Projetos antagônicos
Os problemas políticos, profissionais, estéticos e morais que fizeram desandar a colaboração entre Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha
Fernando Serapião | Edição 5, Fevereiro 2007
Os ornamentos art déco atestam os 70 anos de idade do Ypiranga, edifício à beira-mar em Copacabana. Na juventude, o prédio recebeu o apelido de “Mae West”, referência aos seios abundantes da atriz americana, que se assemelhariam às curvas voluptuosas das varandas da fachada. O tempo passou, o apelido foi esquecido, os balcões foram fechados com vidro e poucos lembram da diva de Hollywood. Se Mário Freire não integra a história oficial da arquitetura por ter desenhado o Ypiranga, ao menos possui o crédito de ter criado o local de trabalho do mais ilustre dentre seus colegas, Oscar Niemeyer.
O ateliê do projetista de Brasília fica na cobertura, no 10° andar. Da rua se vê a intervenção que ele realizou na obra de Freire, rasgando a fachada de ponta a ponta. O elevador só alcança o 9°, e é preciso subir um lance de escadas para chegar ao supremo santuário da arquitetura pátria. Depois de ultrapassar a recepção – até há pouco comandada por Vera Lúcia, secretária do arquiteto há trinta anos e, desde novembro, senhora Niemeyer -, vislumbra-se a grande sala de estar, decorada com painéis fotográficos de obras arquitetônicas. Junto aos balcões, um sofá acompanha a curvatura do Ypiranga. A vista do mar tende a dificultar a concentração, sobretudo se o visitante não é carioca. Por instantes, é possível esquecer que se está num escritório de arquitetura. Mesmo porque não se vê ninguém desenhando. O lugar é ponto de encontro e de peregrinação. Há sempre chance, aqui, de cruzar com alguma estrela da arquitetura mundial que, de passagem pelo Rio de Janeiro, vem render homenagem ao “doutor Oscar”. A lista é incontável. O mais recente visitante de renome, em dezembro, foi o italiano Massimiliano Fuksas. Todos querem contemplar a figura mitológica.
Num recanto protegido por um biombo, há uma prancheta alta, dessas comuns, sem banqueta à vista. É ali que ele trabalha, de pé. Junto à mesa de desenho, uma porta leva ao gabinete, repleto de livros e sem janela, local em que o arquiteto recebe as visitas para conversas reservadas. Até há poucos meses, com chuva ou sol, dia útil ou feriado, Niemeyer preferia ir para o escritório a ficar em casa. O espaço de trabalho era seu habitat. Era também o lugar de receber os amigos para conversas intermináveis sobre ciência, política, artes e assuntos afins. A rotina mudou devido aos problemas de saúde. Afinal, Oscar (como o chamam os amigos) completou 99 anos em 15 de dezembro. Há dois anos, ele fraturou o braço ao cair na escada que leva ao escritório. Em setembro, um tropeção num tapete de casa lhe custou uma cirurgia no quadril. Por ordem médica, não pode mais desenhar de pé. Enxerga com dificuldade. Mas continua a criar, agora num apartamento de três quartos a poucas quadras do Ypiranga, numa prancheta pequena, improvisada. Da relação de obras de sua autoria inauguradas recentemente constam um centro cultural em Goiânia e outro em Brasília, uma biblioteca em Duque de Caxias e um teatro em Niterói, além do auditório do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Apesar dos empecilhos, Niemeyer continua a ter mais encomendas do que a maioria dos colegas. Quase todas são de grandes dimensões: planos urbanos, teatros, centros cívicos e culturais, memoriais. Clientes e arquiteto parecem querer desafiar a eternidade.
Como Niemeyer consegue manter esse ritmo de produção? A resposta não é novidade: o detalhamento é terceirizado. Ele dá a linha mestra, que brota com rapidez impressionante, e repassa o desenvolvimento dos desenhos. Para que o processo flua, as equipes que trabalham com ele foram (e ainda são) muitas. A estratégia faz com que o nível de qualidade de suas obras não seja homogêneo. Se os colaboradores são bons, a obra reflete o patamar do esforço criativo. Caso contrário, o descompasso é evidente. Nos projetos antigos, da década de 1940, o detalhamento estava sob a sua supervisão direta. Naquela fase, o pormenor era parte integrante do processo de criação. É essa integração que explica a qualidade dos detalhes do conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, especialmente da capela e do cassino. Nos desenhos recentes, tal apuro foi (conscientemente) deixado de lado.
Niemeyer não teria criado tanto – o número é impreciso, mas fala-se até em espantosos 2 mil projetos – se não tivesse adotado esse método de trabalho. E o método nasceu justamente do excesso de encomendas, vindas, em sua maioria, de fora do Rio de Janeiro. Apesar do contraste com as convicções políticas do arquiteto, a ideologia dos administradores públicos nunca foi obstáculo para Niemeyer aceitar encomendas. De Getúlio Vargas a Juscelino Kubitschek, de Leonel Brizola a Paulo Maluf, passando por Orestes Quércia e Aécio Neves, ele trabalhou para todos. Em contraponto, a arquitetura moderna em São Paulo se desenvolveu mais no âmbito privado e, historicamente, teve dificuldades em ser amparada pelo Estado. Na década de 1950, ele projetou diversas obras em solo bandeirante, sobretudo a convite do mercado imobiliário, impulsionado pelo capital industrial. Os edifícios Eiffel, Triângulo e Copan são desse período. Os problemas entre Niemeyer e a comunidade paulista de arquitetos apareceram, justamente, com as encomendas públicas.
