ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Búfalo soldiers
Um batalhão da PM e o segredo de seu brilho fulgurante
Cassiano Elek Machado | Edição 1, Outubro 2006
Toda corporação militar costuma ter segredos. O segredo mais bem guardado do 8° Batalhão da Polícia Militar do Pará pode ser encontrado em prateleiras de qualquer mercadinho do país. Talvez não resolva embates contra PCCs e CVs, mas o frasco marrom-escuro, com um belo perfil de índio desenhado em seu rótulo branco, não custa mais do que R$5 e dá ao tal pelotão um brilho que poucos regimentos conhecem. A substância secreta chama-se óleo de peroba.
O líder do batalhão marajoara entende de brilho. Dourado, nome do tenente-coronel, diz que o primeiro passo é lavar muito bem. As mangueiras são atarraxadas diretamente na caixa d’água, e os jatos saem fortes como os de um lava-rápido. Depois é a vez dos escovões, com impiedosas cerdas de aço. Potes de graxa preta – “tem de ser da marca Nugget” – são usados em seguida. O trabalho dos recrutas só termina depois que os chifres estão tinindo.
Nenhuma polícia do mundo tem chifres como esses. Longos e curvos; curtos e retos; embicados para o céu ou apontados para o chão; chifres brilhantes, cuidadosamente besuntados com óleo de peroba. Quando eles passam, altivos, pela praça central, são motivo de muita boca aberta. Pares de chifres não faltam em Soure. A cidade mais importante de Marajó tem seis vezes mais chifres do que pessoas. Mas nenhum brilha tanto quanto os do 8º Batalhão da Polícia Militar do Pará, a única polícia montada em búfalos de que se tem notícia no planeta.
Meio milhão de búfalos vagueiam pelas terras alagadas da Ilha de Marajó. O prefeito de Soure, Carlos Augusto Gouvêa, diz: “Os búfalos são a nossa redenção”. A redenção dele também: o prefeito, apelidado de Tonga, cria seus búfalos na Fazenda Mironga – até onde foi possível apurar, não foi para o prefeito que Vinicius compôs a misteriosa canção A Tonga da Mironga do Kabuletê – e não raro leva comitivas oficiais para conhecerem seu rebanho. Não são os únicos búfalos funcionários públicos. Em Soure, búfalos puxam carroças de lixo a R$ 20 por caçamba cheia; dão o leite do qual se faz o queijo marajoara (bem mais “rude” do que a mozarela de búfala); viram saborosos filés ou a típica “fritada de vaqueiro”. Mas nenhum dos milhares de exemplares bufalinos de Soure são tão queridos quanto os vinte do efetivo do coronel Dourado.
Por trás de cada um desses pares de chifres lustrosos existe uma história. Bajara é o mais veloz – recentemente faturou um prêmio de R$ 500 em uma corrida de búfalos. “Temos búfalos mais rápidos do que o touro Bandido, da Globo”, diz com algo mais do que orgulho o tenente-coronel Dourado. Pimpolho é um dos mais queridos. O mais velho tem 30 anos e atende por Preto Velho. O predileto do soldado Nogueira é Rabicho.
Nogueira, Rian (sim, em Soure existe um soldado Rian), Martins: todos eles entendem daqueles bois de cara preta. São os soldados do batalhão – ao todo, duzentos – que lavam, escovam, engraxam e passam óleo de peroba nos chifres dos búfalos. São eles que montam seus lombos, tanto em dias festivos como em missões em Chaves, Santa Cruz e Cachoeira, três dos sete municípios sob o comando do coronel Dourado. Antonio Augusto Gomes Dourado, 45 anos, 26 dos quais na PM, diz que nesses pedaços de terra só se chega de canoa ou no lombo de Rabicho, Pimpolho, Bajara e companhia.
As estatísticas criminais de Soure são baixas. Há mais de ano e meio a cidade não tem homicídios. Na cadeia estão três dezenas de homens. O prefeito Tonga diz que a lei seca decretada por ele é responsável pela torneira fechada de crimes. O tenente-coronel Dourado garante que isso é uma grande bobagem, e que a criminalidade é baixa porque as pessoas não têm o que roubar. De acordo com os dados mais recentes do governo paraense, nos 3,5 mil quilômetros quadrados de Soure existem 72 fornos de microondas, 127 automóveis e 30 microcomputadores – para uma população de 20 mil almas.
O prefeito Tonga e o coronel Dourado discordam em quase tudo. Um deles já se referiu ao outro como “um Hitler”. Os dois só aparecem juntos na fotografia quando o assunto é policial montado em búfalo. O prefeito Tonga diz que os búfalos são mais fortes e nadam melhor. O coronel Dourado diz que só búfalo entra em mata fechada e que a versatilidade dos animais é tamanha que eles podem ser usados até para matar cobras e arraias: o vaqueiro experiente sabe fazer um tipo de manobra na qual o bovino fica rodando e pisoteando o chão com seus mais de mil quilos, exterminando todos os tipos de bicho no meio do caminho.
No dia 7 de setembro, Tonga e Dourado (assim como Rabicho, Martins, Rian, Nogueira, Pimpolho…) costumam se encontrar em Belém. No desfile anual de todo o efetivo militar paraense, os rapazes do 8° Batalhão passam garbosos sobre os animais. Nessa ocasião, o comandante Dourado não economiza esforços. Manda um de seus comandados ao mercado comprar potes e potes de óleo de peroba e de graxa marca Nugget, preta.
Abrindo a caravana vão os dançarinos de carimbó e o homem mais velho da região, Preto Juvêncio, que, do alto dos seus mais de cem anos, desfila sobre um cavalo. O lugar de honra, porém, é da guarda montada em búfalos. Uma das canções mais conhecidas de Bob Marley chama-se Buffalo Soldiers. Foi composta para os quatro regimentos do exército americano que, no século XIX, eram formados só por negros. Mas não ficaria mal se fosse cantada aqui. O público sempre aplaude muito o destacamento militar de Soure. Fitas de VHS no escritório do comandante Dourado atestam o fato. Batem palmas, gritam, assobiam. O oficial acredita que um dos grandes motivos é a beleza de seus animais. “Todos os criadores de búfalo da região me perguntam que tipo de alimentação eu dou para que eles fiquem assim todos brilhando e bonitos. Mas eles só comem mesmo capim. O segredo eu nunca conto”, afirma Dourado. Não contava. O segredo custa menos de R$ 5 e é vendido em frascos marrons.