Travessia dos Fortes, 26 de novrmbro de 2006: nenhum bando de tubarões pode encarar 4.200 bípedes tomados de espírito cívico e competitivo, compenetrados em busca de prazer, orgulho ou auto-supreação. Sob cada uma das milhares de toucas laranjas só uma coisa em comum, a solidão FOTO: IVO GONZALES_AGÊNCIA O GLOBO_2006
No mar de Copacabana não tem Leviatã
Depois da Travessia dos Fortes, os participantes se reconheciam e se cumprimentavam
Daniel Galera | Edição 4, Janeiro 2007
O trecho da Avenida Atlântica entre o Forte de Copacabana e o Posto 6, no Rio de Janeiro, está tomado por uma multidão de homens e mulheres vestidos de sunga ou maiô. São 9 horas da manhã de um domingo abafado do final de novembro. Não há horizonte entre o céu nublado e o mar, tingidos do mesmo cinza, e até há pouco uma névoa branca recobria os morros e os prédios da praia de Copacabana. Dezenas de traineiras do Corpo de Segurança Aquática estão espalhadas pelo mar, ao longo de um cordão de bóias amarelas. “Todos vocês aqui são motivo de orgulho para os seus pais e seus familiares”, grita pelo alto-falante o professor de ginástica Paulo Cintura, ex-aluno da Escolinha do Professor Raimundo, “pois não é qualquer pessoa que consegue fazer o que vocês estão prestes a fazer”. E ele brada o seu grito-de-guerra: Issa!”.
Já passa das 9. Pouco mais de 4 mil pessoas estão prestes a nadar quase 4 quilômetros em mar aberto (3,8 km, para ser exato), atravessando a praia de Copacabana numa linha reta que sai do forte e termina nas areias do Leme. Criada há cinco anos pelo Exército, a Travessia dos Fortes transformou uma prova ocasional de soldados numa maratona aquática com grande adesão do público, o que lhe rendeu o apelido de “São Silvestre das travessias”. A popularidade da corrida se manifesta, infelizmente, nas filas.
Ainda no sábado, véspera da travessia, eu havia ficado uns vinte minutos na fila antes de conseguir entregar meu comprovante de inscrição, o xerox da carteira de identidade e o termo de compromisso que, entre outras coisas, garantia que eu estava em “pleno gozo de saúde e em condições físicas de participar do Evento”, isentava os organizadores de “qualquer responsabilidade por danos eventualmente causados a mim no decorrer da competição” e cedia os direitos de uso da minha imagem para todos os tipos de mídia já inventados e a serem inventados até o fim dos tempos. Em troca, recebi uma touca de borracha numerada (3005), um “manual do atleta” e tíquetes para acesso ao guarda-volumes e à zona de marcação (numeração da pele antes da largada) no dia da prova.
A segunda fila, já na manhã da competição, foi a do guarda-volumes, destinada aos solitários como eu, sem amigos ou família por perto para guardar suas coisas. Era composta por homens das mais variadas aparências – meninos, senhores de mais de 80 anos, um sujeito que pesava no mínimo 150 quilos e usava bermuda (o que produz o efeito de um pára-quedas dentro d’água, sei por experiência própria), corpos musculosos, esguios e depilados de triatletas e corpos musculosos, hipertrofiados e tatuados de lutadores de jiu-jitsu. A mesma variedade foi vista mais cedo entre as mulheres, quando elas estavam concentradas na areia, à espera da largada.
O corpo de um nadador de águas abertas, seja ele um profissional ou um atleta de domingo, não se aproxima necessariamente dos ideais helênicos nem do modelo de um nadador de provas curtas. A gordura não atrapalha e pode até ser bem-vinda: proporciona maior flutuação e isolamento térmico, cruciais para um bom desempenho. As moças da elite são quase todas cheinhas, com pés grandes, ombros possantes e corpo firme. Barrigas de cerveja, seios masculinos, culotes generosos, idades avançadas e índices de gordura corporal acima dos 30% encontram lugar nesse democrático esporte.
De uma van estacionada na outra pista da Avenida Atlântica desce um grupo de uns dez nadadores, todos brancos e fortões. A certa altura de seu ritual de preparação, começam a besuntar o torso uns dos outros com fartas quantidades de vaselina, principalmente embaixo dos braços. O objetivo do procedimento – que parece estar na moda – é prevenir assaduras.