O primeiro conflito ocorreu com um concurso para o paço municipal de São Paulo, no início dos anos 50, na gestão de Armando de Arruda Pereira. Depois de realizado o certame, a prefeitura anulou a disputa. Niemeyer, que já tinha projeção nacional, procurou o prefeito e, sem cobrar honorários, ofereceu uma proposta para o espaço destinado à obra. O fato foi denunciado pelo jornalista Geraldo Ferraz (iniciando assim uma eterna inimizade entre os dois), em sua coluna sobre arquitetura do jornal Diário de S. Paulo. A idéia não foi levada adiante, mas incitou o mal-estar entre o carioca e seus colegas paulistas.
O segundo caso, e o mais famoso, foi o do Parque do Ibirapuera. Enquanto os paulistas ansiavam por disputar em concurso os prédios do novo parque, criado no aniversário de 400 anos da cidade, Niemeyer era designado diretamente por Ciccilo Matarazzo, presidente da comissão dos festejos. Diante das reclamações, o carioca resolveu a questão de forma prática: montou uma equipe local, da qual fazia parte Eduardo Kneese de Mello, que era uma espécie de líder da categoria em São Paulo e detinha a carteira n° 1 da seção paulista do IAB, o Instituto de Arquitetos do Brasil. A medida acalmou os ânimos, momentaneamente. Mas como, de fato, o desenho do Ibirapuera foi idealizado por Niemeyer e os paulistas pouco interferiram no traçado, o parque ficou entalado na garganta dos arquitetos de Piratininga. Desde então, quando Niemeyer aporta em São Paulo, é como se a velha história ainda pairasse no ar.
As fissuras voltariam a aparecer em 1986. Jânio Quadros acabava de se eleger prefeito, pelo PTB, depois de uma seqüência de mandatários biônicos. Seu secretário do planejamento era Marco Antônio Mastrobuono, engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, que veio a se casar com a filha do prefeito, Tutu Quadros. Para ele, a cidade estava fadada ao caos devido a dois fatores. Primeiro, a lei de zoneamento, que determinava uma massa construída pouco densa, gerando um custo de infra-estrutura urbana absolutamente impagável, pois implicava ocupação descentralizada. Segundo, a canalização dos principais rios, o Tietê e o Pinheiros, que, para Mastrobuono, acarretaria eternas inundações. Jânio o chamou para um conversa no início do mandato, e o secretário expôs seu ponto de vista. Terminada a explanação, Jânio disse: “O senhor pinta o apocalipse, mas não dá solução!”. A resposta já estava pensada: “Temos que vender exceção”.
Surgiu assim a proposta de reurbanização de cinco bairros centrais degradados. Santa Cecília seria o primeiro. A idéia era transformar completamente a área, inclusive o sistema viário, aproveitando a localização privilegiada (junto ao centro da cidade) e a infra-estrutura existente. A quantia necessária para viabilizar a renovação viria da venda do potencial construtivo – a prefeitura cobraria da iniciativa privada a possibilidade de edificar muito mais metros quadrados do que a lei permitia. Além de polêmico, o projeto foi anunciado com inabilidade, provocando uma grande gritaria. A questão de fundo era o autoritarismo, já que, desde a segunda metade do século XX, nos países ricos, grandes transformações urbanas são precedidas de longas e delicadas negociações entre as partes envolvidas. Numa sociedade democrática, não se faz cirurgia urbana de grande porte sem a participação da chamada sociedade civil organizada. Não são toleradas propostas tramadas e impostas por gabinetes públicos, de cima para baixo. É o fim, ao menos por ora, da tabula rasa à moda Haussmann (o reformador de Paris) e Pereira Passos (o do Rio de Janeiro) ou à maneira de Le Corbusier.
Em São Paulo, a situação era ainda mais delicada porque o país acabava de sair de uma ditadura. Os protestos vieram de arquitetos e urbanistas, em especial, e os professores universitários da área engrossaram o coro. O IAB-SP, presidido por Paulo Mendes da Rocha, divulgou nota na qual defendia que o governo municipal deveria “utilizar amplamente do potencial de conhecimento e criação presente na comunidade de arquitetos, instituindo-se o maior número possível de concursos públicos”. Os arquitetos paulistas, em suma, queriam participar. Alimentando o debate, a imprensa cobrava diariamente esclarecimentos dos governantes. Mesmo assim, os detalhes do estudo não foram tornados públicos. Isso porque o Condephaat, órgão estadual responsável pelo patrimônio histórico, tombou o traçado urbano do bairro de Santa Cecília, engessando a idéia. “Eles ficaram loucos, tombaram rua, meio-fio, sarjeta, tudo!”, relata Mastrobuono, que, vinte anos depois, ainda se altera ao relembrar o fato. Para ele, a entrada do pessoal do patrimônio histórico foi um ato político. O governador era Franco Montoro, então do PMDB. Jânio, que havia perdido a disputa estadual para Montoro, acabava de vencer o pleito municipal contra Fernando Henrique Cardoso, aliado do governador. Ou seja, havia uma polarização entre esquerda e direita, encarnada, respectivamente, no PMDB e no ex-presidente.
