Há dezoito meses no elenco de O Fantasma da Ópera, com sete sessões por semana e apresentação dupla no final de semana FOTO: CIDÁLIA CASTRO_2006
Gatinha, você está editada!
A difícil conciliação dos testes para comerciais com a atuação no musical da combalida Broadway paulistana
Anna Toledo | Edição 4, Janeiro 2007
Ela só não integrou o elenco do musical Hair, na primeira montagem brasileira, dirigida em 1969 por Ademar Guerra, porque nasceria em Curitiba, Paraná, meses depois. Mas, desde os 18 anos, a voz e presença de ANNA TOLEDO vibram em produções musicais como Ópera dos Três Vinténs, O Beijo da Mulher Aranha, A Bela e a Fera, O Fantasma da Ópera. Ela tem formação em artes cênicas e canto lírico, e correu mundo ampliando seu currículo — jazz e teatro musical em Boston, nos Estados Unidos, repertório lírico em Karlsruhe, na Alemanha. Já foi Donna Elvira em Don Giovanni, uma das Três Damas na Flauta Mágica, e está escalada para a produção de My Fair Lady, com estréia prevista para este ano. Espremendo o tempo, consegue ser compositora, com dois discos lançados (Viva! e Frescura). Espremendo ainda mais, cumpre agenda no circuito de testes de elenco para comerciais.
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QUARTA-FEIRA O celular toca no meio da tarde. É a Sandrinha, booker da minha agência, com boas notícias.
– Gatinha, você está editada para o material do Comfort!
Uau. Boas mesmo. Se eu for aprovada, o cachê previsto é de 3,5 mil reais, descontadas, já, a nota fiscal e a parte do agenciamento. É um dinheiro que cai muito bem na minha conta. A agente continua:
– De hoje até sábado você não sai da cidade, não corta o cabelo, não pinta a unha, não muda nada!
– Quando eles vão decidir?
– Até sábado, meio-dia. Grava no sábado à tarde ou no domingo.
– Sandrinha, eu trabalho no final de semana. Não posso avisar em cima da hora que vou faltar!
– Que horas você pode gravar no sábado?
– De madrugada. Ou domingo, depois das onze da noite.
– Só depois das onze?!, ela pergunta.
– Não dá para mudar a gravação para segunda-feira?
– Gatinha, vou ligar para o cliente e explicar o teu caso, Ok? Qualquer coisa te ligo de volta.
Dez minutos depois, Sandrinha liga para dizer: “desencana”. O que significa que não dá para adaptar o horário deles ao meu. Acabei de ser “deseditada”. Desligo o telefone tão triste pela minha agente quanto por mim. Ela bem que faz força. Eu quase nunca consigo conciliar os horários do teatro com as gravações dos comerciais. O que significa que faço muito teste à toa. Para crédito da agência, eles continuam me mandando para testes. Se fosse eu, já teria desistido de mim.
O esquema funciona assim. Você é atriz ou ator, vai numa agência especializada em atores, faz uma ficha, leva uma headshot (uma foto de rosto, em 13x18cm), sorri, conversa, mostra os dentes (é sério) e eles te dizem se querem te agenciar ou não. Significa que eles vão “vender” você para trabalhos em publicidade, televisão, cinema. Vão intermediar o seu contato junto às produtoras de comerciais e emissoras de televisão. Quando você não conhece ninguém em São Paulo, é um bom caminho a seguir.
Uma vez aceita por uma agência – ou duas, ou três, ou mais – a atriz precisa produzir material de divulgação. Um videobook, contendo seus trabalhos mais significativos em vídeo-publicidade, mais fotos em caracterizações variadas – executiva, sofisticada, dona-de-casa, por aí vai. É cartão de visitas de luxo, que fica com os bookers nas agências e será enviado às produtoras de elenco sempre que aparecer um material com o perfil do ator.
