ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Whoopy Goldberg descobriu Pellé
Histórias de quem vive na pele dos outros
Ricardo Teté | Edição 6, Março 2007
Numa manhã de sexta-feira, vestido com uma camisa auriverde número 10, a estrela eterna do futebol brasileiro desfilava sorridente pelo festão do bairro do Bexiga. Comemorava-se o aniversário de fundação da cidade de São Paulo. Continuamente interrompido por pedidos de fotos e autógrafos, sua majestade parecia incansável. Apertava mãos, trocava beijinhos. Quando um microfone passava por perto, aproveitava para dar parabéns ao idealizador do evento e responsável pelo super-rega-bofe.
A multidão aguardava o sinal verde para avançar, aglutinada ao longo do bolo de 453 metros de comprimento que jazia sobre duas fileiras de mesas a céu aberto – 1 metro para cada ano de vida. Alguns mais afoitos, ao ver tão à mão aquele que é provavelmente o mais célebre dos brasileiros, não se continham: “Aí, Pelé, vai assumir a família?”, “Tá barrigudo, hein?”, “Pegou a Xuxa, né, negão?”. Se a língua portuguesa distinguisse entre o som de Pelé e Pellé, seria Pellé o que se ouviria. Ninguém acharia estranho e o detalhe não alteraria o assédio. Ali no festão todo mundo acaba sabendo que este Pelé em questão não se escreve com um l só, mas com dois. Seu nome de batismo não é Edson. É Nicanor. Nicanor Ribeiro. Profissão: sósia do rei.
Quem passasse pela folia paulistana naquela manhã festiva também daria de cara com sósias de Ronaldinho Gaúcho, Carlitos, Roberto Carlos (tanto o cantor como o lateral do meião), Raul Seixas, Elvis e Chacrinha (dois espécimes), entre vários outros gigantes. Eram eles que entretinham o público que tinha vindo homenagear a cidade. Afinal, para montar, seção a seção, um dos maiores bolos do mundo são necessárias horas intermináveis. Os sósias ajudam a matar o tempo.
Eles são presença obrigatória nas festas promovidas por Valter Taverna, seja no feriado do 1º de Maio, para a maior pizza do mundo, seja em outubro, quando o Bexiga festeja o Dia da Criança com o maior sanduíche do planeta (no caso, de mortadela). Ninguém ganha cachê, mas o anfitrião os convida para uma grande comilança numa de suas quatro cantinas no bairro.
Pellé é o sósia mais requisitado pela multidão. A carreira é recente na vida do cinqüentão Nicanor, mas ele responde com naturalidade, como se fosse Pelé desde que nasceu. Durante os 25 anos em que foi funcionário da Telesp, sempre usou barba e bigode, o que escondia a semelhança do plebeu com o nobre. No dia de sua demissão, em 1997, pouco antes da privatização da empresa, Nicanor Ribeiro chorou. Estava com 42 anos e tinha mulher e cinco filhos para sustentar. Decidiu abrir um pequeno negócio de entrega de água, que batizou de Nicas d’Água. Além disso, sacou o dinheiro do fundo de garantia e deu início ao sonho de uma vida: transformar em sobrado o quarto-e-sala onde a família morava na Vila Medeiros, bairro de classe média baixa de São Paulo.
Deu tudo errado. Nenhum negócio chamado Nicas d’Água pode ir adiante. A conta no banco escorregou para o vermelho, o nome de Nicanor foi parar no SPC e a obra na casa teve de ser interrompida. Nicanor começou a beber. Entre 1998 e 2000, bateu uma garrafa de conhaque por dia.
A virada se deu em março de 2001, durante um evento de rua freqüentado pela tribo dos sósias. Coube à atriz Veruska Souza – mais conhecida no meio como Whoopy Goldberg – pinçar Nicanor do meio da multidão e apontar a semelhança com o rei. Madrinha e visionária, Veruska alçou-o da condição de cidadão comum à posição de menecma – palavra dicionarizada que migrou da mitologia grega para designar “pessoa que tem notável semelhança física com outra”. Encaminhado para a agência O Gordo e o Magro, especializada em menecmas, Pellé começou a ser escalado para formaturas, bailes de debutante e festas de empresa. Também passou a freqüentar a televisão. Já fez dezenas de aparições em programas de tv, sempre em parceria com colegas do ramo, com os quais estabeleceu sólidas amizades. Seus cachês, em torno de 500 reais por evento, são hoje a principal fonte de renda da família Ribeiro.
Desde que se descobriu sósia de Pelé, Nicanor, emulando o original, parou de beber e de fumar. Sua aparição pública como Pellé nunca passa em branco: ou faz o povo rir ou deságua em choro, às vezes convulsivo. Por onde quer que passe, é cercado por gente que lhe pede emprego, ajuda para comprar uma cadeira de rodas, uma chance para o filho em algum clube de futebol. Nessas horas, o fato de Pellé não ser Pelé parece secundário. Para Nicanor, esse é o aspecto torto da sua dupla identidade: “Como é que eu vou ajudar se eu mesmo estou precisando de ajuda?”. No que pode, ajuda. Visita uma vez por ano, sem cobrar, algumas instituições filantrópicas que o convidam, como o Lar Escola São Francisco e a aacd, a Associação de Assistência à Criança Deficiente.
E então, o inevitável aconteceu. José de Abreu, presidente nacional do Partido Trabalhista Nacional, teve o estalo de lançá-lo candidato a vereador em 2004. Achou que a semelhança física era atributo suficiente para conduzir uma campanha a zero real. De fato, não se gastou um único centavo e Pellé conseguiu 600 votos também sem fazer nada. Esse resultado – equivalente a 1% da votação mínima para eleger um vereador em São Paulo – parece pífio. Mas é até apreciável, quando se pensa que foram obtidos pelo Nicanor Ribeiro, o amigo da garrafa que entregava água na Vila Medeiros com sua Caravan 78.
Pellé entrou na Câmara dos Vereadores de São Paulo dois anos atrás, durante uma cerimônia em homenagem a Assíria Nascimento, esposa do rei. Ao ver Ribeiro na fila dos cumprimentos, Assíria cutucou o marido: “Bem, olha o seu irmão ali!”. Sorriso aberto, o ídolo imediatamente estendeu a mão ao sósia: “Olha pra lá, negão”, disse o original à cópia, apontando para a muralha de flashes que espocavam em direção a Pelé e Pellé.
Para melhorar a renda do mês, Nicanor pretende começar um novo negócio. Vai comprar um táxi e batizá-lo de Táxi do Pellé. O figurino do chofer já está decidido: cabelinho à la Edson Arantes e terno e gravata ou camisa da Seleção. Enquanto a coisa não sai, sentado numa cantina do Bixiga, Pellé recapitula os grandes momentos do ofício com seus amigos canarinhos Roberto Carlos e Ronaldinho. Na mesa ao lado, Chacrinha, Kiko (amigo do Chaves) e Tim Maia ouvem amostras de sucessos de outro rei, Roberto Carlos, na voz de Raul Nazário, seu cover. Já quando os outros estão no fim do almoço, João Paulo II aparece para abençoar os amigos. Eli Ribeiro é sósia de Sua Santidade. Cumprida a bênção, escolhe uma mesa e pede um espaguete.