Um pouco antes do tombamento, Mastrobuono foi chamado ao gabinete do prefeito, que na época ficava no Parque do Ibirapuera. Chegando lá, viu que não era o único convocado. Para sua surpresa, estavam presentes o governador do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira – secretário de imprensa de Jânio na Presidência da República -, o deputado Gastone Righi, também do PTB, e Oscar Niemeyer. Os três haviam acabado de chegar de um longo e lauto almoço – e só o arquiteto não bebera. “Senhor secretário, o senhor deve contratar o senhor Oscar Niemeyer, que fará um projeto para a prefeitura”, disse Jânio. Mastrobuono perguntou-lhe do que se tratava. “Ele lhe dirá, senhor secretário. Contrate-o pela Emurb.” Mastrobuono, que acumulava o cargo de vice-presidente da Emurb (Empresa Municipal de Urbanismo), deixou a reunião sem entender o que se passava. Acatando a ordem, horas mais tarde estaria com Niemeyer, assinando documentos para um trabalho sobre o qual nada sabia.
Só compreenderia mais tarde, numa conversa com o prefeito. Jânio lhe contou que, para abrandar as críticas da imprensa, tida como de esquerda, Aparecido o havia convencido a contratar um militante histórico do Partido Comunista. Na lógica de Aparecido, tendo Niemeyer ao lado, Jânio seria menos atacado. O prefeito, ao ouvir o argumento, teria feito uma única pergunta: “Quem é este Oscar Niemeyer?”. Para deixar o arquiteto à vontade, o convite para o almoço incluiu Righi, cuja origem política era o núcleo santista do PCB, o Partidão. Segundo Mastrobuono, a contratação de Niemeyer não teve nenhuma relação com o projeto de Santa Cecília. Já para a imprensa, a relação era evidente. Houve uma confusão, talvez proposital, e foi divulgado que o famoso arquiteto faria a reurbanização do bairro.
Num editorial da revista Projeto de abril de 1986, o então editor Vicente Wissenbach escreveu a propósito da contratação do carioca: “um golpe de mestre que deixou todos atônitos e fez mudar a tônica da discussão: não se debatia mais a reurbanização das áreas, mas se Niemeyer devia aceitar ou não, se está correto contratá-lo”. Parte da comunidade paulista de arquitetos encorpou a trincheira oposta. Niemeyer rapidamente mobilizou uma equipe local. Chamou os “dois Hélios”, o Penteado e o Pasta, que o haviam contratado, primeiro em 1978 e depois em 1984, para desenhar o não executado edifício-sede da Companhia Energética de São Paulo. Os dois, por sua vez, convocaram Júlio Katinsky, com quem dividiam um escritório. Niemeyer chamou para o time Cecília Scharlach, que se aproximara dele por meio de ensaios sobre sua obra, e que levaria Haron Cohen para o grupo. O sexto integrante foi Walter Makhohl, que era casado com uma neta de Niemeyer.
Niemeyer queria incluir ainda um sétimo arquiteto: Paulo Mendes da Rocha. O convite equivalia ao que havia sido feito a Eduardo Kneese quando do projeto do Ibirapuera, pois Mendes da Rocha, como presidente do IAB paulista, era o representante da categoria. Por isso mesmo, a sua aceitação era delicada. Mendes da Rocha pediu tempo para pensar. A resposta foi dada durante uma reunião realizada numa sexta-feira, com a presença de candidatos a integrantes da equipe, no hotel onde Niemeyer estava hospedado, o Ca’d’oro. O encontro foi tenso. Retrospectivamente, a reunião simboliza o enfrentamento entre Niemeyer e a arquitetura paulista. Num discurso tão contundente quanto confuso, Mendes da Rocha anunciou que não participaria do grupo e conclamou Niemeyer a não aceitar o trabalho. O que o carioca entendeu do discurso foi que, se projeto houvesse, quem deveria fazer o desenho seria o paulista (na verdade, capixaba de nascimento) Mendes da Rocha.