O perfil é uma coisa simples: é a cara que a atriz ou ator tem. Ao mesmo tempo, é um conceito bastante obscuro, porque se baseia no impacto inicial que um rosto provoca. Eu, por exemplo, tenho 36 anos, traços arredondados e voz suave. Meu perfil: mãe e dona-de-casa. O comum é ser selecionada para testes de comerciais (ou materiais, como eles são chamados) de produtos como desinfetante, sabão em pó ou xarope infantil. No entanto, sou uma atriz cômica, ou acredito ser.
Certa vez, numa agência de atores, tentei argumentar com meu talento cômico. Ouvi de volta:
– Gatinha, você não tem perfil para caricato. A gente trabalha com tipos, mas você não é um. Você é bonita. Não é o que um cliente procura, quando quer um tipo.
Um tipo: uma pessoa de nariz grande, ou sem queixo, ou velha, ou gorda, ou muito baixinha, ou vesga, ou de etnia bem marcada, ou simplesmente não-bonita dentro do conceito publicitário.
– Posso representar uma pessoa esquisita, arrisquei.
– Você não entende o mercado aqui em São Paulo. Aqui você não precisa representar gente esquisita, eles já existem e já trabalham. Temos um catálogo só com exóticos. Você não vai ser chamada para um cast fora do seu perfil. É perda de tempo.
SEXTA-FEIRA Feriado, ligo para minha amiga Renata:
– Você não ia viajar?
– Fui editada para um material do Visa. Não posso sair da cidade, estou em stand by para gravar.
– Então vamos tomar um café, proponho.
Renata grava muito mais que eu. Ok, péssima comparação, já que eu não gravo nada, ultimamente. O fato é que a Renata vive exclusivamente de gravar publicidade. A sua média é de dois materiais por mês. Nem todos pagam a mesma coisa. Aliás, nunca o valor é o mesmo – um cachê de publicidade pode variar de mil a 15 mil reais, para um ator anônimo (ou não-famoso). Depende do produto, da duração da campanha, do papel que o ator vai representar (principal, coadjuvante, figuração), do número de peças que ele vai gravar (se é um comercial só ou vários), da veiculação (regional, nacional ou internacional) e da quantidade de mídias envolvidas (televisão, rádio, jornal, internet, cinema, cada um tem um preço).
No café, ela conta do teste que fez, para um refrigerante, em que o figurino era shortinho e top. Ela ligou para sua agente aos berros, gritou com a produtora de elenco, com os diretores, com a moça do financeiro, saiu às turras da produtora e nem pegou o cachê-teste.
– Eu tenho trinta e cinco anos! Pelo amor de Deus! Como é que me mandam para fazer um teste de shortinho?
TERÇA-FEIRA Teste para um cartão de crédito, na Vila Madalena. Chego na hora marcada e abanco-me na cadeirinha de plástico. Na espera para gravar há velhinhas, jovens senhoras (meu caso), duas garotas de uns vinte e poucos anos, crianças, homens de gravata, outros de camiseta pólo. Um caso de briefing vago, provavelmente: às vezes, o roteiro não especifica exatamente os perfis desejados e a produtora de elenco chama um pouco de tudo. Será uma tarde longa. Vão chegando outros atores, pegando suas claquetes, olhando a hora, procurando o cafezinho. Quase todo mundo se conhece.
– E aí? Pegou aquele material?
– Nada. Mudaram o perfil na última hora.
– Este povo não sabe o que quer.
– Dureza, viu?
– Raspou a cabeça?
– É. Pra peça que estou fazendo. Agora tenho que fazer fotos novas. Você conhece um fotógrafo baratinho?
Na ante-sala da 02, uma das maiores produtoras de vídeo e cinema de São Paulo, havia, até meses atrás, um cartaz na mesa da recepcionista que dizia o seguinte:
“FRASES PROIBIDAS:
– Vai demorar muito?
– Posso passar na frente?
– Posso falar com a [nome da produtora de elenco responsável]?
