Mecânico de automóveis de segunda a sábado e violinista da filarmônica nas horas vagas, Alexandre Ribeiro afina máquinas com ouvido de músico FOTO: ROGÉRIO REIS_2007
Consertos e concertos
A afinação de Alexandre Ribeiro, o mecânico de Jacarepaguá que toca violino na Orquestra Filarmônica do Rio
Silvia Pilz | Edição 10, Julho 2007
Sua oficina mudou-se recentemente do subúrbio industrial de Bonsucesso para Jacarepaguá. Mas o mecânico Alexandre Louzeiro Ribeiro continua suando a camisa, com as mãos sujas de graxa, entre carros com as tripas viradas pelo avesso. Ele é dono da Rio R134, oficina especializada em consertar ar-condicionado de automóveis. O nome soa estranho, mas faz sentido. Chama-se Rio, pela cidade encalorada onde mora sua freguesia, e R134, por ser esta a sigla de um tipo de gás de refrigeração inofensivo à camada de ozônio. A mecânica tem três funcionários. E o proprietário também pega pesado no batente. “Às vezes, durmo na oficina”, diz Ribeiro, que tem 37 anos. A sua semana de trabalho entra sábados adentro. É só nas horas de folga que ele veste o smoking. Para tocar violino na Orquestra Filarmônica do Rio de Janeiro.
As duas vidas de Alexandre Ribeiro raramente se cruzam. Mas como a Rio R134 oferece o serviço de retirada e devolução dos carros que conserta, houve há pouco um desses cruzamentos. Numa tarde, ao fazer a entrega de um automóvel, ele foi paramentado para seguir direto a um palco de concerto. O cliente, ao ver o dono da oficina de smoking, quis saber se ele ia a uma festa a fantasia.
Nessas ocasiões, a resposta de Ribeiro pode mudar os hábitos de quem faz a pergunta. Foi o que aconteceu com o empresário José Roberto de Souza Santos, que é colecionador de carros antigos e costuma deixar nas mãos do músico tanto sua frota de transportes como suas relíquias automobilísticas. Ele achou que era brincadeira, quando soube que o mecânico era violinista da Filarmônica. “Só acreditei quando fui ver o Alexandre tocar num concerto. Aliás, foi através dele que descobri a música clássica. Hoje, fico muito satisfeito quando penso que, graças a ele, levei meu filho, Thiago, de 5 anos, para assistir pela primeira vez à apresentação de uma orquestra.” Souza Santos agora torce para que o filho se anime a aprender um instrumento, em vez de tocar só botões de videogames.
Ribeiro, que nasceu em casa de músico, diz que foi “vidrado em carros” desde pequeno. Profissionalizou-se aos 18 anos, quando o pai de um amigo ofereceu-lhe “a oportunidade de trabalhar num ferro-velho”. Daí para a frente, passou por várias oficinas. Em todas elas, fazia o mesmo acordo: sair mais cedo nos dias de ensaio. O pacto sempre foi respeitado pelo patronato.
Quando ele próprio se tornou patrão, o pacto se inverteu. Seus empregados viraram claque do violinista. Nem sempre devido à música. Moisés da Silva Lima, mecânico de refrigeração, que está na Rio R134 há um ano, diz que Ribeiro, além de contratá-lo, acolheu na oficina seu irmão, de 32 anos, que morava nas ruas. “Meu irmão sofre de alcoolismo”, diz Silva Lima, “e o Alexandre trouxe ele aqui para dentro e saiu em busca de uma clínica especializada, que pudesse ajudá-lo a recomeçar a vida.”
Embora lidando com automóveis de segunda a sábado, Ribeiro se considera, “no fundo”, violinista. “Se uma oportunidade interessante surgisse, largaria tudo e viveria para a música”, diz. A oficina é seu ganha-pão. Ele diz isso sem desprezo: “Tenho orgulho do que construí. Mas nada se compara à música”.
Ele começou a arranhar as cordas do violino aos 11 anos, como castigo por não ir muito bem na escola. O pai, Amélio Ribeiro, que está com 68 anos, obrigou o menino a estudar o instrumento. “Naquela época, enquanto meus amigos jogavam futebol, eu estudava três horas de violino por dia, muitas vezes chorando. Hoje, choro se me deixarem longe dele”, lembra.