Pouco depois do discurso, chegou à reunião outro Paulo, o Bastos, na época uma espécie de representante da arquitetura paulista dentro do Partido Comunista Brasileiro (ou vice-versa) e, por isso mesmo, também candidato a membro da equipe. “Recebi um telefonema às 11 horas da noite, da Cecília, para comparecer à reunião”, conta Bastos, convocado possivelmente para abrandar os ânimos. Deu tudo errado. Depois de Niemeyer dizer que gostaria de levar o projeto adiante com uma equipe paulista, Bastos exacerbou a questão política. “Olha, Oscar, há um grande estudo, da gestão anterior, que está sendo desmontado, e o Jânio só quer a cobertura do seu nome para perpetrar essa barbaridade que é demolir o Santa Ifigênia”, disse ele. A reunião terminou em constrangimento generalizado. Niemeyer ficou furioso. Afinal de contas, as relações entre arquitetura e política estavam rigidamente codificadas, e há muito tempo, dentro do PCB. “O partido não pensa assim”, disse ele, inconformado, a alguns colegas. Não deu outra: dias depois, o Partidão soltou uma nota de apoio à decisão de Niemeyer de trabalhar para Jânio.
A “escola paulista” de arquitetura, também conhecida como brutalismo paulista, surgiu na passagem dos anos 50 para os 60. Seu pensamento se apoiava em dois pilares. No aspecto político, defendia-se que o arquiteto devia atender às necessidades sociais e não aos anseios da burguesia. No âmbito formal, preconizava-se uma síntese dos três principais postulados da arquitetura do século passado. De Le Corbusier, a escola paulista admirava o brutalismo; de Mies van der Rohe, a precisão das plantas e estruturas; de Frank Lloyd Wright, a idéia de “verdade dos materiais” (ou seja, uma madeira tem de parecer madeira) e os interiores iluminados por aberturas nas lajes. Enalteciam-se os espaços coletivos e de convívio, em detrimento dos espaços individualizados (salas de estar generosas contrastavam com quartos espartanos).
O movimento bandeirante se contrapôs à “escola carioca”, tendência surgida entre as décadas de 1940 e 1950 que nunca teve um discurso político, apenas modernizador, no sentido estético-tecnológico. Os cariocas buscavam uma fusão entre o purismo de Le Corbusier (estruturas independentes das alvenarias e dos tetos-jardins, por exemplo) com aspectos da arquitetura luso-brasileira, como as telhas de barro, os azulejos e as treliças de madeira.
Os dois movimentos traduzem e reproduzem a época em que foram gestados. O carioca enfatizava a liberdade e o crescimento econômico, estava em harmonia com a bossa nova e os filmes da Vera Cruz, com os jardins de Burle Marx e os painéis de Portinari. De certa forma, a escola carioca refletia um ideário próximo do PCB, conciliador e reformista, e uma intelectualidade que, de Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro, era otimista quanto ao desenvolvimento sem rupturas do Brasil, e tinha fé na miscigenação racial. O movimento paulista era mais cético. Com um tom quase de enfrentamento, apoiava-se nas análises da revolução burguesa feitas por Florestan Fernandes, dialogava com o cinema novo e a tropicália. Defendia que não se criava a arte pela arte, em busca apenas da beleza estética e dizia que, no Brasil, o passado colonial e suas construções eram vergonhosos. Havia o dever de criar formas para um novo mundo – socialista, mas independente da União Soviética e do stalinismo. A arquitetura paulista, tal como as vanguardas européias do início do século XX, era engajada. Seu ideólogo era um paranaense, Vilanova Artigas, e seu principal intérprete era Mendes da Rocha. Do lado carioca, o mentor intelectual era Lucio Costa, e o grande expoente, Niemeyer.
Naquela noite de sexta-feira, travava-se no Ca’d’oro outro round de uma disputa – entre paulistas e cariocas, entre a esquerda stalinista e a independente, entre ideologias desenvolvimentistas, e entre concepções profissionais – que polarizava a arquitetura brasileira havia tempos. O viés político, segundo participantes da reunião, pode ter sido o impedimento para que as pranchetas dos dois grandes arquitetos brasileiros contemporâneos se alinhassem. “Na realidade, mais do que qualquer outro membro da equipe, o Paulo já era um arquiteto da dimensão do Niemeyer. Seria muito difícil ele aceitar o convite e participar da equipe”, diz Haron Cohen. “A política pode ter sido uma desculpa.” Mesmo porque, se impedimento moral houvesse, Mendes da Rocha não teria aceitado integrar a equipe convocada por Maluf, cinco anos antes, para estudar a criação de uma nova capital de São Paulo, no interior do estado.
Quem esteve com Niemeyer nos dias subseqüentes à reunião não esquece o descontentamento que ele manifestou. “Nunca tinha visto o Oscar daquele jeito”, lembra-se um de seus colaboradores. “O que você fez para o Oscar? Ele está uma fera com você”, perguntou a Paulo Bastos um amigo comum. A resposta que ouviu foi esta: “Oscar não entendeu nada, achou que eu queria fazer o projeto. Só dei minha sincera opinião técnica e intelectual”. Antes do episódio, Niemeyer e Mendes da Rocha tinham uma relação amistosa. Se não eram íntimos, se encontravam em eventos sociais e até freqüentavam um a casa do outro. A última vez que Niemeyer esteve com Artigas (que morreu em janeiro de 1985), por exemplo, foi em 1984, na casa de Mendes da Rocha, no bairro do Butantã. Na ocasião da fatídica reunião no Ca’d’oro, Niemeyer tinha 78 anos e já estava consagrado, embora os principais prêmios internacionais que recebeu só viessem mais tarde (o Pritzker é de 1988). Mendes da Rocha, com 57 anos, estava saindo de uma fase de ostracismo, durante a qual pouco produzira de significativo. “Fui cassado duas vezes: como professor da USP e em meu escritório, pois fui impedido de fazer obras públicas”, relata.