– Posso pegar outra claquete?
– Acabou o café?
– Onde passa ônibus pra Paulista?
– Posso usar o telefone só um pouquinho?
– Pode chamar um táxi pra mim?
– Tem cachê-teste?”
O cachê-teste é uma ajuda de custo paga pelas produtoras, uma compensação pelo tempo que o ator gastou ao fazer o teste. Costuma ser em torno de trinta reais e o ator precisa apresentar seu DRT (registro profissional) para recebê-lo. Em São Paulo, um ator extremamente disposto, e com grande capacidade de deslocamento, consegue fazer até quatro testes por dia. Durante um longo período da vida, meu amigo Roberto chegou a fazer dez testes por semana. Tirava 1.200 reais por mês. Para a maioria dos atores, a realidade é diferente. Nem todas as produtoras pagam pelos testes, nem todas as agências exigem cachê-teste para o ator, nem todos os atores são mandados para tantos testes por semana. Acontece às vezes de um ator ir fazer um teste sem o intermédio de uma agência e, neste caso, fica mais difícil ainda a produtora pagar a ajuda de custo.
De volta ao teste na Vila Madalena. Depois de passar pela maquiagem, entro no estúdio. Há um xis feito no chão, com fita crepe, indicando onde devo ficar. A câmera fica a uns quatro metros, no outro lado da sala, e o microfone está suspenso por um longo cabo, ou boom, que um operador segura detrás da câmera. A diretora explica brevemente do que trata o comercial:
– É uma família que está no aeroporto. Você é a esposa, que está viajando com seu filho e seu marido. Vocês foram visitar seus sogros, em Brasília. Agora vocês estão voltando, e a sua sogra está se despedindo, no portão de embarque. O seu filho está triste. Você está alegre, mas com pena do seu filho e da sua sogra. Ok? O teu personagem só vai acenar para ela, no fundo da cena. Mas o teste não é nada disto. Eu quero que você conte para mim, olhando para a câmera, como é a sua relação com a sua sogra.
– A relação do meu personagem com a sogra?, pergunto.
– Não. Você é casada?
– Sou.
– Então. Fale da sua relação real com a sua sogra. Sem interpretar, muito natural. Depois que eu disser… pode ir… gravando!
Busco um ar de nora, sorrio, e começo:
– Minha sogra é bacana. Mas a gente mal se encontra. Ela mora em Alphaville. Eu nunca vou aos almoços de família porque trabalho nos finais de semana. Na verdade, a gente só passou um Natal junto. Da última vez, a gente convidou os meus sogros para irem lá em casa, e eles não foram.
A diretora coça a cabeça e agradece a minha presença. Pego meu cachê-teste e vou direto para o trabalho.
QUARTA-FEIRA Minha ocupação principal é o teatro. Trabalho no musical O Fantasma da Ópera. Há dezoito meses, faço sete sessões por semana, de quarta a domingo (sessões duplas no final de semana), cantando, atuando e, vá lá, dançando. Ao longo dos últimos anos, sempre estive em cena. Desde que vim para São Paulo, em busca de uma carreira que merecesse este nome, tenho a sorte de viver profissionalmente como atriz. A paga é justa: cerca de 120 reais por récita, já descontados os impostos – o cachê varia de acordo com o papel desempenhado na peça. Pago minhas contas, a academia, as aulas de canto. Compro livros e discos e não barganho o preço das frutas orgânicas no mercadinho. E tenho plano de saúde.
Ainda assim, há um desejo de reconhecimento imediato que me impele a insistir nos testes publicitários. O reconhecimento e, também, a promessa de cachês que pagam até o dobro do meu salário mensal por um dia de trabalho. Há trabalhos, no entanto, que gravo com a esperança de que ninguém assista. É o temido varejão. Quem quer ser lembrado por anunciar cortes de alcatra resfriados? O Espectro da Imagem Queimada ronda todo ator de vídeo, em qualquer época da sua vida. A Imagem Queimada pode significar exílio permanente, por motivos que vão desde hiperexposição nas telas até um comercial de um produto… bem, ruim. Ninguém está imune. Na dúvida – e pensando na prestação do carro – arrisco-me.
