ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Sem caixa 2 e sem coreografia
Já estão em marcha as engrenagens da festa da posse, que dessa vez não contará com os talentos de Marcos Valério e Duda Mendonça
Demétrio M. Oliveira | Edição 2, Novembro 2006
Sob a chefia do embaixador Ruy Casaes, 62 anos, uma força-tarefa sediada no Itamaraty organizará a segunda posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seu núcleo é composto de uma dezena de diplomatas mais graduados e, à medida que a data se aproximar, a eles se juntará um número crescente de secretários de embaixada, funcionários do serviço exterior e alunos do Instituto Rio Branco. Às vésperas do evento, o grupo terá mais de cem pessoas. Razoável supor que o trabalho será duro, e os resultados dificilmente estarão à altura do esforço. Por três motivos.
Primeiro, porque posse no primeiro dia do ano é dose. São poucos os chefes de Estado e governo que se abalam a sair de casa em data tão impropícia. Só mesmo Fidel Castro. E agora, como se sabe, ele não pode viajar. Segundo, porque se trata de uma re-posse, de um repeteco. O terceiro motivo é a festa popular. Na posse anterior, mais de 200 mil pessoas de todos os cantos do Brasil dormiram sob o céu do planalto para ver o desfile. Dificilmente ela se repetirá. A não ser que o povo tope pagar a conta. As normas da administração pública vedam aos cofres do governo pagar passagens de familiares, custear a estadia de amigos ou cobrir custos de caravanas de simpatizantes. Tampouco se pode utilizar a máquina do Estado para aluguel de carros de som, montagem de barracas, confecção de faixas e compra de quentinhas. Mestres de marquetagem que desejem emprestar seus talentos à coreografia do evento poderão fazê-lo, é óbvio. Na posse de 2003, quem organizou a festa popular foi o marqueteiro Duda Mendonça. E quem pagou a conta de 1,5 milhão de reais foi Marcos Valério. Não parece haver candidatos a assumir o papel deles.
O Itamaraty centraliza o comando dos diferentes órgãos envolvidos na operação, como o Cerimonial da Presidência da República, o Gabinete de Segurança Institucional, a Polícia Federal e o Gabinete da Presidência do Congresso. Nada se faz sem antes consultar o próprio presidente eleito (ou um assessor designado), que é, afinal, o dono da festa. Cada aspecto é tratado por uma unidade especializada. Há um grupo responsável pela confecção de cartas aos chefes de Estado dos 181 países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas, convidando-os para a posse. São cartas de chancelaria, semelhantes a um vistoso convite de casamento, mas com texto protocolar firmado pelo presidente.
À medida que o Itamaraty recebe as respostas, outras equipes arregaçam os punhos de renda para cuidar de tarefas como credenciamento dos participantes, hospedagem das delegações estrangeiras, cronograma de chegada e partida dos convidados, recepção nos aeroportos internacionais do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Distrito Federal, reserva da Base Aérea de Brasília para aeronaves oficiais, aluguel de veículos, deslocamento de autoridades, controle de trânsito — a lista é longa. De preferência,nada se deixa ao alcance do acaso. Janeiro promete chuva? Toldos e guarda-chuvas estarão a postos. O presidente de um país amigo é alérgico? Reserve-se-lhe uma suíte sem carpete.
Todo cuidado é pouco. A cada passo, uma gafe se insinua. A cada gafe, os céus podem desabar. Carreiras brilhantes foram por água abaixo na esteira de uma mesa mal composta. Todos os movimentos de autoridades precisam ser previamente definidos e cronometrados: quem se desloca, em que momento, por qual trajeto; quem se senta, onde, junto a quais convivas; quem serão os oradores, em que ordem tomam a palavra e por quanto tempo podem falar.
É um xadrez. Todos precisam aparecer na foto, e o diabo é arrumá-los na mira da objetiva. O presidente se posta sempre no centro. A seu lado, ficam os convidados que, no vaivém do prestígio que se dá e se recebe, desfrutem no momento de maior proximidade. Tudo dependerá de quem confirmar presença.
O dia 1o de janeiro de 2007 terá início com missa na Catedral de Brasília. À saída, o presidente reeleito e seu vice seguirão em carro aberto pela Esplanada dos Ministérios, no Rolls-Royce comprado por Getúlio Vargas – o mesmo que enguiçou em 2002 e precisou ser empurrado. O presidente eleito segue então para o Itamaraty, onde recebe os convidados. Há sempre um intérprete por perto. Terminados os apertos de mão, é hora do almoço no terceiro andar do palácio.
Sobre a qualidade da comida, há controvérsias. A empresa Di Gagliardi Buffet tem controlado a cozinha do Itamaraty pelas últimas três décadas. É quase uma capitania hereditária, com os resultados que se conhecem. Fernando Henrique Cardoso não tolerava comer no Palácio dos Arcos. Lula optou por abrasileirar o cardápio. A lagosta e o camarão, crustáceos de reputação tucana, deram lugar ao jabá com jerimum. A efemeridade das îles flottantes cedeu espaço à cor local do suflê de goiabada com catupiry. O lento serviço à francesa foi suplantado por um prático bandeijão que embaixadores à antiga batizaram de celso-service. Alguns convidados estrangeiros se incomodam com a falta de opções do cardápio: koshers, vegetarianos e demais detratores do lombo de porco com fios d’ovos têm de passar a pão e vinho. Nacional.
Findo o almoço, vão todos para o Congresso Nacional. Ali, em sessão solene, o presidente reeleito receberá das mãos do senador Renan Calheiros o termo de posse e o assinará, dando início ao segundo mandato. Em estilo napoleônico, deverá passar a faixa a si mesmo. É então que se dá a parte mais chata, o discurso anunciando as diretrizes e prioridades de seu governo. Em 2002, o autor da peça oratória foi o ministro Luiz Dulci. O próprio Lula quase dormiu de tédio ao lê-la. É possível que a cerimônia no Congresso sirva de palco para o anúncio do novo ministério. Em 2003, dizem os registros, Cristóvam Buarque e José Dirceu foram os nomes mais aplaudidos. Conta-se também que a senadora Heloísa Helena declarou na ocasião: “É hora de muita alegria, é um momento muito especial”.
Do Congresso, o presidente da República seguirá para o Palácio do Planalto. Em 2003, o novo ocupante da casa assumiu seu lugar no parlatório e, com um discurso de improviso, prometeu “derrotar a cultura da impunidade”. É possível que a ênfase mude.
O dia terminará com uma recepção noturna no Palácio da Alvorada, também para convidados brasileiros e estrangeiros. O evento requer alguma animação musical. O ministro Gilberto Gil, caso continue no cargo, dificilmente poderá misturar funções. Chico Buarque, de Paris, talvez mande um cartão. É possível que a ala baiana, agora robustecida, seja solicitada a trazer seus tambores.