Mistura de maison de estilista com loja de departamentos, sob a roupagem de uma villa, a megastore é uma casa com escala de shopping center, um comércio movido pela ideologia doméstica FOTO: NELSON KOHN_2007
Sem cavalo na esteira
Mais parecida com um embrulho de presente do que com um Fórum Romano, a Daslu é na prática um bunker fortificado
Guilherme Wisnik | Edição 5, Fevereiro 2007
Certa vez, ao visitar uma das edições da Casa Cor, deparei com um mini-haras em que um cavalo puro-sangue se exercitava sobre uma esteira. O evento era uma seqüência enfadonha de ambientes domésticos competindo entre si através da decoração, tanto mais redundantes quanto maior era o empenho em serem originais. Aquele cavalo, no entanto, ao mesmo tempo em que resumia bem a superficialidade do evento, destoava do resto. Com seu olhar melancólico, somado ao movimento ritmado e sem esforço das patas, dava, involuntariamente, um sentido reflexivo àquilo tudo. Uma aparição inusitadamente real e triste em meio à alegria efêmera daqueles cenários.
Fui conhecer a Daslu perguntando logo pelo fitness center, onde pudesse encontrar, quem sabe, aquele velho cavalo em seu eterno exercício. Em vão. Lá, as camareiras vestem avental preto com babados brancos, e, como notou Danuza Leão, têm sempre cabelos lisos, ou alisados. Lá, nem a evidente escassez de produtos importados após a suspensão do seu esquema de contrabando risca o verniz das paredes, ou marca o gesso do forro. Como a bandeirinha dura que coroa o campanário do Shopping Market Place – retorcida como se estivesse tremulando -, ou os falsos profetas do Aleijadinho que adornavam a fachada do Banco Santos, todos no mesmo eixo da Marginal do rio Pinheiros, a mansarda neoclássica da Daslu é um sonho de criança, mesmo que pouco inocente. Não é à toa que Eliana Tranchesi, dona da butique, tenha declarado com franqueza, depois de ser surpreendida fraudando a Receita Federal, que “além da Disney, deveria ter colocado mais Wall Street” em sua vida.
Arquitetonicamente, a loja também funciona no registro Disney. O neoclássico ressuscitado é o estilo favorito de um grupo de abastados que circula mais por Miami e Orlando do que pelos grandes centros mundiais da moda – Nova York, Tóquio ou Milão. O próprio nome da loja – referência à associação de duas mulheres cujos apelidos eram igualmente “Lu”: Lucia Piva de Albuquerque e Lourdes Aranha – ilustra bem a ambição modesta dessas senhoras. Mas é sobretudo na arquitetura escolhida que a Daslu revela como está na retaguarda do mundo da moda. É o que diz o especialista em luxo, o francês Gilles Lipovetsky, que em passagem por São Paulo desaprovou a timidez da loja. Na sua opinião, ao invés de recorrer à imagem de respeitabilidade do neoclássico, a herdeira das duas Lus “deveria ter optado pela criatividade hipermoderna”, chamando “o maior arquiteto do mundo, aí teria sido fantástico, seria como o luxo dos reis de antigamente, que faziam construções magníficas para a cidade”.
Não é preciso ir tão longe. Em 1948, o arquiteto Frank Lloyd Wright já desenhava lojas para clientes que queriam associar suas mercadorias a arrojo e risco estético. Hoje, nenhuma loja de ponta pode se dar ao luxo de ser arquitetonicamente tímida. Como disse o arquiteto holandês Rem Koolhaas à dona da Prada, “está na hora de você começar a vender arquitetura junto com as bolsas”. Uma sugestão sensata. Se no mundo contemporâneo imagem é quase tudo, não se pode pretender vender o que há de mais moderno em cenários passadistas ou tacanhos.
A “Villa Daslu” é um estabelecimento que evoluiu de uma butique familiar para um complexo comercial amplo e diversificado, incluindo grifes de roupas internacionalmente famosas, artigos eletrônicos, automóveis importados, utensílios domésticos, produtos de beleza e estandes de empreiteiras, numa construção que abriga 20 mil metros quadrados de área útil ao longo de cinco pisos. Mais uma vez segundo Lipovetsky, é uma “mistura de luxo com hipermercado”, ou “duty-free”. Koolhaas talvez dissesse que a loja é “uma acumulação megalomaníaca de tudo”, expressão que usa para descrever os grandes entrepostos comerciais. O contraste entre o exemplar paulistano e os novos edifícios (culturais e comerciais) construídos ou encomendados por grifes como a Prada, Dior ou Louis Vuitton em outras metrópoles é de fato gritante. Num esforço cada vez maior para transformar a marca em espetáculo, a moda busca, nesses casos, se associar à arquitetura como signo de vanguarda. É o que explica o papel central dos novos prédios no marketing cultural das cidades globais. Assim, em que pesem as diferentes linguagens de cada arquiteto, Rem Koolhaas, Herzog & de Meuron, Christian de Portzamparc, Toyo Ito ou Tadao Ando têm criado para as mais diversas grifes projetos sóbrios, etéreos, espetaculares, high tech, onde, muitas vezes, anódinos cubos de vidro são vestidos com “peles” – chapas metálicas perfuradas ou retículas serigrafadas com aberturas variáveis, que formam tramas abstratas de aspecto fortemente sensorial. Especialmente no caso da Prada, que alterna a feição de galpão industrial ultra-refinado – como a do SoHo, em Nova York, com suas vitrines na forma de brutas gaiolas metálicas suspensas por trilhos – com espaços assépticos e emborrachados (caso de Aoyama, Tóquio), onde os displays se assemelham a plugs de Macintosh, e as treliças das fachadas compõem, com os espaços internos (pisos e paredes), um mesmo plano branco e moldável.