No sábado, um dia depois da reunião, um Niemeyer consternado foi cercado por jornalistas no saguão do hotel. “Me tira daqui”, pediu ao amigo Ricardo Ohtake. Foram os dois para a casa da mãe de Ricardo, a pintora Tomie Ohtake, no bairro do Campo Belo. Ali, num ambiente escola paulista por excelência, Niemeyer foi acolhido. Durante o almoço, o outro filho de Tomie, Ruy, que acabara de voltar de viagem e não participara da reunião na noite anterior, foi convidado por Niemeyer a integrar a equipe. Assim se completava o grupo que realizaria o projeto não para Santa Cecília, mas para o Parque do Tietê.
Contratada com salário pago pela municipalidade, a equipe trabalhava oficialmente no edifício Martinelli, sede da Emurb, mas se reunia também no escritório de Ohtake, na Avenida Faria Lima, e no de Cohen, no prédio do IAB. “Trabalhar com o Oscar não é fácil”, conta um membro da equipe. “Ele cria muito rápido, e nós, de fato, participamos pouco.” Niemeyer se encontrava toda semana com os colaboradores. Eles iam ao Rio de Janeiro ou o carioca viajava a São Paulo. O lendário medo de avião o fazia percorrer a Via Dutra no banco do passageiro de seu automóvel, dirigido por Amaro, o motorista. Permanecia na cidade duas ou três noites, hospedado no The Park Lane, um apart-hotel no Paraíso, ou no Caesar Palace, na Rua Augusta. Às vezes, mesmo com as recordações ruins, ficava no Ca’d’oro.
A maquete e os desenhos do projeto encomendado por Jânio foram apresentados com grande fuzuê na sede da prefeitura. Niemeyer e equipe conceberam um parque beira-rio com 18 quilômetros de extensão, ao longo do Tietê, na margem voltada para o centro da cidade; começava no início da Rodovia dos Bandeirantes, na região da Lapa, e se estendia até o Parque Ecológico do Tietê, projetado por Ohtake na década anterior. A largura variava de 300 metros a um quilômetro. As duas extremidades eram balizadas por conjuntos de habitações coletivas, destinadas aos que teriam a casa desapropriada pelo parque. Na altura do Anhembi, seria erguido um núcleo de escritórios e o centro cívico da cidade. Na junção da marginal Tietê com a Via Dutra haveria, por fim, um centro cultural. Ao todo, o projeto propunha desapropriar 10 milhões de metros quadrados, a um custo estimado de 2,5 bilhões de dólares. Jânio assinou um decreto que declarava a área de utilidade pública. Teoricamente, a prefeitura poderia desapropriar tudo e demolir o que ali estivesse: habitações, fábricas (abandonadas ou em atividade), clubes esportivos (o Corinthians, o Tietê e a Portuguesa), depósitos, postos de gasolina etc.
A repercussão não tardou. O prefeito passou a receber, diariamente, representantes de associações, clubes e empresas, entre outros atingidos. A sociedade civil, organizada ou não, se levantou contra o projeto. Para a equipe, o plano estava correto. “Hoje, mais do que na época, acredito que esta seria a única solução para São Paulo”, diz Cohen. “O plano de Niemeyer resolvia um grande problema da cidade, que são as enchentes e a relação com o rio”, afirma Ruy Ohtake. Nas publicações especializadas, houve elogios e ataques. A crítica mais ardida foi a do gaúcho Carlos Eduardo Comas. “Não nos preocupa que a proposta seja inviável, golpe publicitário de governo, nem que seja leviana, como disse Jorge Wilheim. O fato grave é que venha rançosa. Não há nela surpresa ou emoção”, sustentou ele num ensaio.
Irritado com o barulho, Jânio convocou Mastrobuono à prefeitura. “Senhor secretário, nós dois cometemos um erro. O meu foi não ter dado ouvidos ao senhor; e o do senhor foi não ter me avisado que este homem era um lunático! Como faço para descalçar esta bota?”, indagou o prefeito. “Para mim, ficou clara uma coisa: Jânio confundiu Niemeyer com Burle Marx!”, relata o ex-secretário. “Ele não tinha idéia do que Niemeyer ia fazer; achava que era o paisagismo das marginais!”, se diverte Mastrobuono. “O decreto que o senhor assinou caduca. Então, para não assumir o abandono do projeto, vamos fingir que estamos tocando até a coisa ser esquecida”, sugeriu Mastrobuono. “E, para não ficar mal com os arquitetos, publique um livro.”