Já o meu amigo Roberto é um paradigma para todo ator de publicidade. Hoje, ele tem mais limitações de horário que eu – também trabalha no Fantasma da Ópera, além de fazer dublagem – o que significa que ele não tem os finais de semana livres para gravar, nem todas as tardes livres para fazer testes. Ainda assim, conseguiu criar uma relação de cooperação com as produtoras, que se adequaram dentro do possível ao seu cronograma. Atualmente, ele quase não faz testes – no máximo dois por semana. As produtoras de elenco já o chamam direto, sem intermédio da agência, porque já reconhecem o seu perfil. E – Ó, Grande Fortuna! – os diretores mostram-no para o cliente direto do videobook. O resultado é que Roberto gravou pelo menos um bom material (protagonista em filme de veiculação nacional) por mês, nos últimos dois anos, conciliando seu trabalho no teatro e como dublador.
O curioso é que, quando perguntei a ele qual era seu perfil, ele respondeu: “estou numa idade difícil”. Bonito, aos 36 anos, ele diz que ainda não tem maturidade para o chefe-de-família-de-propaganda-de-banco, mas já passou da fase de garotão-de-praia-de-propaganda-de-cerveja. Então qual é o perfil que você vende? “Vendedor simpático”, ele responde. “Se precisar falar com o espectador, eu sempre pego”.
SEGUNDA-FEIRA O celular toca antes das nove da manhã. É meu dia de folga. Ninguém que me conhece faz uma coisa destas, a menos que…
Atendo. É uma produtora de eventos. Ligou por recomendação da Fulana de Tal. Quer saber se posso cantar na abertura de um congresso evangélico, na semana que vem. Uma música só, com orquestra. Paga bem. Claro que posso.
– Só mais uma coisa – ela acrescenta: – Você é evangélica?
– Não – admito.
– Tem algum problema em dizer que é evangélica, se perguntarem?
É muito cedo. Passei a noite anterior trabalhando, e parte da madrugada bebendo com as amigas. Faz três horas que vim deitar. Meus escrúpulos, no entanto, já dão sinal de entendimento:
– Meu, é complicado… – começo a dizer.
– Ok… Tudo bem.
Fico sem saber se é um sim ou um não. Ela já desligou e eu já voltei a dormir.
TERÇA-FEIRA Teste para uma operadora de telefonia celular, no Morumbi. Dois ônibus e quinze minutos depois, irrompo no estúdio, suando. A rua está um forno e o tempo de cozimento não beneficiou nem meu cabelo nem minha maquiagem. Entro, olho em volta. Do balcão, a produtora, levemente intrigada, me manda preencher a ficha. As outras meninas têm pelo menos dez anos menos que eu. Pergunto se é o mesmo teste para todo mundo. O cliente quer vários perfis, explica a produtora. Entrego a ficha, pego a minha claquete e agora posso olhar melhor minhas concorrentes. Elas não são dez anos mais novas que eu. São vinte anos mais novas que eu! E quinze centímetros mais altas!
Pouco antes do meu número ser chamado, a produtora aponta o dedo para mim:
– Você. Pra sala de maquiagem. Vamos tirar esse ar cansado.
Aparentemente, um rímel e um blush produzem efeito. Vou para a fila da foto com duas camadas de Long’Optic de Dior nos cílios, e um Revlonzinho nas bochechas. É um teste rápido: apenas algumas poses, segurando um celular. O fotógrafo pede para eu ficar por último, para reajustar a altura do tripé uma vez só. As meninas olham-me com um sorriso compreensivo. Como se dissessem: “Ah, eu entendo, eu também já tive a sua altura – quando eu tinha oito anos“. Minhas fotos levam cinco segundos para serem tiradas.
