ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Camaradas!
O PCB existe, luta e não entrega os pontos
João Moreira Salles | Edição 3, Dezembro 2006
De quinze em quinze dias, sempre às 8 da noite, o grupo Horácio Macedo do Partido Comunista Brasileiro se reúne no segundo andar de um pequeno prédio nos fundos do estacionamento de uma academia de ginástica. Dele fazem parte os militantes comunistas da base Zona Sul do Rio de Janeiro. Nos últimos anos, a base teve atividade quase vegetativa, consequência direta do já longínquo trauma de 1992, ano em que o deputado Roberto Freire fundou o Partido Popular Socialista e levou consigo boa parte dos militantes do Partidão. O cisma foi tremendo; a dor de alguns velhos militantes, também. Como se não bastasse o fim das referências históricas – o muro de Berlim tinha vindo abaixo em 1989 –, o PCB ainda se viu diante do horror supremo de perder seu símbolo mais precioso. Recorrendo ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) – de cujas atribuições faz parte a regulamentação da propriedade privada de bens imateriais, como os símbolos –, o PPS tentou registrar a foice e o martelo como coisa sua. Era demais. Depois de muita luta, o PCB recuperou seu direito de existir. Em 1993, o TSE concedeu-lhe registro provisório, mais tarde transformado em definitivo. Concomitantemente, os técnicos do INPI negaram o pedido do PPS, devolvendo ao Partidão o direito de estampar a foice e o martelo na sua bandeira. Era o início de um duro recomeço.
Com atraso de meia hora, seis militantes se sentaram em torno de uma mesa de madeira escura para discutir questões burocráticas e conjunturais. A sala pertence à ASA, a Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação, que reúne judeus seculares e progressistas. No andar de cima funciona uma academia de dança de salão. Nos fundos, há uma biblioteca com oito mil volumes em iídiche, entre os quais O Capital. Ao lado, numa sala também cedida pela ASA, a Orquestra Rio Camerata ensaia uma obra de Haendel, com soprano e tudo. Ao longo das próximas horas, piruetas vocais atravessarão as paredes e se misturarão às deliberações do partido.
Os comunistas dão início aos trabalhos. Roberto Léllis, 62 anos, advogado e professor universitário (em greve), propõe a leitura da ata da reunião anterior, para que possa ser votada e aprovada. Nenhum dos cinco integrantes a leu. A providência é suspensa. Paulo Schueler, 26 anos, radialista e estudante de jornalismo, militante desde os 19, toma a palavra. A direção do partido pediu-lhe que passasse alguns avisos. Em primeiro lugar, dá notícias sobre alguns dos camaradas ausentes. O primeiro por causa de resfriado, o segundo derrubado por uma erisipela. Em seguida, anuncia que o partido conseguiu verba para mandar dois camaradas a Lisboa, sede de um encontro internacional de partidos comunistas e operários. Também avisa que, no início de dezembro, a Comissão Política do PCB se reunirá para discutir as seguintes questões:
1. Finanças do partido;
2. Apoio a uma nova central sindical;
3. Relações com o Partido Humanista.
Schueler observa que o PCB tem estreitado laços com o PH do Equador. “Já definimos uma agenda comum.” O partido apoiou um candidato do PH nas últimas eleições presidenciais equatorianas, e agora o candidato (derrotado) virá ao Brasil para dar prosseguimento às conversas. “Faremos uma atividade cultural com os equatorianos. Vamos programar um filme tipo O Corte, do Costa-Gavras, para não passar de novo o Outubro.” Aliviados, os comunistas aprovam a programação.
Terminados os avisos, Léllis enumera a pauta da reunião:
1. Aprovação da ata passada;
2. Determinar a data da festa de fim de ano;
3. Procedimentos relativos à festa;
4. Conjuntura.
Com a suspensão do item 1, passa-se imediatamente ao item 2. A data escolhida foi o dia 2 de dezembro. Chega-se então ao item 3, e a longa discussão que se segue é um sinal eloqüente do esforço desses seis militantes para reerguer o PCB. Há menos de vinte anos, as idéias defendidas nessa sala dominavam quase um terço do planeta. Hoje, a base Zona Sul precisa deliberar bastante antes de decidir se deve ou não pensar grande antes de organizar uma festa de fim de ano. Duas proposições são postas na mesa. A primeira, mais ambiciosa, prevê a contratação de um grupo musical e de um fornecedor de comidas e bebidas, com o qual a base racharia o lucro – as finanças estão à míngua. A segunda, mais modesta, propõe que a festa se restrinja a uma pequena confraternização entre amigos.
Jacques Gruman, 55 anos, engenheiro químico e militante desde garoto – “Fui desencaminhado pelo meu tio da Bessarábia”, brinca –, é o defensor da opção modesta. Gruman fala do PCB com entusiasmo contagiante. Ainda assim, é um realista: “Para fazer alguma coisa de porte, nós deveríamos ter capacidade de atrair um número considerável de pessoas. Ainda estamos muito frágeis. A base está se reorganizando. Se a gente contrata grupo musical, bufê, comida e aí só aparecem quinze pessoas, é muito frustrante”. Roberto Léllis pondera: “E se cada um de nós fizesse uma lista de quinze pessoas? Quem sabe não aparecem pelo menos umas cinqüenta?” Uma mulher esguia e de rosto bonito, Elena Gaidano, 47 anos, tradutora “e remadora do Vasco”, sugere que se divulgue a festa nas academias de ginástica e de dança de salão.