Assim foi feito. Niemeyer, contudo, guardou uma imagem positiva de Jânio e o trata com respeito em seu livro de memórias, As curvas do tempo. Provavelmente esqueceu que, além de engavetar o Parque do Tietê, Jânio já havia interferido numa outra obra sua, na década de 1950, quando se elegera prefeito pela primeira vez. Foi Jânio quem anunciou que não construiria o auditório do Ibirapuera, deixando o projeto do parque, na palavra do arquiteto, “banguela”.
O traço original do auditório do Ibirapuera foi feito em 1951, junto com o restante do parque. A idéia de executá-lo reapareceu em 1989. Na época, a Fundação Rubinstein propôs edificá-lo e doá-lo à municipalidade em troca de prioridade de uso – numa operação parecida com a que viabilizaria finalmente a construção, ocorrida na primeira metade da década em curso. Niemeyer foi chamado pela Fundação e apresentou um novo desenho (como de costume, em parceria com Kneese de Mello, que nada fez no projeto). Não houve acordo com a prefeita Luiza Erundina, na época filiada ao PT, em decorrência de um áspero desentendimento entre Niemeyer e a secretária da Cultura, Marilena Chauí. Mesmo que a construção não onerasse os cofres públicos, a prioridade de Erundina e Chauí era a periferia. Em 1996, o prefeito Paulo Maluf retomou a idéia e encomendou ao carioca um novo projeto, que foi feito mas não foi pago. Virou um precatório.
No final dos anos 90, entrou em cena o empresário Edemar Cid Ferreira, cujo Banco Santos viria a quebrar num pandemônio de irregularidades e crimes e, no ano passado, foi condenado e preso. Naquela época, no papel de mecenas, Edemar retomou a idéia do auditório. Ele organizara a megaexposição Brasil 500 anos, que ocupou o prédio da Bienal, o pavilhão Manoel da Nóbrega (antes, sede da prefeitura) e a Oca, os três projetados por Niemeyer. Com o auxílio de Ricardo Ohtake, titular da pasta do Verde e do Meio Ambiente na prefeitura de Celso Pitta e responsável direto pelo Ibirapuera, Cid Ferreira conseguira financiar a restauração da Oca e do Manoel da Nóbrega. Na Oca, cuja reforma teve como itens principais a instalação de ar-condicionado e elevador, o mecenas chamou Paulo Mendes da Rocha para coordenar o projeto. “A indicação do Paulo veio do próprio Niemeyer, que aprovava pessoalmente todas as etapas”, relata Emílio Kalil, diretor de projetos de cultura da Brasil Connects, a empresa de Edemar Cid Ferreira.
O prédio-sede da seção paulista do Instituto dos Arquitetos do Brasil, a duas quadras da Praça da República, é considerado um marco da arquitetura brasileira. Seu desenho, criado por uma equipe liderada por Rino Levi, foi escolhido num concurso de 1947, julgado por Niemeyer, pelo carioca Firmino Saldanha e por Hélio Uchôa. À parte os escritórios do Instituto, o edifício é composto por uma série de conjuntos comerciais, a maioria ocupada por arquitetos – Levi e Artigas tiveram escritório ali no apogeu do prédio, cujo subsolo era animado pelo Clube dos Artistas. O edifício foi tombado pelo patrimônio histórico, o que não impediu sua deterioração. O mural de Antônio Bandeira, no saguão de entrada, está coberto com plástico-bolha. As pastilhas da fachada foram arrancadas, pois caíam na cabeça dos transeuntes, e as janelas de ferro estão enferrujadas. A restauração, anunciada em várias gestões, ainda não vingou. Embora a vizinhança com a boca-do-lixo não ajude, há um movimento, lento, frágil e recente, de melhoria da região. Nos últimos tempos, instalaram-se ali escritórios de jovens arquitetos, editoras da área e até uma faculdade, a Escola da Cidade, gerida por uma cooperativa de projetistas.
Um dos responsáveis indiretos pela nova fase da região é Paulo Mendes da Rocha. Figura cativante, com uma retórica que encanta alunos e jovens profissionais, ele foi reintegrado como professor da Faculdade de Arquitetura da USP em 1979, e se tornou um líder das gerações formadas desde então. É visto pelos discípulos como um símbolo de resistência às práticas usuais do mercado.
Num ambiente de pouco mais de 100 metros quadrados, seu escritório no prédio do IAB é dividido em dois espaços por uma estante de aço convencional, repleta de livros, revistas antigas e caixas de arquivo com projetos puídos. A parte menor é o recanto do arquiteto, que, por vezes, descansa numa cadeira Paulistano, inventada por ele na década de 1950. Do outro lado ficam várias mesas, pranchetas e arquivos de metal. Tal como no escritório de Niemeyer no Ypiranga, ali ninguém projeta. A única ocupante fixa é dona Dulcinéia, a secretária de décadas, que dá expediente no período da tarde. Há poucos anos, ela ganhou o único computador que ajuda na rotina do escritório. Mendes da Rocha aparece pouco: está sempre em trânsito, em reuniões, visitas e palestras, potencializadas pelo prêmio que recebeu da Fundação Pritzker em 2006. Quando dá o ar da graça, é sempre depois das 11 horas, após percorrer de táxi as poucas quadras entre seu apartamento, em Higienópolis, e o IAB. Nesses dias, almoça nas redondezas, onde é difícil, para um paladar mais exigente, achar lugar para comer. Aos 78 anos, faz projetos um atrás do outro. Para isso, a exemplo de Niemeyer, conta com a colaboração de escritórios-satélites.