Dois ônibus, duas horas e trinta e dois minutos e três fotos depois, eu resolvo visitar o meu marido no seu escritório, só pra não perder completamente a viagem. Ele me encontra na Praça de Alimentação, do Market Place, onde trabalha, também no Morumbi.
– Nossa. Você está linda.
– Fui fazer um teste – explico.
– Aposto que você vai passar. Não devia ter nenhuma menina mais linda do que você.
Pago o café pra ele.
QUARTA-FEIRA Teste para um shopping center popular, no Alto da Lapa. O roteiro celebra as efemérides de final de ano. Entro no estúdio já maquiada, vestida com a blusinha de linha bege, básica, que o Figurino providenciou. Cumprimento a diretora e o cameraman, posiciono-me sobre a fita adesiva pregada no linóleo e gravo a minha claquete – número 65 – onde sorrio, digo meu nome e idade para a câmera. A diretora então se aproxima e explica que é uma propaganda de Natal, claro, e que o roteiro é muito livre: serão depoimentos “verdadeiros” sobre a data. Ela apenas precisa que eu fale o que o Natal significa para mim. Ok? Gravando.
– Ah, Natal, para mim é encontrar minha família em Curitiba, é decorar as janelas de casa com luzes coloridas, é cheiro de pão feito em casa (sabe, aquele pão de passas?), é montar o presépio, celebrar o nascimento de Jesus…
– Não, não – ela interrompe.
– Desculpa?
– Não fala em Jesus, não.
– Ah! Ok.
– Pode repetir, que estava bom. Só muda o final, que o cliente não quer que fale de religião.
SEXTA-FEIRA Marcel, meu marido, me acorda às oito e meia com beijo de bom-dia. Pelo tom do beijo, percebo que sua semana está terminando. Abro os olhos: jeans, camisa, sapato. O casual day é um conceito obscuro para mim, mas parece alegrá-lo bastante. Desejo-lhe um bom dia e durmo até às dez. De hoje até o domingo à noite, ainda tenho cinco shows pela frente. Quando sair do teatro, depois da sétima (e última) sessão da semana, louca por uma caipirinha, Marcel estará se preparando para dormir e encarar a sua nova semana, na manhã seguinte. O nosso amor é tão bom, o horário é que nunca combina, comentou Chico Buarque – e eu demorei pra atinar que era comigo.
SEGUNDA-FEIRA O evento evangélico – confirmado, afinal – é num hotel de luxo, em São Paulo. Chego cedo. Não tive nenhum ensaio, apenas conversei com a produtora e ela me passou os detalhes pelo telefone. Roupa preta, sapato fechado, pode ser de cabelo preso? Claro. Vou cantar o Hino Nacional – em fá maior, outro detalhe acertado pelo telefone. Esses eventos costumam contar com ótimos músicos, pois um produtor se encarrega de contratar os profissionais pela cidade – na segunda-feira, estão todos de folga das orquestras. E pagam bem por uma hora e meia de música, sem ensaio prévio. O agrupamento resulta numa orquestra respeitável. Quase todo mundo se conhece – alguns são da Banda Sinfônica, outros da OSESP, um ou outro músico de estúdio. Todos têm bom treinamento musical, para dispensar ensaios e tocar a contento na hora do show. No meu caso, sou um canário – como os músicos se referem aos cantores, pejorativamente, pelo fato de que precisamos apenas abrir a boca para produzir som. Para este tipo de trabalho, no entanto, alguma experiência musical é desejada, mesmo para quem apenas abre a boca e canta.