A natação é tida por alguns como um esporte chato, um tedioso ir-e-vir na piscina. Para quem a pratica, ela é emocionante. Nas provas em águas abertas, os obstáculos naturais, as exigências estratégicas e o contato físico violento (principalmente na largada) são o contrário da monotonia. O que define a natação não é a monotonia. É a solidão. Na natação, a solidão é a via de acesso a uma espécie de estado meditativo, no qual reside um dos grandes prazeres do esporte. A natação impõe, logo de cara, um bloqueio sensorial: enxerga-se apenas o fundo da piscina/lagoa/oceano ou o breu das águas escuras; escuta-se apenas o som da água agitada por braçadas e pernadas; o tato é privado da sensação de solidez e passa a lidar somente com a resistência da água; a seqüência coordenada de braçadas, pernadas, movimentos de cabeça, respirações e viradas é contínua e os movimentos repetitivos livram progressivamente a consciência de mais essa preocupação corporal, até que em algum momento, se o treino for constante e o cérebro der conta da atividade física e da percepção do mundo em piloto semi-automático, o nadador se vê a sós com seus pensamentos. E é nesse instante, para os praticantes de maratonas aquáticas, que a natação realmente se inicia.
O carioca Luiz Eduardo Souza Lima, de 28 anos, recordista brasileiro de nado livre nos 1.500 metros em piscina longa e curta, tornou-se pentacampeão da Travessia dos Fortes em 2006. Fez a prova em 38 minutos e 20 segundos (apenas um segundo a menos do que o vice-campeão, o baiano Allan do Carmo, de 17 anos). Luiz Lima faz parte de um contingente que está trocando as provas de piscina pelas de águas abertas, tendência que se intensificou a partir do final de 2005, quando a travessia de 10 quilômetros se tornou modalidade olímpica. Perguntei-lhe o que se passa em sua cabeça durante os longos treinos e ele disse: “A natação é meu psicólogo. Penso em acontecimentos da minha vida, nos meus problemas e em como vou resolvê-los; tomo muitas decisões quando estou nadando”.
Minha paixão pela natação vem de muito cedo. Está ligada aos domingos da infância que passei dentro de piscinas de clube, mergulhando para investigar o fundo silencioso com seus ralos e canos misteriosos. Está ligada também a horas e horas dentro do mar, lutando contra ondas que a imaginação transformava em maremotos, aprendendo, com meu pai, a mergulhar bem fundo por baixo das ondas, aproveitando o movimento de repuxo para chegar ofegante, mas ileso, naquele ponto além da rebentação onde era possível boiar sobre as vagas enormes em estado dormente, antes que elas se transformassem em monstros de imensas mandíbulas. E a nadar em paralelo à praia olhando as pessoinhas minúsculas que tinham ficado no mundo de lá, na areia dos comuns mortais.
Na adolescência, procurei as raias das piscinas térmicas. Queria sobretudo adquirir a força e a técnica necessárias para pegar jacaré em ondas reservadas aos surfistas e para nadar com confiança e desenvoltura no meio de lagoas e em mar aberto. Com pausas aqui e ali, não parei de nadar até hoje.
Foi na minha primeira travessia, na lagoa da Conceição, em Florianópolis, que conheci o psicólogo do Luiz Lima. Era uma prova de 2.300 metros, a água estava tranqüila e transparente. Eu tinha 17 anos. Esperei que os outros nadadores entrassem na água, larguei tranqüilamente e tentei nadar longe do trajeto principal, sem pressa, com braçadas longas, respirando com calma. Enxergava o fundo da lagoa através da água verde. Vi pneus, roupas, uma poltrona. Em certo momento, praticamente esqueci que estava ali nadando. Comecei a pensar na vida, e o pensamento era mais livre, veloz e cristalino do que o normal. Quando saí da água, estava cansado, um pouco tonto e muito inspirado. Era como sair do melhor show de rock da minha vida. Foi por isso que assenti silenciosamente, do lado de cá do telefone, quando Luiz Lima disse: “Sou viciado em nadar, infelizmente. Quer dizer, felizmente, né?”.
