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A morte e a morte do Capitão América
Baudrillard, o franco-atirador da teoria de que tudo é ilusão, mandou o Capitão América desta para a pior
Ivan Lessa | Edição 7, Abril 2007
Jean Baudrillard tinha o peito estrelado do Capitão América na alça de mira de seu fuzil semiótico. Molhou de saliva dois dedos da mão esquerda e nela os passou. Baudri, como era conhecido nos meios da capoeira filosófica em Paris, prendeu a respiração, fechou um olho. Acertou no telescópio o outro, o bom, e começou devagar a apertar o gatilho. Estava apoiado na janela do quarto andar de um edifício abandonado em bairro anônimo de Nova York.
Do outro lado da rua, destituído de escudo, fumando um cigarro após o outro, tomando o cuidado de não queimar suas longas luvas vermelhas, a malha de lycra acentuando suas formas másculas, com a vasta estrela branca bem no meio do peito, e as listras vermelhas descendo até a cintura, o rosto como sempre coberto pelo capuz que lhe deixava livre apenas a boca e o nariz para respirar, as duas pequenas asas a lhe enfeitar a máscara (que ele nunca entendera para que serviam) e as botas, sempre vermelhas, que lhe emprestavam uns bons três centímetros a mais na altura, lá estava ele: a pústula irreal do Capitão América, ou Captain America, como preferem os mais jovens.
Ninguém lhe daria mais do que uns 30 e poucos anos. Beirava os 90. Na carteirinha de identidade, que nunca se esquecia de colocar no cinto de utilidades – que copiara de Batman -, seu nome, Steve Rogers, e o endereço de seu modesto apartamento. Em outro compartimento, uma pequena foto do velho companheiro de tantas aventuras, tantas loucuras, Bucky, há muito desaparecido. Possivelmente enfrentando o bando de Alzheimer e seus asseclas num hospital qualquer do Meio-Oeste. Cap, como os mais íntimos o chamavam, recebera um telefonema anônimo, dizendo que estivesse em tal rua e esquina, debaixo de tal lampião, às 11 horas da noite, sem falta. O assunto, dissera a voz disfarçada, era de seu interesse. Cap – a inteligência nunca fora seu forte – compareceu.
A bala ecoou pela rua abandonada e foi se aninhar bem do lado esquerdo da vasta estrela que enfeitava o céu que, naquela noite de fingimento, par nenhum de namorados veria embevecido: estrela a se apagar e a não realizar desejo algum de ninguém. Foi a bala furando o papel de jornal chinês (é mais barato lá), de que era constituído o velho herói, até atingir seu coração de papelão e Cap ir sangrando, sangrando e sangrando nanquim enquanto toda a sua vida desfilava pelos olhos de quem pagara suados trocados pelo número 25 de seu comic book, sua bande dessinée, seu gibi.
Jean Baudrillard, nervoso, deixou a arma por ali mesmo. Pegou de sua capa e pasta de couro – parecia um Lee Harvey Oswald no depósito de livros da biblioteca em Dallas – repleta de anotações para futuros ensaios e, vivendo num mundo que acreditava, não só possível, mas também real, desceu afobado as escadas e saiu à procura de um táxi, como ele, de verdade. Correu alguns quarteirões. Seu coração sentiu o esforço (era quase da mesma idade que Steve Rogers, ou o Capitão América), passou mal, um passante (real, assaz real) chamou a ambulância e o instigante pensador foi levado às pressas para um hospital de Paris, onde após tratamento intensivo (para valer, concreto, genuíno) veio a falecer – pediu o boné, vestiu o paletó de madeira, bateu com as dez, conforme se comentou, no dia seguinte, em bares bem informados do eixo Rio-São Paulo. Pouquíssimos falaram da morte quase no mesmo dia, mas ainda não traduzida para o português, do Capitão América. Baudri foi o papo e a pauta.
Você entende, meu bem, o Capitão América era de mentirinha. Jean Baudrillard, não. O primeiro deverá, mais uma vez, ressuscitar, o segundo não. O primeiro morreu inclusive no cinema em Sem Destino (Easy Rider), de 1969, juntamente com Bucky – Peter Fonda e Dennis Hopper, respectivamente -, filme que os cinéfilos julgam seminal para se entender os anos 60, 70 e a Guerra do Vietnã, embora o esplêndido escritor (para valer, e como!) Terry Southern tenha dado roteiro, boa parte dos diálogos e o título, pinçado num velho blues querido a Southern. “Cap” Fonda e “Bucky” Hopper foram mortos a chumbo grosso em sua moto quando um par de caipiras passou por eles. Morreram de mentirinha. Só no filme. Feito o herói das HQ. Terry Southern e Jean Baudrillard embarcaram para valer. Sem semiotizações maiores.
Pena que continue circulando nos States Frank Miller, responsável por inomináveis tolices que andam por aí – Sin City, 300 – empanando o nome, já meio besteira, de “romance gráfico”, que o bom, mas bom mesmo, Will Eisner, em 1978, criou sozinho, sem Bucky ou Frankie, com Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (lançado pela Brasiliense, entre vós, em 1988). Essas coisas são marketing e nada mais. Existem meio de banda, digamos assim. Mesmo o Maus, do Art Spiegelman, com seu prêmio Pulitzer, me dá sérias dúvidas (não entrarei nelas aqui). Melhor que, como a maior parte das coisas, não existissem. Só atrapalham. Baudrillard estava certo: a Primeira Guerra do Golfo não existiu. Kosovo, muito pouco. O Iraque, com tanta realidade, ou irrrealidade, vamos confundir um tico os pontos de vista, acabou levando Baudri ao fuzil e ao encontro marcado com o Capitão América. Contradizendo o poeta T.S. Eliot, a humanidade suporta um bocado de falta de realidade.
Pincemos, no entanto, o pensador gaulês, que, ao contrário dos super-heróis das HQ, não está mais entre nós: a natureza é imortal e os homens, mortais. Só o hiper-real poderá nos salvar. Os Estados Unidos, no fundo, mesmo com seus espaços abertos para a simulação (tecnologia etc.), são a única sociedade primitiva a subsistir no mundo. Também disse Baudri: “A única coisa a fazer é penetrar na ficção que é a América, nela penetrar como ficção. Pois é como ficção que a América domina o mundo”.
Em breve nas boas livrarias do ramo: A volta do Capitão América. E talvez O pensamento de Jean Baudrillard, um romance gráfico de Frank Miller e equipe. Possível que ambos virem filme.
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