O primeiro professor de Ribeiro foi o pai. Mais tarde, Amélio contratou professores particulares como José Alves, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ribeiro só estudou até à 7ª série do 1º grau. E nunca pensou em fazer o Conservatório. Segundo o pai, Alexandre era rápido, apesar do temperamento dispersivo. O filho, ao contrário, se tem na conta de um esforçado. “Nunca fui ligado em esportes, porque a música exige muito tempo e estudo”, diz ele. Aos 13 anos, encarou seu primeiro concurso, na Orquestra Sinfônica Jovem do Teatro Municipal. Passou. Numa orquestra como aquela, um terço dos instrumentos costuma ser de violinos. Ao se ver na orquestra, acompanhado por outros 70 músicos, tomou gosto pela coisa. “Foi ali que eu realmente abracei a música, e jamais me separei dela”, diz.
O sergipano Amélio Ribeiro sempre deixou claro para os filhos que, enquanto estivessem em sua casa, seriam obrigados a tocar um instrumento. Sua filha Elisa Cristina tocava violoncelo. Escolheu-o por motivos essencialmente práticos: “Comecei com piano. Mas como piano não se carrega e de violino eu já estava cansada, acabei me apaixonando pelo violoncelo. Toquei dos 12 aos 19 anos”. Ela relata que, como perderam a mãe logo na infância – Alexandre, com 3 anos, ela, com 5 –, os dois acompanhavam o pai nos ensaios e concertos. “Vivíamos brincando entre as cadeiras. O Municipal foi nosso playground. Meu pai sempre foi tão vidrado em música, que acabou não percebendo a paixão que Alexandre sempre teve por carros.” Ao se casar, Elisa largou a música.
Amélio conheceu a mãe de Elisa e Alexandre, Carmelina Louzeiro, no Seminário Arquidiocesano de São José, onde passou oito anos. Lá, no Conservatório de Música, estudava violino e viola. Sua intenção era ser padre. Largou a batina pela piauiense Carmelina, enfermeira do Hospital Servidor do Estado. “Quando nos conhecemos, ela vivia num convento, daqueles que, na época, recebiam moças solteiras vindas de fora”, ele recorda. Do Seminário, Amélio foi trabalhar no Banco Nacional de Minas Gerais, por cinco anos. Ficou viúvo em 1974, e só se casou novamente em 1991, com Elisabete Schmidt Ribeiro. Ela também se casou com o violino e agora integra a Orquestra do Conservatório de Niterói.
Amélio tocou na Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência do maestro Isaac Karabtchevsky. Viajou, em turnês, pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Recorda, com orgulho, de uma temporada com Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Miucha, no Canecão, nos anos 70. Aposentou-se pela Orquestra Nacional Brasileira, tocando viola, e hoje recebe 3 000 reais por mês. Ainda se apresenta, por prazer, na Filarmônica, ao lado do filho.
A Filarmônica, fundada em 1978 pelo maestro Florentino Dias, que até hoje rege a orquestra, tem setenta músicos e o diploma de utilidade pública, como entidade sem fins lucrativos. Como não tem vínculos com o Governo, depende de patrocínio privado. O maestro sabe que a maioria de seus músicos tem outros empregos. “Meu sonho é poder pagar aos músicos um salário justo, para que eles possam se dedicar exclusivamente à música”, diz. “Alexandre é um excelente músico. Seria um sonho vê-lo com as mãos longe da graxa.”
O maestro, empenhado em divulgar a música entre os cariocas, conseguiu que a Filarmônica fizesse concertos em praias, colégios e condomínios. Florentino Dias é um devoto dos concertos ao ar livre, sobretudo em bairros carentes. Há seis anos, inaugurou na Rocinha a série “Concertos em Favelas”. Em seguida, tocou também na quadra da Mangueira, com a bateria da escola de samba. O CD Filarmônica na Rocinha, gravado ao vivo, saiu em 2000.
Alexandre Ribeiro estava lá. “Subimos em dois ônibus, para uma quadra no alto do morro. O palco estava devidamente armado, mas não tínhamos público. Nem mesmo um curioso para contar a história. Conforme começamos a afinar os instrumentos, às três da tarde, suando e vestidos a caráter, a platéia foi surgindo e, ao final do concerto, estávamos, enfim, gravando um CD ao vivo, com um público decente. A música foi penetrando a Rocinha, as vielas, as casas. Perceber a aproximação do público foi emocionante.”