Minutos antes das 10h25, o horário previsto para a largada, a organização cancelou a marcação dos atletas e liberou o acesso à concentração. A fila de uns 3 mil nadadores foi se afunilando entre as grades e escoando para a praia, todos com sua touca numerada comprimindo a cabeça. Um tapete de cabeças cor de laranja cobriu a areia. Minha preocupação era chegar o mais perto possível da linha de largada. Havia decidido largar na frente, onde se amontoam os competidores mais afobados. Consegui me aproximar do cordão humano de voluntários que continha o avanço dos nadadores. Mergulhei o pé na água: fria, mas não muito. Segundo Paulo Cintura, a temperatura da água era de 22 graus. Fichinha para quem se acostumou a nadar no mar de Santa Catarina. Um homem de uns 60 anos, bronzeado, com porte de barril, começou a tirar onda de quem tinha vindo com roupa de borracha, uma proteção permitida pelo regulamento. “Coisa de mulherzinha”, ele gritava. Engrossei o protesto. Roupas de borracha auxiliam na sustentação e são proibidas na categoria elite. O sangue de todos estava recebendo doses de adrenalina. Os nadadores de elite já estavam dentro d’água, adiantados em relação aos demais, para largar com uma pequena vantagem. Quase todo mundo começou a gritar – gritos sem sentido nenhum, de pura empolgação. Um soldado disparou o canhão no Forte de Copacabana e a prova começou.
As largadas de travessias são famosas pela agressividade. Cotoveladas, chutes, afundamentos, puxões no calção, agarramentos e empurrões são a praxe. Às vezes é proposital, às vezes não. Quem não está preocupado com a colocação costuma esperar passar o pandemônio inicial para entrar na água. A violência segue em grau elevado pelos primeiros 200 ou 300 metros de prova e nunca termina por completo, embora se reduza drasticamente assim que os participantes conseguem nadar um pouco mais afastados uns dos outros. Quem está fora d’água não enxerga isso. As câmeras também não conseguem mostrar.
Em abril de 2001, participei de uma belíssima travessia que dava a volta na ilha de Anhatomirim, na baía norte da ilha de Santa Catarina. Fomos levados até lá de escuna, partindo da praia de Canasvieiras. Golfinhos recepcionaram as escunas. Havia 295 homens e mulheres presentes, ansiosos para nadar naquele paraíso.
As mulheres, como sempre, largaram primeiro que os homens. Mal pularam na água e uma massa negra de nuvens apocalípticas surgiu do nada. Despencou um temporal, acompanhado de ventos massacrantes e ondas imensas. Atônitos, os bombeiros partiram com seus barcos, botes e caiaques para socorrer as nadadoras. Os homens que tinham ficado em terra refugiaram-se num restaurante, encharcados, azuis de frio – a temperatura parecia ter caído de uns 30 para uns 12 graus em questão de minutos. Temia-se o pior: afogamentos, gente perdida, raios. Cerca de vinte minutos depois, as primeiras nadadoras começaram a chegar na praia. A chuva foi passando. Quarenta minutos depois, estavam todas de volta, sãs e salvas. Alguns arranhões, queixos tremendo, sustos, nada muito grave. A tempestade tinha ido embora tão de repente quanto chegara. O sol brilhou, a temperatura subiu, o mar virou um lençol cintilante de verde, dourado e azul. Quando os homens se atiraram na água, ainda estavam meio incrédulos.
A prova era curta, cerca de 1.200 metros. Como sabia que tinha chances de conseguir uma medalha, larguei na frente. Era preciso contornar um pequeno píer antes de começar a dar a volta na ilha pela esquerda. Esse contorno forçou os nadadores a se aglomerar logo na largada, justo no seu pico de exaltação e violência. Lembro de levar chutes e cotoveladas, de ser puxado pelo pé e empurrado para o fundo. Consegui me safar do píer e procurei um espaço para alinhar meu nado e forçar o ritmo. Tentei ultrapassar um sujeito pela lateral. Quando ele percebeu, começou a me chutar. Abalado, me mantive um pouco para trás e acabei recebendo o último chute bem no meio da cara. Meu rosto estava amortecido pelo frio e por isso não percebi bem o que tinha acontecido, mas senti na hora o gosto de sangue. Apavorado, comecei a abanar para um dos caiaques, que demorou um pouco a me notar antes de vir na minha direção. Contei que tinha levado um chute e perguntei sobre o meu rosto. Ele chegou mais perto, disse que era só um corte no lábio inferior. “Continuo nadando?”, perguntei. Ele encolheu os ombros e foi embora socorrer alguma outra pessoa. Canalizei a raiva para os braços e nadei como poucas vezes na vida. Cheguei em sexto na categoria, perdendo a medalha por uma posição.