Na primeira passada com a orquestra, durante o ensaio geral, a execução do Hino Nacional dura 4’30”. A produção vem falar com o maestro. Há um problema. Precisam sincronizar a execução do hino com um vídeo institucional de 3’00”. Será que daria para reduzir a duração da música? Cortar uma estrofe? Pular direto para o último refrão e cortar o interlúdio instrumental? O maestro pondera que, sendo o Hino Nacional um símbolo pátrio intocável, o máximo que poderia fazer seria tocá-lo mais rápido. Muito mais rápido. A produção aceita a oferta, mas não há mais tempo para ensaio. O palco é esvaziado e os músicos vão para o camarim, enquanto os convidados estão chegando.
Uma hora depois, somos anunciados ao palco. A orquestra ataca a introdução num andamento impossível. Meu coração dispara, a laringe estreita. Normalmente, canto o hino com tranqüilidade – cresci nos anos de ditadura, com as aulas de Educação Moral e Cívica, hasteando bandeira na escola todas as manhãs – mas neste caso não há tempo para pensar na estrofe que vem em seguida, e umas oitocentas pessoas me encaram, em posição de sentido, observando se eu canto primeiro o “sonho intenso” e depois o “amor eterno”. Três minutos cuspindo ferozmente os versos de Duque-Estrada. Parece que pulei de um avião e fiquei procurando a cordinha do pára-quedas, até o último acorde.
TERÇA-FEIRA Morumbi. Mais um daqueles testes místicos e sem roteiro. Nos testes, não é preciso mais verificar se o ator sabe falar, se a dicção é boa, se o sujeito sabe usar um teleprompter ou se decora texto. Tudo isto é pressuposto. Para um teste com cachê alto, as agências mandam seus melhores profissionais. Cabe ao diretor e ao cliente a criativa tarefa de fazer brotar pêlo em ovo: decidir quem, dentre a meia centena de atrizes competentes que preenchem o perfil solicitado, é mais identificada com o produto que será vendido, ou mais parecida com o que o diretor almeja, ainda que ele não saiba dizer exatamente o que procura.
Chego às dez da manhã, faço a ficha, pego a minha claquete, vou para a maquiagem, entro no estúdio, sorrio para o cameraman (é muito importante o câmera ir com a sua cara!), cumprimento a diretora e sento na poltroninha indicada. É uma entrevista gravada, a diretora vai fazendo perguntas: Profissão? Atriz. Idade? Trinta e seis. Casada? Sim. Filhos? Não. Por que não?
– Por que não teve filhos ainda? – a diretora quer saber.
– Deixa eu ver…
– Casada, com trinta e seis anos – interrompe – só não teve filho por preguiça!
Esgarço os cantos da boca, e deixo escapar um som muito semelhante a uma risadinha, enquanto pondero se vou enriquecer meu teste demonstrando outras emoções: irritação, impaciência, revolta. Sem deixar de sorrir, retruco:
– Imagine! Eu tento fazer filho que é uma beleza!
O cameraman solta uma gargalhada. A diretora sorri. Dois segundos de ar novo nos pulmões. Ela volta à carga:
– Então, me fale mais de você. Você é do tipo que toma aspirina à primeira dorzinha de cabeça?
– Não, porque eu sofro de enxaqueca.
Ops. Péssimo caminho. Ela faz uma cara preocupada. Pego o primeiro retorno:
– Por isso eu não posso ficar tomando analgésico à toa, é um horror, eu sei.
– Ah – ela parece aliviada. – Como você trata a sua enxaqueca?
– Com acupuntura e ioga, claro.
Claro. Óbvio. Só faltou eu mencionar florais de Bach. A diretora está satisfeitíssima. Elogia a minha “ótima desenvoltura e simpatia” e agradece a presença. Para que é este teste, mesmo?
A produtora de elenco quer que eu troque 50 reais para me pagar o cachê-teste. Fico esperando até outra atriz surgir com dinheiro trocado, enquanto ouço “My Favorite Things” no MP3 Player.
QUARTA-FEIRA Acordo às nove. Acupuntura. Aula de canto. Hoje chega a Danny, coreógrafa da Really Useful Group, companhia inglesa responsável por superproduções musicais em vários países e, em particular, pela supervisão da temporada do Fantasma da Ópera no Brasil. É a terceira vez que temos visita. De seis em seis meses, mais ou menos, um membro da equipe internacional baixa em São Paulo, para ver o que estamos aprontando.