Um desses escritórios é o MMBB. Ao ser chamado para restaurar a Oca, Paulo Mendes da Rocha convocou o quarteto formado por Marta Moreira, Fernando de Mello Franco, Milton Braga e Angelo Bucci, todos na faixa dos 40 anos. Com o êxito da empreitada, houve uma reaproximação com o colega do Rio. Mendes da Rocha disse na imprensa que a Oca de Niemeyer era o “museu mais bonito do mundo”. Foi então, segundo Emílio Kalil, que Edemar Cid Ferreira teve a idéia de construir o auditório.
O banqueiro convocou Niemeyer. Foi montado um triângulo para tocar o projeto. Num vértice estava a comissão dos 500 anos, composta pela equipe de Edemar e liderada por Kalil. Em outro, a equipe de arquitetura, com Niemeyer e os dois Hélios. Na terceira ponta, a prefeitura, representada por Ohtake. A quimera de Edemar Cid Ferreira incluía uma demanda nova: o teatro também deveria se destinar a ópera. Com isso, suas dimensões teriam de ser maiores do que o volume que afinal seria erguido. Trabalhava-se com um orçamento de 60 milhões de dólares, mais de seis vezes o que fora necessário para fazer o prédio. Nos primeiros desenhos de Niemeyer, apresentados no início de 2000, o volume aparece praticamente invertido em relação ao que viria a ser construído – a parte mais alta do edifício era voltada para a Oca. A organização interna, por sua vez, era semelhante àquela que vingaria: os espaços principais estavam dispostos na seqüência foyer/platéia/palco.
Marcou-se uma reunião para o dia 12 de março, no escritório de Niemeyer, e o resultado foi apresentado já no dia 18, datas que comprovam a velocidade com que o arquiteto pode criar um desenho: apenas seis dias. Num curto intervalo de tempo, Niemeyer conceberia mais três propostas, com pequenas variações. A comissão tinha pressa. A intenção era aprovar e iniciar a obra rapidamente, pois Ricardo Ohtake provavelmente deixaria a prefeitura no início de 2001, o que de fato ocorreu. Era urgente contratar um escritório em São Paulo para auxiliar o desenvolvimento do trabalho. Concomitantemente, entrou na pauta uma nova necessidade: projetar um estacionamento subterrâneo, para atender aos usuários do teatro. O MMBB foi logo lembrado para executar a tarefa, pois quatro anos antes havia desenvolvido a garagem do Trianon, na região da Avenida Paulista.
Convidada a trabalhar diretamente com Niemeyer, a equipe foi leal: revelou que tinha uma parceria com Paulo Mendes da Rocha. A participação dele seria acertada no dia 24 de março, num encontro entre Mendes da Rocha e os Hélios. A idéia era que o trabalho fosse realizado pelo MMBB e que Mendes da Rocha mantivesse uma posição mais distante, intervindo quando necessário. Programou-se então uma reunião dele com Niemeyer, no Rio.
Em 28 de maio, Niemeyer publicou um artigo na Folha de S. Paulo. (A amizade com o proprietário da Folha, Octavio Frias de Oliveira, que foi o incorporador do edifício Copan, leva-o a usar com freqüência a página 3 do jornal para se comunicar com São Paulo.) No texto, o arquiteto relatou “como foi importante a atuação destes quatro amigos”, referindo-se aos Hélios, a Ohtake e a Mendes da Rocha, que acabava de entrar no projeto. As reuniões prosseguiram até o final de 2000. Durante o projeto, Mendes da Rocha se encontraria com Niemeyer no Rio uma única vez – um encontro mais simbólico e formal do que propriamente de trabalho. Ao contrário de Niemeyer, Mendes da Rocha trabalha de maneira lenta e sofrida e, com freqüência, sozinho, não em reuniões.
Com o passar das semanas, Mendes da Rocha se envolveu a fundo no projeto, dando sugestões aqui e acolá. A principal delas era alterar a galeria de serviço, uma parede dupla presente nas duas laterais do prédio, com vão de 1 metro entre elas, pensada para funcionar como contraforte e, ao mesmo tempo, como duto de instalações de ar-condicionado, hidráulica, elétrica etc. A galeria teria outra função: abrigaria escadas e rampas – o que inviabilizaria a rampa escultórica projetada pelo carioca. Ou seja, Mendes da Rocha sugeriu que Niemeyer abrisse mão de um de seus principais traços estilísticos. (Quantas são as obras de Niemeyer, afinal, que não têm a escada ou a rampa como protagonistas?).