Saí da água ostentando o corte na boca como uma cicatriz de guerra. Fui eclipsado por um festival de cortes e arranhões bem mais graves. Ocorreu o seguinte: muitos nadadores haviam desrespeitado as bóias do contorno interno do percurso e se aproximaram das pedras que cercam toda a ilha, se machucando nas pontas afiadas ao buscar um trajeto mais fechado e, portanto, mais curto.
Para a largada da Travessia dos Fortes, eu tinha me preparado para o pior. A massa humana correu, berrou e avançou aos pulos enquanto a profundidade permitiu, fazendo um aguaceiro danado. Meu pai, que viu a prova na televisão, disse depois: “Na saída parecia um cardume de tainhas, tchê”. Nos primeiros dois ou três minutos, não havia escolha a não ser nadar meio esmagado entre outros atletas, tentando não atingir ninguém nem ser atingido, praticando um estilo cachorrinho meio desesperado, com a cabeça sempre fora d’água.
Logo percebi que dessa vez o nível de deslealdade seria muito baixo – o espírito era mais de convívio e menos de competição. Mesmo assim, um certo contato físico é inevitável, tanto que o regulamento deixava bem claro que todos os atletas deveriam “estar com as unhas bem cortadas”. Oitenta pessoas foram socorridas durante a prova, por “hipotermia e cortes superficiais”. Teve gente que não cortou bem as unhas.
Depois de 500 metros, concluí que seria impossível nadar sozinho. Para a frente, para trás, para os dois lados, havia sempre centenas de outros nadadores à vista. Troquei de estratégia e decidi pegar a esteira de atletas mais velozes do que eu, ou seja, nadar logo atrás deles, aproveitando a quebra de resistência da água. Mais ou menos como um piloto pega o vácuo numa corrida de automóveis. Quando alguém tentava me passar, eu facilitava e em seguida ia de carona por alguns minutos. Escolhi o Morro da Babilônia como ponto de referência. A cada cinco braçadas em média, respirava com a cabeça elevada à frente, procurava rapidamente o morro e a próxima bóia de marcação e então mergulhava a cabeça na água de novo.
Quinze minutos depois, senti o corpo aquecer e encontrei meu ritmo. Dei uma paradinha e olhei para trás: centenas de animais desajeitados agitavam a água em meio a bóias e traineiras. Olhei para a praia: a areia repleta de banhistas parecia incrivelmente longe. O dia nublado tirava um pouco da beleza do cenário. Difícil ver qualquer coisa além dos morros no horizonte e a ondulação do oceano; o mar estava calmo e sem correntes fortes, mas as ondas altas prejudicavam muito a visibilidade. Na água escura, eu não enxergava nem a minha mão. O cheiro e o gosto enjoativos do diesel dos motores das embarcações empestavam a água. O único ruído era o alvoroço de incontáveis braçadas. Não perturbava a sensação trazida pela ausência de vozes, carros, música.
Na altura da quarta bóia levei uma cotovelada na cabeça, de um sujeito que surgiu de repente pelo meu lado direito, totalmente fora de rumo. Não doeu, não foi de propósito, então tudo bem. Nos últimos três meses eu tinha treinado pelo menos quatro vezes por semana, fazendo distâncias de 2,5 a 4 mil metros. Estava bem preparado. Ultrapassei um cara que nadava peito. Sinal de cansaço. A ordem dos estilos pelo critério de fadiga crescente é esta: crawl, costas, peito, cachorrinho, boiar, acenar para o caiaque.
Depois de meia hora de braçadas, o metabolismo opera quase exclusivamente em modo aeróbico. Para mim, este é o momento em que o nado engrena e a sensação de esforço diminui. É como se partes do corpo que até então vinham reclamando do esforço mudassem de idéia e começassem a colaborar. O nado fica mais sincronizado, harmônico. O pensamento se purifica: surgem na mente iluminações e frases claras para expressar sentimentos complexos. Idéias para contos e romances aparecem uma atrás da outra. No meu vestiário ideal, haveria um computador com impressora sempre a postos.