Há uns dois anos, O Fantasma da Ópera teve seu elenco e equipe técnica selecionados por um time de diretores e coreógrafos, egressos da produção original inglesa, de 1986. Este grupo ensaiou a peça com o elenco brasileiro e partiu logo depois da estréia. Desde então, o espetáculo está sob a supervisão da diretora-residente, Tânia Nardini, e do diretor musical, Miguel Briamonte, ambos brasileiros de currículo extenso no showbiz. Eles assistem os shows regularmente e realizam ensaios pontuais com o elenco, a orquestra e os técnicos. A visita dos gringos faz parte do plano de manutenção. Danny vem assistir o show de hoje à noite e observar o que saiu do lugar ou errou de rumo [um esclarecimento: a cada récita, o ator encena o mesmo texto, a mesma música, as mesmas marcas e coreografias. Na repetição diária, porém, uma pausa se altera, uma nota se alonga ou se interpõe, um braço fica mais rígido ou um pé menos tenso. Depois de dezoito meses, com sete sessões por semana (faça a conta), tais alterações deixam de ser sutis: viram novas marcas, parte da cena, incorporadas à dinâmica do espetáculo]. Os gringos vêm com a missão de enxergar o que nossos olhos viciados já não vêem mais. A Danny assiste, toma notas e re-ensaia a peça com o elenco durante o resto da semana. É como se fizéssemos duas sessões extras, além das sete habituais. As apresentações seguem normalmente, o público não toma conhecimento.
A chegada do elenco está marcada para as 5 da tarde. Não vai dar pra fazer a unha.
A Broadway brasileira atende, com certa boa vontade, por um trecho de três quadras no início da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, na Bela Vista. Ali ficam o Teatro Bibi Ferreira, o Teatro Brigadeiro (antigo Jardel Filho), o Teatro Imprensa, o Oficina e o Teatro Abril (antigo Paramount) – palco das recentes superproduções teatrais, incluindo aí a peça onde trabalho atualmente. O caminho até o teatro é dos menos glamurosos. O tráfego na Brigadeiro é pesado; muitos prédios foram transformados em estacionamentos ou igrejas; as calçadas são disputadas pelos passantes com vendedores de espetinho, panfleteiros, mendigos e mal-intencionados genéricos. Fui assaltada, um dia, debaixo do viaduto da Treze de Maio, por três garotos de bicicleta, e cheguei no teatro com a perna toda ralada, porque fugi e tropecei. A maior concentração de pedintes fica justamente a uma quadra do Teatro Abril, na altura do Hospital Pérola Byngton. Ali, eles concorrem pela atenção dos transeuntes com alto nível de especialização: “Boa tarde, senhora. Gostaria de inteirar um prato de comida para a minha sogra que saiu da internação?” Alguns já me conhecem e me ignoram. Tempo é dinheiro.
De volta para casa, uma e meia da manhã. Recebo um e-mail de uma colega, sugerindo que volte a fazer aulas de dança, às segundas de manhã, por conta de um futuro trabalho. Ai, ai. Faço aula de dança como algumas pessoas param de fumar: de vez em quando, por pouco tempo e porque todo mundo diz que vai ser bom para mim. Aí um dia, secretamente, eu mato a aula e vou ao cinema…
QUINTA-FEIRA Nove da manhã. Não me animo a fazer testes às quintas-feiras – tenho ensaio no teatro, à tarde – mas desta vez a Sandrinha enfatizou que o material era a minha cara.