Marcante mesmo foi olhar para o alto e avistar um rapaz, sentado numa laje, de fuzil em punho, ouvindo a “Valsa das Flores”, de Strauss. No final do espetáculo, a caminho do ônibus, crianças começaram a abordá-lo. Queriam ver o instrumento, tocá-lo. “Não pude deixar a oportunidade escapar”, lembra Ribeiro. “Me ajoelhei, ensinei como é que se posicionava o instrumento e deixei que eles sentissem o som do arco tocando as cordas.”
Foi daí que Ribeiro tirou a idéia de dar às crianças do morro a chance de achar uma flauta, um fagote ou um violino mais atraentes que uma arma. Combinou com o maestro e, num concerto no Morro do Cantagalo, as crianças puderam invadir o palco, durante a última peça, aproximando-se dos músicos e instrumentos. Ele já viu a mesma cena de outro ponto de vista. Um dia, depois de um concerto no Municipal, foi à beira do morro de Santo Amaro, no Catete, tomar uma cerveja. Estava de smoking, com o estojo do violino debaixo do braço. Foi interpelado por moradores. Armados, queriam tirar a limpo o que levava na caixa. Ele conta, rindo, que precisou abrir a caixa e mostrar que se tratava de um violino, feito em 1925. Não bastou. “Os sujeitos me perguntaram se eu sabia tocar aquilo e eu disse que sim, que era músico e que estava vestido daquele jeito porque vinha de um concerto no Municipal. Um deles me olhou sério e disse: “Então, toca”. O músico ficou sóbrio na hora, atacou de Eu sei que vou te amar, de Vinicius de Moraes. O pessoal do boteco não queria mais que ele parasse. Provou que com a arte se pode salvar a vida.
Ribeiro está acostumado a audiências informais. Toca em festas e casamentos. Além de reforçar a renda, admite que se diverte ao tocar sem o peso da orquestra. “Eu penso que estou divulgando o trabalho e não desvalorizando o músico ou a música clássica”, esclarece. Ganha 100 reais num casamento na Candelária. Não seria pouco? “É o mesmo que ganho em dias de ensaio e de concertos”, informa.
Ele faz parte da Igreja Evangélica Sara Nossa Terra, na Ilha do Governador. Há quase dois anos freqüenta os cultos. Acha que, desde então, está mais estável, tranqüilo e próximo de Deus. O pastor Jonas Luiz da Silva, de 52 anos, considera a vinda do violinista um presente para a igreja. “A música é divina e eu sempre orei pela chegada de um violino que pudesse incrementar nossa banda”, afirma.
O pastor começou a Sara Nossa Terra da Ilha do Governador fazendo reuniões em sua própria casa, em 1999, com apenas vinte pessoas. Hoje, congrega mais de 3 000 fiéis. As músicas da banda da igreja são compostas pelos fiéis. O pastor Jonas da Silva é biólogo virologista. Trabalha para a Organização Mundial da Saúde, no Centro Pan-Americano de Febre Aftosa.
Foi na igreja que Ribeiro se encantou com Alessandra Oliveira e Sousa, com quem se casou, em janeiro do ano passado. Ela abriu mão do ofício de fisioterapeuta para ajudar o violinista na administração da Rio R134. “Para não largar de vez a profissão, trabalho dois dias por semana com fisioterapia, numa casa para recuperação de idosos”, ela conta.
Fora dos consertos e concertos, Ribeiro descansa tocando jazz. “Adoro improvisar”, diz. “A partitura, de certa forma, limita a criatividade do músico, faz ele esquecer de brincar com o instrumento.”
Como Ribeiro, Astrogildo de Almeida Reis Filho é violinista. Ele tem 69 anos, e vinte de Filarmônica. Sempre incentivou o colega a participar de concursos para orquestras mais prestigiosas, como a Sinfônica Brasileira ou a do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Mas reconhece que o número de músicos clássicos disponíveis é maior que o de vagas para tocar profissionalmente. Para seus ouvidos, Alexandre Ribeiro é um músico talentoso, que não teve maiores chances por causa do tempo que dá à oficina. E aproveita para elogiá-lo como mecânico. Revela que, na Rio R134, resolveu um problema que o perseguia há tempos, “um barulho chatinho que nenhuma autorizada conseguia descobrir de onde vinha”. Não é para menos. Como diz Astrogildo, “mecânico com ouvido de músico não se encontra em qualquer canto”.