O que incomodou na Travessia dos Fortes foram as dores na lombar – cabeça fora d’água o tempo todo não combina com hiperlordose. Nadei boa parte do trecho final na esteira de um sujeito bem magrinho. Sei disso porque segurei a canela dele por um instante e me pareceu mais fina do que o meu pulso. Quando cheguei de volta à praia, minhas pernas estavam bambas e as cãibras ameaçavam. Os músculos dos braços e do peito pareciam travados, conseqüência do acúmulo de ácido lático, o responsável pelas dores musculares decorrentes de esforço excessivo. Saí tropegando pela areia, onde mais uma fila me aguardava.
Só então me dei conta de que o leviatã não tinha marcado presença naquela ocasião. Leviatã, o monstro marinho citado na Bíblia, a maior e mais temida das bestas aquáticas, é o meu codinome particular para o medo primitivo de nadar no oceano. Às vezes, o leviatã assume na minha imaginação a forma de um animal conhecido, como um tubarão, uma beluga, uma medusa, um peixe qualquer. Outras vezes, surge como uma entidade das profundezas que está ali para lembrar que não pertenço àquele meio e que algo terrível poderá acontecer. Nadar no oceano, principalmente sozinho, é perturbador. Um ser humano que nada no oceano é um contra-senso tão grande quanto um tubarão zanzando na piscina do clube.
Sempre senti esse medo, mesmo nas travessias, com dezenas ou centenas de pessoas nadando ao meu redor. O leviatã sempre surgia para me apavorar na praia da Pinheira, em Santa Catarina. Toda vez eu entrava na água me assegurando de que ali não havia nada de ameaçador, e toda vez era tomado pelo terror no mesmo lugar, na metade do trajeto de cerca de mil metros entre as duas pontas da baía.
Houve momentos traumáticos. No verão passado, decidi contornar um promontório na extremidade sul da praia do Rosa, também em Santa Catarina. O local é um pico de surfe, mas na ocasião o mar estava extraordinariamente calmo. Conversei com pescadores e eles me garantiram, com aquele olhar algo debochado e piedoso com que recebem esse tipo de iniciativa maluca de veranistas urbanóides, que naquele dia dava para nadar ali numa boa. Me atirei na água gelada e transparente e saí dando braçadas confiantes. Não havia correntes, mas as ondas eram grandes. O trecho não devia ter mais de 800 metros. No meio do caminho, comecei, contra a minha vontade, a imaginar as pedras no fundo do mar, depois os animais marinhos que certamente habitavam por ali. A região é um refúgio conhecido de baleias. O leviatã veio com força total. Espavorido, nadei para longe dos rochedos, na direção de um grupo de surfistas. Eles poderiam me salvar.
Vi então uma barbatana enorme parada a uns cem metros, entre mim e os surfistas. O animal embaixo dela parecia estar descansando. Ou me observava. Tive dúvidas, talvez não fosse mesmo uma barbatana. Mas ela começou a vir na minha direção. Nadei desesperado em direção à areia, fugindo da morte. A barbatana atrás de mim. Na rebentação, aproveitei as ondas e saí correndo do mar. Quando a vi pela última vez, ela estava entre as ondas, se aproximando da areia. Fosse o que fosse, não era um mítico monstro marinho. Podia ser um galho ou outro objeto qualquer. Nunca senti tanto medo na vida.
Perguntei a Luiz Lima se tinha medo do leviatã. “Fico apavorado quando nado sozinho no mar”, ele disse. “Por isso, só treino em piscina. Uma vez passei por cima de um navio antigo, afundado. Já vi uma arraia embaixo de mim.” A fobia não poupa nem os campeões.
Na Travessia dos Fortes, pela primeira vez na vida, não senti nenhum traço de medo. Talvez porque, nela, a raça humana comparece verdadeiramente em peso – nenhum bando de tubarões pode encarar 4.200 bípedes tomados de espírito cívico e competitivo, compenetrados em busca de prazer, orgulho ou auto-superação.
Depois de enfrentar a fila da chegada e ter o número da touca e o tempo anotados (o meu foi de 1h04min), quem completou a prova recebeu uma camiseta e uma medalha de participação. Na fila de retirada dos pertences no guarda-volumes (mais meia hora de espera, com as pernas bambas, molhado, só de sunga, morrendo de fome), boa parte dos participantes já tinha vestido sua camiseta, alguns para se proteger dos raios UVA ou da hipotermia, e outros – como eu – apenas para ostentar a marca de uma façanha pessoal que acabavam de realizar. Ao longo de todo o domingo, encontrei em vários bairros do Rio pessoas que usavam a camiseta da Travessia. Invariavelmente, acenavam para mim e sorriam.
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