Chego cedo à produtora – um galpão, no Paraíso. Preencho a ficha, pego a claquete e leio o script: a personagem é uma dona-de-casa curitibana que compra no Supermercado Tal. Perfeito. Dois terços do perfil eu já preencho. Posso completar as lacunas com meus dotes interpretativos. Meia-hora depois, sou chamada. Entro no estúdio, posiciono-me, gravo a claquete. A diretora interrompe, chama a produção: será que ela não foi clara? O roteiro pede expressamente uma curitibana.
– Sou curitibana – esclareço.
– Você não tem sotaque.
– Como não?
– Há quanto tempo você mora aqui?
– Seis anos.
Ela faz uma cara contrariada para o produtor.
– Escuta, eu sei fazer o sotaque que você quer.
A diretora me olha por um momento e manda ligar a câmera de volta. Digo o texto com a minha melhor imitação de porto-alegrense.
– Aaaaahh, bom. Agora sim… – ela aprova, encerrando o teste.
SÁBADO é ladeira acima. Todos os esforços da direção do Fantasma – diretora, maestro, maestro-assistente, assistente de direção, dance captain, enfim – são para manter a concentração e o bom espírito da equipe no sábado. Não é difícil entender. Às três da tarde, entramos no teatro para permanecer ali por nove horas seguidas. Alguns acabaram de acordar. Outros, a maioria, já fizeram aula, ou deram aula, foram para a academia ou almoçaram com a família antes de vir. Todos entram no teatro olhando pro céu e comentando o lindo dia que estão deixando para fora. No domingo, será igual, só que um pouco mais cedo (entramos às duas da tarde e saímos às onze da noite). Mas domingo tem cara de descida.
A preparação segue uma rotina rígida: aquecimento corporal coletivo, depois colocação de perucas e microfones individuais, de acordo com um cronograma preestabelecido, depois aquecimento vocal. A maquiagem – fornecida pela produção – fica sob responsabilidade do ator, após a orientação dos chefes-maquiadores, lá nos primeiros meses de ensaio. Depois de quase dois anos sobra tempo na preparação e nos visitamos mutuamente nos camarins, contando as últimas novidades e ficando a par de todos os babados.
Meia-hora antes do primeiro show, a direção convoca uma reunião com o elenco. A diretora lembra-nos do espírito a preservar, da importância do frescor da performance, do público que está nos assistindo pela primeira vez. Justamente aos sábados deságuam caravanas para assistir o espetáculo; tantos ônibus que param o trânsito, enquanto descarregam adolescentes, velhinhas, famílias inteiras, de todas as partes do país, que conhecem as canções e que viram o filme e que depois vão nos dizer que gostaram mais da peça, se fizermos o nosso trabalho direito. Depois da reunião, não há muito mais a preparar – últimos detalhes de figurino, para quem usa um chapéu muito grande ou uma capa mais pesada, ou um bigode reaplicado, por causa do calor. Subimos as escadas para o palco, testamos nossos microfones no R/X e assumimos nossas posições nas coxias antes da segunda chamada.
Confesso (e não é só comigo) que o burburinho do público, após o black-out que sucede o terceiro sinal, estremece, sempre. Somos quarenta em cena. Ninguém respira. A luz acende. Está nas nossas mãos.
SEGUNDA-FEIRA Meu dia de folga. Chove em São Paulo. Aqui é tudo menos meio termo. Até ontem teríamos racionamento de água. Hoje já lidamos com a enchente. A Avenida Paulista à noite grita de tão bela. E há o horrendo Minhocão, por onde nunca passo incólume: sempre saio dali mais triste ou mais feia. Uma amiga diz que a cidade cobra um preço alto pela ocupação. É verdade. É um exercício de desligar o botão, embotar os sentidos, baixar a cabeça e caminhar reto pelos obstáculos – os outros pedestres, os ambulantes, os carros, os mendigos no chão. E, no entanto, quando caminho pela Paulista e as luzes estão se acendendo, tenho um grito só, uma euforia e um susto descabidos. Como se eu estivesse nadando em mar aberto.
Paro e tomo um café. É assim que sei olhar, assim que vivo.
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