e cirurgias são caras. Ou seja, após uma primeira impressão sempre pode haver uma segunda.
Enquanto isso, meu nome passa a existir no sistema bancário por meio de uma conta aberta no Washington Mutual na minha segunda semana de estadia em Nova York. Tudo que precisei apresentar foi meu passaporte, e um pequeno depósito de 15 dólares. Também existo para o sistema de saúde do Estado. Na primeira semana do segundo mês em NY, preciso de receita médica para comprar pílula anticoncepcional e um medicamento indicado para o controle da tireóide.
Se no Washington Mutual levei dez minutos para passar a existir no sistema bancário, o hospital me tira duas horas numa segunda-feira. Eu mesmo escrevo e entrego a carta à funcionária do hospital, e nela atesto apenas que não tenho emprego no momento e preciso de cuidados médicos. Uma consulta é marcada para o dia seguinte e imediatamente ganho um cartão com meu nome, número de inscrição, endereço e um adesivo azul que indica que sou desempregada e não posso pagar mais do que 15 dólares por uma consulta médica.
Sabendo disso, a ginecologista que me atende no Governeur decide que não vai me dar apenas a receita para as pílulas anticoncepcionais. Faz o exame completo, e finge que não escuta quando garanto que fiz todos os exames necessários em sua especialidade imediatamente antes de deixar o Brasil. “Melhor fazer agora, você pode passar um tempo sem poder pagar consulta, e quero ter certeza de que você está bem”. Ela pede ainda exames de sangue, que faço na mesma tarde, e me manda procurar o endocrinologista do Governeur, por achar estranho que a minha médica, no Rio de Janeiro, pedisse e meus exames de sangue relativos à tireóide somente de três em três meses. “Aqui, casos de tireóide em que o paciente toma remédios para controlar a glândula devem ser observados num mínimo de três em três semanas“, explica. Não discuto e faço o primeiro exame de sangue. O hospital ligará, quando os resultados estiverem prontos, e me mandará para uma consulta com o endocrinologista.
DIA 22, SEXTA-FEIRA Faltam só cinco dias até a próxima quarta-feira, dia da semana em que o morador de Nova York estoca na calçada, de forma organizadíssima, todas as bugigangas das quais quer se livrar. Para quem vive apertado, ou acaba de aportar na cidade, é uma bênção. Pode-se montar uma casa inteira recolhendo o que fica exposto até a passagem do caminhão de lixo.
Chamo a instituição de Fada do Lixo. Seus truques são admiráveis e a maneira como opera – como escolhe o que dar a quem e quando – é precisa. O primeiro presente que Ela me deu, na minha segunda semana aqui, certamente não impressiona muito os leigos: um cinto preto de tachinhas brancas, em excelente estado, pronto para segurar a minha saia ou a minha calça, que já começavam a cair (desde que cheguei perdi cinco quilos). Mas o presente que Ela deu a Vitor talvez dê uma pista da engenhosidade e infinita bondade dessa criatura que amadrinha imigrantes e nova-iorquinos de boa vontade: ele encontrou um Moog no lixo. Vitor é fã de música feita com sintetizadores. E o que a Fada do Lixo lhe deu – nada menos que a marca mais famosa, fetiche de todo maluco por sintetizadores – estava funcionando perfeitamente.
O segundo presente deixado para mim na rua foi uma churrasqueira. Pequena, inteira, deu para carregar na mão pra casa, onde agora repousa no quintal. E me foi dada no feriado de 4 de Julho, quando o país inteiro faz a mesma coisa: churrasco.
Assim funcionam os desígnios da Fada do Lixo. Ela é quem faz nós encontrarmos na rua, muitas vezes protegidos por caixas, os itens de que precisamos, quando mais precisamos deles. Todos saúdem a Fada do Lixo. Ela É A Maior.
Meu companheiro de república estava voltando de um ensaio com sua banda, segurando na mão a guitarra. “Preciso comprar uma capa pra essa coisa”, chegou a comentar com a mulher, Tatiana. Adivinha o que ele encontrou alguns passos adiante? Voltou pra casa com a guitarra devidamente vestida.
O terceiro presente que recebi Dela foi o que mais me tocou até agora. Estava perdida perto da Lexington, procurando o salão de beleza onde Luciana trabalha, quando topei com dezenas de caixas de papelão empilhadas umas sobre as outras. Todas tinham uma etiqueta em que se lia “Discard”, e estavam abarrotadas de livros. E não eram qualquer coisa. Se eu tivesse entrado num sebo e escolhido a dedo os títulos que estavam naquelas pilhas, a seleção não encaixaria tão bem com meu próprio gosto para leitura e necessidades. Era um workshop de literatura criado pra mim:
Becoming a Writer, A Writers Guide, The Art of Fiction, Writers Writing, Writing For Many Roles, Technical Writing [Professional Guide For Writers And Editors], Writing With Power, Forms Of Wondering [A Dialogue On Writing For Writers]– Todos livros para escritores, todos novos.
Stories From The New Yorker – Um livrão comemorativo do aniversário de 35 anos da revista, com contos que mostram o auge de escritores como Dorothy Parker e J.D. Salinger.
The Sherwood Anderson Reader – Antologia de um dos meus reis da contradição preferidos.
Tuttle Dicionary of Dedications – Uma antologia com mais de 1.500 dedicatórias famosas de livros de Jane Austen a Kurt Vonnegut. Divertido.
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