ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O príncipe de Copacabana
Como falir sem perder a elegância
Antonia Pellegrino | Edição 2, Novembro 2006
Aos 57 anos, Diduzinho Souza Campos tem todos os motivos para ser casmurro, ressentido e rabugento, mas não é. O enfant gâté dos anos 70, que só fazia a barba no Country Club e achou ruim quando se mudou da mansão de cinco andares, em Copacabana, onde vivera 25 anos, para um apartamento debruçado sobre o mar de Ipanema, hoje mora num modesto imóvel de 85 metros quadrados no Corte do Cantagalo. Nenhum bacana mora por ali. Filho único dos jet setters Didu e Tereza Souza Campos, Diduzinho não reclama: “O espaço é pequeno, mas é só abrir a janela que se tem a sensação de amplitude”.
Não que Diduzinho aprecie a vista. Faz 24 anos que seus olhos deixaram de funcionar. Tudo lhe parece completamente desfocado, mesmo com a ajuda de dois óculos, um para longe e outro para perto, ambos fundo de garrafa. “Nem sei o meu grau. Só sei que disso não passa, é o maior que se pode ter. Minha visão piorou com a idade, os óculos não podem acompanhar.” Aos olhos de Diduzinho, as pessoas não envelhecem, tudo é colorido, as luzes resplandecem, as cores brancas brilham como fogos de artifício. “O espetáculo dos fogos no final do ano, eu vejo melhor que todo mundo”, se gaba. A audição tornou-se uma terceira bengala. Certas atividades, como passar a chave na fechadura ou usar o controle remoto, são feitas apenas com o tato. “Tive que reaprender tudo, até a andar”, ele diz, caminhando vagarosamente por Copacabana, o braço esquerdo apoiado na acompanhante, uma bengala de galho de goiabeira na mão direita. Passa uma loira, Diduzinho olha. E pergunta: “É bonita?”.
Diduzinho tinha olho vivo para loiras, ruivas e morenas. Até a noite de 22 de setembro de 1982. Virado já fazia três dias, foi jantar no restaurante Fiorentina e esticou na boate Hippopotamus. De lá, seguiu para casa e, na curva do Calombo, na Lagoa, seu Passat derrapou. Diduzinho foi cuspido através do vidro. “Quando cheguei no pronto-socorro, meu rosto parecia uma rosa”, lembra. Daí seguiram-se quatro meses entre a Clínica São Vicente e tratamentos em Houston. Quando Diduzinho deixou o hospital americano, estava cego do olho direito e com apenas 10% da visão do olho esquerdo.
O ex-playboy andava sem carteira. Nos restaurantes e boates sua assinatura em qualquer papel era tratada como dinheiro. Chegava a gastar o equivalente a 3.500 reais numa noitada. Hoje é aposentado por invalidez no INSS e vive apenas com a pensão de mil reais por mês, além de ajudas casuais de familiares e amigos. “Estou sempre devendo ao banco, é um inferno. Me sinto sentado numa bomba. Não sei viver assim. Para mim, as coisas sempre caíram do céu”, conta.
Diduzinho faz várias fezinhas por dia.Começa pela manhã, presenteando a esposa, Carmen de Souza Campos (quinze anos de casados), com duas raspadinhas de 50 centavos: “Eles pagam até 10 mil”. Ainda à mesa do café-da-manhã, Carmen abre o jornal e lê em voz alta o resultado da loteria. Diduzinho aposta religiosamente há mais de quinze anos. Ganhou uma única vez, 86 reais no terno da quina. “Se eu acertar, compro um apartamento no meu prédio mesmo, faço um seguro-saúde e vou para Paris”, ele diz, e emenda animado: “O bom de jogar na loteria é que a gente vai pra cama e esquece os problemas, só pensa no que vai fazer com o dinheiro se ganhar no dia seguinte”.