Nesse estágio do desenho, a proposta de Niemeyer era a mais simples desde a primeira, de 1951. Não havia malabarismo estrutural evidente, como nos anos 50, tampouco volume principal escultórico (como nos auditórios para a Fundação Rubinstein e para Paulo Maluf). A forma se reduzia à pura geometria: planta em trapézio e corte em triângulo. Um dos únicos elementos capazes de ligar o edifício ao vocabulário de Niemeyer era justamente a rampa, que desaparecia na sugestão de Mendes da Rocha. Provavelmente, foi essa a razão pela qual a dupla não deu continuidade ao trabalho conjunto no Ibirapuera. Se o tempo amenizara o atrito político, havia a incompatibilidade arquitetônica propriamente dita. Um dos dois teria de se submeter ao gênio criativo do outro.
No início do ano seguinte, Marta Suplicy assumiu a prefeitura e o projeto foi paralisado. Quando a prefeita retomou a idéia de construir o auditório, dois anos mais tarde, quem estava à frente da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente era Adriano Diogo, hoje deputado estadual pelo PT. Com o auxílio do arquiteto Marcos Cartun, Diogo apresentou um plano-diretor para o parque no qual se previa a construção do auditório. No âmbito das comemorações dos 450 anos da cidade, a prefeita firmou um acordo com uma empresa de telefonia, para finalmente executar o projeto. “Custou 8 milhões de reais”, revela Adriano Diogo. Outros três estudos foram realizados até a versão final. Nem o MMBB nem Mendes da Rocha participaram. O desenvolvimento foi realizado no Rio, com os dois Hélios supervisionando a obra até o final. A prefeitura não conseguiu aprovar no Compresp (órgão municipal de preservação do patrimônio histórico) o corte da marquise proposto por Niemeyer. Terminado no final do governo de Marta, o teatro só pôde ser inaugurado na gestão de José Serra.
O auditório, que possui boa acústica na sala de espetáculos, é de uma simplicidade desconcertante. Duas particularidades levam água para o moinho dos que dizem que Niemeyer projeta sem se importar com a funcionalidade e o uso: os banheiros são exíguos e a construção abriga uma bem equipada escola de música para crianças carentes que não tem janelas. Ou seja, vindas da periferia, as crianças têm a oportunidade de ter aula de música dentro de um parque. Mas o contato com o verde só é possível na hora da entrada e da saída… Como a idéia da escola só apareceu no final do projeto, o único lugar em que o arquiteto conseguiu encaixá-la (sem estragar a composição) foi o subsolo.
As galerias laterais, que também geraram interpretações conflitantes, acabaram destinadas às instalações de serviço, conforme imaginou Niemeyer. E, em vez de obras de Henry Moore e Le Corbusier, como previsto na década de 1950, quem ocupa a cena é Tomie Ohtake, que criou uma obra para o foyer. A escultura foi encomendada pelo próprio Niemeyer, que lhe enviou uma maquete do espaço. “Posso usar o teto?”, ela perguntava ao filho Ricardo, que retransmitia a pergunta ao arquiteto. “Pode”, vinha a resposta. Tudo entre eles fluiu nesse diálogo telegráfico. “Os dois não se falavam”, diz Ricardo. Quando ficou pronto o estudo de Tomie, Niemeyer percebeu a grandiosidade da obra. Mudou o desenho e a localização da rampa sinuosa que liga o foyer à platéia, de forma que a escultura ganhasse mais visibilidade. Como a praça de acesso não foi realizada, Niemeyer, em protesto, nunca visitou a obra pronta – nem o trabalho de Tomie. Percorreu com vagar o auditório uma vez apenas, ainda durante a construção.
Uma semana antes da visita dele, também estive lá pela primeira vez. Quando passei pelo foyer ainda repleto de escoras, o engenheiro que me acompanhava disse: “Aqui tem uma fundação enterrada”, resumindo a história da nova posição da rampa.
E assim, tal como os alicerces da rampa que mudou de lugar, o projeto enterrou um pouco mais a possibilidade de atuação conjunta de Niemeyer e Mendes da Rocha, justamente pelo entrave na circulação. Nenhum dos dois gosta de tocar no assunto, numa comprovação de que ainda estão abertas as vísceras das duas escolas que polarizam, há mais de 50 anos, o debate arquitetônico no Brasil.
“Diga que não estou!”, bradou Mendes da Rocha ao saber o tema sobre o qual era convidado a discorrer a respeito (alto o suficiente para que eu pudesse escutá-lo). “Ah, não falo desses assuntos”, disse-me Niemeyer dias depois de ter recepcionado Hugo Chávez em seu ateliê. “Sigo fazendo meus desenhos, mesmo achando que arquitetura não é assim tão importante”.
Para o bem ou para o mal (e para os livros de história da área), o que ficará são os dois projetos: um na gaveta, outro no Ibirapuera.
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