ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Cinema, guaraná e comunistas
De como a Coca-Cola comprou Jesus
Paula Scarpin | Edição 9, Junho 2007
O refrigerante mais popular do Maranhão chama-se Guaraná Jesus e foi inventado por um ateu. Como se não bastasse, um ateu com fama de comunista. Não basta? Então aqui vai: Jesus, no Maranhão, é cor-de-rosa.
Se a Igreja não chia, é porque “nenhum maranhense confunde o Guaraná Jesus com Jesus Cristo”, garante Fábio Gomes, neto do farmacêutico mais polêmico que já passou por São Luís. A inspiração para o nome da bebida não resultou de promessa, pressão de mãe carola ou esposa devota. A explicação é prosaica: Jesus Norberto Gomes tinha o hábito de batizar suas invenções com homenagens a si próprio, como atestam o Antigripal Jesus, o Xarope Peitoral Jesus e a Jesulina Pasta Dentifrícia. Com o guaraná, também desenvolvido nos laboratórios da Pharmacia Sanitaria, de que era proprietário, não foi diferente. Enquanto a Jesulina Pasta Dentifrícia, o Antigripal Jesus e o Xarope Peitoral Jesus entraram para o triste rol dos bens que não fizeram história na conturbada história do capitalismo brasileiro, o guaraná foi um sucesso retumbante.
O refrigerante Jesus é um fenômeno de vendas no Maranhão. Só lá. Tanto que nem a Coca-Cola resistiu, e acabou abocanhando a licença para fabricá-lo e distribuí-lo. “É uma estratégia da companhia comprar o produto líder de mercado numa região”, explica a representante da empresa no Maranhão, Raquel Macedo. E haja liderança: embora sem revelar os números, ela diz que o Jesus empata em vendas com a Coca.
A companhia tem feito pesquisas de preferência para verificar a possibilidade de fabricá-lo fora do Maranhão, mas, aparentemente, nem o neto do inventor dá um voto de confiança à empreitada, pelo bom motivo que o Jesus não se parece muito com o que o resto do Brasil entende por guaraná. Além de guardar notável semelhança cromática com a Pantera Cor-de-Rosa – ele é de um rosa-choque escalafobético –, paladares não-iniciados tendem a identificar nele o saborzinho que anima chicletes e gelatinas, aquela essência de tutti frutti que só as crianças toleram. Para o neto Gomes, que entende de gastronomia e, inclusive, mantém um grupo de estudos sobre azeites mediterrâneos, tudo isso é puro preconceito. “O cara vê uma bebida dessa cor, rosa, e já pensa que é uma balinha líquida, um xarope, quando na verdade o nosso guaraná tem bem menos açúcar do que os outros refrigerantes. Além disso, o sabor que mais sobressai é o de canela”, explica.
O refrigerante é todo feito à base de extratos vegetais, informa Gomes. Até o corante é natural. O avô Jesus, um pioneiro, trazia as ervas das expedições que fazia à Amazônia. “Antes de todo mundo começar a falar em biodiversidade, ele já achava que o grande tesouro farmacológico do mundo estava na selva amazônica”, conta. Nas relações trabalhistas, Jesus também era um inovador. “Quando ninguém falava em participação dos funcionários, meu avô dava participação nos lucros da farmácia”, orgulha-se o neto.
Por essas e outras, surgiram boatos de que Jesus Norberto Gomes era comunista. Em novembro de 1935, em decorrência da Intentona Comunista, oitenta cidadãos tiveram sua prisão decretada pelo governador Aquiles Lisboa. Jesus estava entre eles. O grupo foi transferido para o Rio de Janeiro, onde ficou até o ano seguinte. Fábio Gomes guarda ainda uma cópia da carta-testamento que o avô escreveu em 1958, cinco anos antes de morrer. Jesus pedia um funeral modesto e determinava que a diferença entre os custos das exéquias baratas e mais pomposas fosse doada ao Partido Comunista. Ele justificava: “Não fui e não sou socialista, infelizmente, porque seria um idealista. Como pequeno-burguês tenho defeitos, mas sou admirador sincero desse regime verdadeiramente humano, onde pode ser obtida a verdadeira democracia”.
O neto Gomes defende as virtudes do guaraná familiar mais para homenagear o avô do que por interesse pecuniário. Depois da morte do velho Jesus, os filhos se desfizeram da fábrica. Alguns tinham planos de sair do Maranhão, outros não se interessavam pelo ramo. Gomes passou nove meses nos Estados Unidos, e em seguida se mudou para São Paulo. “Fui maranhense e voltei paulistano, mas nunca rompi de verdade. Isso é motivo de análise até hoje”, diverte-se.
Durante algum tempo, Fábio Gomes se dedicou à publicidade. Uma de suas contas foi precisamente a do Guaraná Jesus. Concorreu com outras duas agências maranhenses, mas fazer a propaganda do refrigerante do avô era questão de honra, e ele acabou ganhando. Tudo corria bem, quando uma noite de insônia fez com que sua vida desse mais uma pirueta. Naquela madrugada, decidiu que a literatura de José Sarney seria tiro e queda para pegar no sono. Olhou para a estante, desdenhou Marimbondos de fogo, e abriu O dono do mar.
Perdeu o sono de vez, não conseguiu parar de ler. “Passei a noite inteira em cima do livro. Quando terminei, tinha uma idéia fixa na cabeça: transformar o romance em filme.” Gomes havia estudado com Fernando, filho do ex-presidente, e o contato não foi difícil. Difícil foi convencer o autor, que considerou a idéia esdrúxula. Não acreditava que a história incandescente de Cristório e Quertide pudesse ser adaptada para as telas. Não que soubesse bem o que fossem as telas. Sarney não pisava num cinema fazia vinte anos.
O jeito foi preparar uma espécie de Mobral cinematográfico para o ex-presidente. Gomes o sentou na frente de uma televisão e deu início ao intensivão. “Comecei com O carteiro e o poeta, para pegar leve. Quando acabou, ele só disse assim: ‘Menino, traga mais'”. Fábio trouxe Cinema Paradiso, A viagem do Capitão Tornado, Ginger & Fred, Blade Runner, a série completa do Indiana Jones. Um atrás do outro, para mostrar as novas possibilidades, os novos recursos. Sarney só se convenceu depois de assistir a Eu tu eles, dirigido por Andrucha Waddington. Achou que brasileiro tinha, finalmente, aprendido a fazer cinema.
O dono do mar deve estrear em breve. Sarney virou cinéfilo. “Agora, quando ele vem a São Paulo, só se hospeda no eixo Paulista-Augusta, para poder ver vários filmes”, diz o neófito cineasta. Não se sabe se Sarney assiste aos filmes com pipoca e guaraná cor-de-rosa trazido da terra natal.