Forrada internamente por floreiras, carpetes, cortinas pesadas, lustres de cristal e leões de gesso, a “Villa Daslu” foi projetada por uma equipe liderada por Júlio Neves – incorporador imobiliário, braço-direito de Paulo Maluf, e manager cultural (é, há doze anos, presidente do Masp, o Museu de Arte de São Paulo). Seus interiores foram decorados por profissionais como Jorge Elias e Sig Bergamin. Curiosamente, o pastiche estilístico resultante não chega a alcançar a monumentalidade do neoclássico original europeu, mais tarde disseminado pelo mundo como signo de solidez e tradição que é normalmente emprestado a edifícios públicos. Construído com alvenaria rebocada e pintada, e não com monolitos de pedra, o prédio da butique aparenta uma certa inconsistência material, como se fosse feito de papelão. Costuma-se chamar popularmente esse tipo de construção eclética e avantajada de “bolo de noiva”. De fato, a Daslu se parece mais com um embrulho de presente do que com um Fórum Romano, apesar dos seus balaústres, frontões, frisos, cornijas e capitéis em tons de ocre e pardo.
Inaugurada em junho de 2005, a loja se ergue sobre a ruína de um edifício público: o centro de processamento de dados da Eletropaulo, cuja construção não chegou a ser finalizada – o edifício principal do conjunto permanece no esqueleto há mais de uma década, mantendo uma vizinhança incômoda com a loja. São prédios-fantasmas, exemplos da modernização brasileira, como usinas atômicas que não funcionam, estradas devoradas pela floresta, trens sucateados etc. A transformação do edifício anexo da Eletropaulo em Daslu parece a lendária conversão da tragédia em farsa, quando a história se repete duas vezes (aqui, uma ao lado da outra, visíveis da Marginal). No caso, a ostentação do supérfluo, do hedonismo individualista, aparece como um produto deslocado daquele titânico esforço de modernização infra-estrutural do país, hoje uma miragem.
Megastore de luxo, a Daslu é uma mistura de maison de estilista com loja de departamentos, sob uma roupagem de villa renascentista. Na prática, é um bunker fortificado, freqüentado por consumidores que vivem em condomínios fechados e preferem se proteger entre seus pares sob um décor aconchegante a ter que circular em centros de compras massificados. Vem daí o único aspecto original da Daslu: trata-se de uma casa com escala e programa de shopping center. Ou, em outras palavras, um estabelecimento comercial movido pela ideologia doméstica. Ele é uma tradução edificada do velho patrimonialismo brasileiro herdado de séculos de história: o costume de preferir tratar questões públicas em ambiente privado, com vistas a obter privilégios – o que as fraudes nas importações praticadas pela loja confirmam e reforçam, bem como o tratamento pessoal dado às freguesas fiéis, que chamam e são chamadas pelo primeiro nome por vendedoras da mesma classe social.
Dada a vinculação emotiva com a casa onde a loja começou, somada à vontade de se aproximar simbolicamente das maisons de alta costura, onde os grandes estilistas recebem seus clientes eleitos, a Daslu evita ao máximo aparentar-se a um shopping center, fato que pode ser percebido já na implantação do edifício no terreno. Pois, enquanto o shopping é uma caixa fechada, que demarca claramente em seus átrios e portais o limite entre ele e a cidade, reproduzindo a estrutura urbana em seu interior, a Daslu é uma fortaleza de muros e guaritas que guarda uma “jóia” no miolo, com espaços envoltórios que fazem alusão ao aconchego do lar. A negação da cidade deixa de ser ostensiva e passa subliminarmente a representar um estado de espírito, que te convida pouco a pouco a desfrutar o fato de fazer parte daquilo, como o conviva de uma recepção de gala. Logicamente, nesse caso, a cidade não é reproduzida em seus espaços internos, mas negada. É que a origem dos shoppings está nas galerias comerciais urbanas, como as famosas “passagens” parisienses do século XIX, enquanto a “inspiração poética” da Daslu é a villa italiana: palacete isolado no meio do campo.
No shopping, por mais que o excesso de informações convide à dispersão sensorial, existem normalmente espaços organizadores do conjunto, vazios com pés-direitos enormes, nos quais se pode debruçar a cada andar, ou ler a organização vertical do edifício em passeios por elevadores panorâmicos ou escadas rolantes. Igualmente, ali circulamos sempre por corredores de distribuição que têm por função dar acesso às lojas. Já na Daslu acontece o inverso: o modelo é o labirinto, com a informalidade de uma casa. Caminha-se erraticamente, sempre por dentro de lojas, e não por espaços frios de distribuição, o que faz com que as escadas apareçam como surpresas no percurso – parecem estar espalhadas ao acaso, sem formar um sistema integrado. De um ambiente a outro, atravessamos passagens que são, não raro, opressivamente acanhadas, ao mesmo tempo em que os pátios comuns que eventualmente encontramos como desafogo visual são pequenos e enclausurados, envolvidos por janelões no alto que “olham” para dentro. Está claro que tais características não são erros de projeto. É a claustrofobia charmosa de uma vila que se procura mimetizar, a promiscuidade doméstica daqueles espaços compartilhados.
Como não poderia deixar de ser, o dificultoso percurso pela loja é coroado por um gran finale. Depois de galgar alguns pisos entre aborrecimentos e prazeres – conforme o estado de ânimo de cada cliente -, somos presenteados com uma visão panorâmica de São Paulo, tendo a Marginal e o rio Pinheiros como tela, e o Jockey Club ao fundo. É nessa hora que avistamos também um helicóptero preto pendurado no vazio, gravado com as iniciais da loja. A insinuação é clara: a cidade é uma contingência. Deve ser saltada, sobrevoada, subtraída.
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