“Paula”, enfim um nome diferente
Os cartórios estão às voltas com uma safra nunca vista de Ys, Ws e Ks
Roberto Kaz | Edição 8, Maio 2007
Em seu primeiro dia de vida, medindo 45 centímetros de altura e pesando 2 quilos e meio, Paula Regnier Porto conseguiu uma das coisas mais difíceis de se fazer no Brasil: mudou, no mês passado, a rotina dos escreventes do Cartório Catete, no Rio de Janeiro. Isto porque o escrevente brasileiro é um modelo de isenção profissional: nada o abala, nem as situações conjugais pouco ortodoxas. Ele é treinado, por exemplo, para não incomodar os pais que o procuram para registrar seus filhos, querendo saber o que não é de sua conta. Se um homem casado lhe declarar o filho que teve com outra, ele não tem nada a ver com isso. Se uma mulher solteira quiser arcar sozinha com a criança, ele ignora a existência do pai.
A esses deveres do ofício, o Cartório Catete, conhecido como Quarto Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato, acrescenta um cartaz da Campanha de Valorização do Cidadão Paterno. A campanha, diga-se de passagem, mereceria a proteção da única cláusula que obriga o escrevente a se meter na vida alheia: cabe-lhe evitar que os pais dêem aos filhos nomes ridículos. Mas, como nome ridículo é questão de gosto, a advertência não se aplica ao pé da letra. Nada impede que a Campanha de Valorização do Cidadão Paterno proclame, na parede do cartório, suas boas intenções: “Pai, você aqui é bem recebido”.
Todos os dias, umas quarenta pessoas lêem o cartaz. São, quase sempre, homens, tratando do registro antes mesmo que a mãe deixe a maternidade, embora a lei lhes dê quinze dias para providenciar os papéis. A clientela é de classe média. E o serviço, gratuito. Mas o Cartório Catete oferece mais. Recebe a clientela numa sala com bancada para trocar fraldas, guarnecida com um frasco de lenços umedecidos da marca Baby Wipe. Não dá para confundir a sala com os outros recintos, onde os funcionários atendem os interessados em certidões de divórcio ou atestados de óbito, porque ali o freguês se vê cercado de bebês por todos os lados. Há um quadro com nada menos do que nove cabeças de bebês, aureoladas por pétalas amarelas, formando um campo de girassóis. Num dos quadros, o bebê repousa numa folha de alface. Em outro, carrega um pêssego com o dobro de seu porte.
Os homens geralmente chegam ao cartório com um DNV na mão e um nome na cabeça. O DNV é coisa simples. Trata-se do Documento de Nascido Vivo, emitido automaticamente por quem faz o parto. O nome é um assunto mais complicado, mesmo quando se pretende simplificá-lo, como aconteceu no mês passado com Beatriz Fernandes Padrão Soares. A menina, segundo o pai, Márcio Padrão Soares, deve o nome a duas ponderações da família. Em parte, porque Beatriz quer dizer “aquela que traz felicidade”. E também porque a mãe descobriu, num sítio de numerologia, que as letras de Beatriz Fernandes Padrão Soares correspondem à data do nascimento, somando-se os algarismos do dia 23, com o 4 do mês de abril, mais o ano de 2007.
Os Soares tiveram sorte, porque a conta nem sempre fecha, como aprendeu o administrador de empresas Eliel Brum, ao fazer o registro de sua filha Allana Maria. Ela se chama Maria para quitar uma promessa da mãe, que a Virgem teria atendido. O pai adicionou Allana com dois argumentos. Primeiro, porque, a seu ver, “Allana Maria”, misturando o celta com o hebraico, vem a ser literalmente “Senhora Graciosa”, embora não faltem eruditos para embaralhar essa receita etimológica, traduzindo Allana, do irlandês arcaico, como “Oh! Criança”, e Maria como “Senhora”, o que não interferiu nos planos do comerciante Eliel Brum.
Insuperável, para Brum, foi o impasse numerológico. Allana Maria é sua terceira filha. Os mais velhos se chamam Paulo Estêvão e Marco Antônio. E ambos têm doze letras em seus nomes. O pai tem apreço pelo número doze, que considera cabalístico. Doze foram as tribos de Israel. Doze, os apóstolos de Jesus. O cartório fica na rua do Catete, 174. E “um, mais sete, mais quatro é igual a doze”, ele explica. A menina foi registrada no lugar certo, na hora certa. Mas, com a certidão redigida, impressa e carimbada, Allana Maria passou a ter para sempre onze letras no nome.
Até o último momento, o pai hesitou em juntar um “h” ao Maria, para arredondar a dúzia de letras. Mas não ousou propor a fórmula ao escrevente. Temia que o funcionário vetasse o remendo. Não sabia que lidava com um profissional da empatia. Feliz Orquídea, Fulva e Rena foram, um dia, registradas no Catete. Aliás, sem escreventes flexíveis, os livros de registro não estariam abarrotados de nomes grafados com k, y e w, três letras que caíram há tanto tempo do alfabeto português que já estão até se preparando para voltar, na próxima reforma ortográfica. Que o diga Antônio Feitosa dos Santos, cearense e “autônomo”.
“Autônomo” é um eufemismo adotado pela escrevente Raquel Soares para “desempregado”. O Cartório Catete tem filiais em hospitais de sua circunscrição onde nasçam crianças, o que inclui uma sucursal na Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá, como os partos são bancados por dinheiro público, não é raro que os pacientes sejam “autônomos”. Por isso, Fernanda da Silva Paiva tomava o cuidado de nunca pedir aos pais que lhe mostrassem os nomes dos filhos por escrito, num pedaço de papel. Pedia-lhes que os ditassem. Ela mesma se encarregava de redigi-los.
Foi o que fez com Antônio Feitosa dos Santos, ao registrar seu filho Maycon Feitosa Ribeiro. Fernanda lhe perguntou se Maycon terminava com n. “Pode ser”, ele respondeu. Ela achou que Santos estava renunciando à responsabilidade paterna, e retrucou: “Pode ser, não. É ou não é?” Mas o pai reservou sua opinião para o que realmente lhe interessava: “Para mim está bom. Só não quero com o i pingado. Prefiro aquela outra letrinha assim”. E desenhou, no ar, um y incontroverso.
O y, dizem os escreventes, está em grande voga. Por isso, no dia 19 de abril, Daniela Júnia Maciel, funcionária do Cartório Catete, largou a imparcialidade ao lavrar a certidão de Paula Regnier Porto. Paula mesmo, à brasileira, com u. Ao ouvir isso, a escrevente tirou os olhos do teclado, encarou o pai e repetiu: “Paula, taí um nome diferente”.
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