Joycemar Lima Tejo, 28 anos, advogado, ouve a tudo com ar circunspeto, o queixo apoiado na mão, olhos para o alto, como se sopesasse as propostas. Tem algo de enigmático. Veste uma camiseta do PCB com a foice e o martelo no peito. Sua voz é mansa, suave. “E por que não fazer dessa atividade a atividade do partido, e não apenas da base?” É uma idéia. “Se o coletivo apoiar, a base pode ir ao partido levar a proposta, mas é preciso fechar questão em torno disso. Eu proponho que a gente vote.” Votam. Por unanimidade, Léllis irá à direção do partido.
Caso a idéia não vingue, a confraternização será apenas entre os amigos da base Zona Sul. Gaidano lamenta: “No caso da festa ser só da base, aí não seria uma atividade de finanças”. Seria “atividade caseira”, o que significa débito e não crédito. Para ajudar nas contas, decide-se rifar dois livros durante a festa: PCB – 80 Anos de Luta (10 reais a rifa) e Os Desconhecidos da História da Imprensa Comunista (5 reais a rifa). Cada militante receberá dois talonários com cinco rifas cada.
A discussão em torno da festa ocupa boa parte da reunião. São 21h37. Léllis pergunta: “Pessoal, a hora já está adiantada. Vamos fazer uma conjunturinha? Quem quer se inscrever?”.
Silêncio.
Ricardo Pinheiro, 41 anos, técnico em informática, traz um broche do PCB na camisa. Tem o rosto e a intensidade de um revolucionário de 1917 – os olhos são penetrantes, o cavanhaque lembra o de Lênin. Ele levanta a mão. “Fui à última reunião do Tortura Nunca Mais. São pessoas sérias, progressistas. Estão dando apoio à família que está processando o Brilhante Ustra. Acho que devemos ajudá-los.” Gruman apóia a idéia: “Temos de mostrar a nossa cara. Nos impuseram essa noção de que o PCB não poderia se aproximar dessas ONGs sob risco de instrumentalizá-las, e nós aceitamos. Isso esteriliza a idéia do partido”. A moção recebe o apoio de todos. Nem é preciso votar.
Léllis: “Próximo inscrito? Ninguém? Então falo eu. Queria retomar o assunto do Brilhante Ustra. Quem passou por ele diz que o Filinto Müller era aprendiz de feiticeiro. O julgamento do Ustra é histórico. A elite brasileira é indulgente, perdoa. A anistia é sempre para o torturador. Nunca um homem como o Ustra foi levado a julgamento. Nós devíamos atuar. Não sou jurista, mas acho que a Lei da Anistia, que é de 79, não foi acolhida pela Constituição de 88. A Constituição de 88 deixa claro que o crime de tortura é imprescritível, portanto anula qualquer dispositivo em contrário”. Vota-se que Léllis seja o embaixador da base Zona Sul junto ao Tortura Nunca Mais.
Schueler pede a palavra. Seu tom de voz é de um sarcasmo sombrio: “Vou falar de conjuntura para ver se anima um pouquinho. O Tarso Genro diz que acabou a era Palocci e é repreendido. A Dilma Rousseff defende o déficit nominal zero. Depois o Meirelles diz que fica. Em seguida, aparece o Gerdau e o Delfim Netto. Ano que vem vai ser muito difícil. Temos que nos adiantar. No cenário internacional, houve a entrada do Vietnã na OMC. Mais um tigre asiático. Isso traz perspectivas de discussões longas entre nós. Os partidos que chegaram ao poder – que tipo de concessão eles têm de fazer para alimentar seus povos? A derrota de Bush vai mudar a correlação de forças.”.
Léllis (interrompendo): “A vitória dos democratas não melhora em nada a minha vida”. Todos, em uníssono: “Nem a minha”.
A eleição na Nicarágua parece importar mais do que a americana. Ricardo Pinheiro toma a palavra: “Essa eleição me assusta muito. O Ortega se apresenta como o ex-guerrilheiro, o ex-marxista; vive falando em Deus. O que é isso? A coisa tá feia. O Lula é mesmo um representante do grande capital. Vejam esse infeliz capitalista que o Paulo mencionou, esse Gerdau. Vai ser um governo que a direita gostará de ver. O PCB tem uma contradição incrível. Avaliou o projeto neoliberal do Alckmin e do Lula e indicou o Lula. Erramos. Não fomos vanguarda”.
Gruman e Schueler levantam a mão. Léllis olha para o relógio. “Nosso tempo já estourou. Se o coletivo aprovar, vou dar três minutos para o Jacques e dois minutos para o Paulo.” O coletivo aprova.
Gruman: “Só alguém tão despreparado como o Lula pode achar que é possível conciliar um país tão desigual. Essa tal concertación é uma ilusão. Outra coisa: o mundo ficou diferente. Vocês falam em uma nova central sindical. Qual o sentido do sindicato hoje em dia? Essa não é uma questão trivial”.
Schueler usa seus dois minutos para defender a posição do PCB. “O que seria do MST com o Alckmin? O que seria da Bolívia com o Alckmin?” Os seis comunistas concordam que Lula era a opção menos ruim. Ainda assim, o capital virá “com os dois pés”. “A ofensiva do capital é vergonhosa.” É a última frase da noite. Todos se levantam e partem sem esmorecer.