Herdeiro do título de conde da Graça, concedido pelo rei de Portugal ao seu tataravô, Diduzinho foi criado entre as pradarias do Gávea Golf Club, onde jogava quatro dos seis tempos de pólo no time dos amigos de seu pai, e o Country Club, onde passava a tarde praticando sinuca e tênis, de papo nas grandes mesas de almoço ou nos banhos de piscina. Diduzinho ferveu nas boates Le Bateau, Girau e Zum Zum num Rio de Janeiro fantástico, década de 1970, quando pululavam festas no estilo Grande Gatsby local. “A cidade era muito pequena. Todo mundo se conhecia. Eu chegava na Zum Zum e, pelos carros, antes de entrar já sabia quem estava lá.” Entre outras atividades sociais, chegou a freqüentar diversos cursos na PUC. Não se formou em nenhum. “Nunca quis largar a barra da saia de mamãe, não batalhava nem sabia ganhar dinheiro. Sabia dar dinheiro.” E foi o que Diduzinho fez — enquanto pôde.
Já em 1972 apareceram as primeiras dificuldades. A separação dos pais acelerou o processo de venda dos bens da família. “Meu avô, Vilobaldo Souza Campos, foi rico. Meu pai torrou a herança. Era funcionário do Banco do Brasil, tinha uma vida que não condizia com o que ele ganhava”, conta Diduzinho, que aos 25 anos se viu obrigado a pegar no batente. Como adorava fotografia e cinema, foi contratado por Bruno Barreto para fazer fotografia de cena no filme A estrela sobe, mas abandonou o set de filmagens para viajar. Ainda assim, na volta aproveitou a experiência e conseguiu um trabalho de cinegrafista na TV Globo. A vida de estivador não lhe caiu bem. Logo o playboy foi transferido para o departamento de vendas internacionais da emissora. “Minha sala e a do Otto Lara Resende eram vizinhas. Os almoços naquela época demoravam horas. A Globo era glamourosa.” Em outro tom, a festa continuava.
Não continua mais. Diduzinho soube se adaptar. Hoje seu maior interesse é manter a serenidade. Suas terapias são os exercícios na academia de ginástica do 30º andar do Othon Palace, três vezes por semana, e duas sessões semanais nos Alcoólicos Anônimos da rua República do Peru, em Copacabana. “Não faço nada sozinho. Preciso da Carmen pra tudo. Sem a minha mulher eu fico perdido”, diz ele ao entrar na sala dos AA — codinome: Aerolíneas Argentinas —, onde gosta de sentar sempre no mesmo lugar, uma cadeira atrás da pilastra, para se proteger do sol. Na hora de seu depoimento, a voz mansa, calma e pausada dá lugar a uma fala ansiosa e atropelada, como uma catarse: “O cavalo passou selado e eu não montei” e “Acelerei na reta e derrapei na curva” são os seus bordões. “Eu entro chorando e saio rindo”, comenta já no ponto de ônibus, fazendo sinal para o circular. E revela: “Gosto de andar de ônibus. Aqui a gente vê as pessoas e fica imaginando a vida que elas têm. Se a gente soubesse, se surpreenderia. Ninguém diria que eu sou filho de princesa”, diz ele, referindo-se ao título de princesa que Tereza ganhou em 1990 ao se casar com dom João Nepomuceno Maria Felipe Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança.
De volta a casa, Diduzinho se apressa em fazer a cama. “A Carmen briga comigo se eu não estico o lençol. Ela tem mania de limpeza, só temos empregada de quinze em quinze dias, mas aqui é tudo organizado”, diz orgulhoso, enquanto abre a geladeira e a despensa e mostra a arrumação perfeitamente simétrica. “De noite, encontro o que quiser sem precisar acender a luz.” Carmen ordena o armário de Diduzinho em ton sur ton para facilitar. “Meu corpo não mudou muito”, comenta garboso. “Essa calça eu comprei no Saint Laurent há trinta anos; uso até hoje.” Diduzinho preza muito a elegância. Adora azul, roupa bem cortada, feita de tecido nobre. “Não uso meia que tenha náilon, só com fio escocês.” Veste-se com apuro. Caminha altivo. Ao longo do dia, suas roupas não amarrotam. “Respeito certos rituais na área da vestimenta. Tenho uma roupa para ir ao médico e outra para tomar café. Odeio ir com a mesma roupa de um lugar para outro. Nunca usei calça bege com sapato preto. Hoje eu noto essas coisas e fico horrorizado.” Diduzinho diz: “Eu tinha uma vida de príncipe e não sabia”.
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