ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
O rabo sumiu
Mistério do além no Museu do Ceará
Natércia Pontes | Edição 11, Agosto 2007
Parte da peça mais visitada do Museu do Ceará continua desaparecida há quase dez anos. Pesquisadores, funcionários, monitores e o próprio diretor da instituição discordam quanto ao paradeiro de um naco da maior celebridade ruminante do estado: ninguém sabe que fim levou o rabo do bode Yoiô.
Yoiô aportou em Fortaleza acompanhado por um grupo de flagelados que fugiam da seca de 1915. Foi vendido ao dono de uma firma inglesa de peles, a Rossbach Brazil, que se afeiçoou à primeira vista por aquele belo exemplar da espécie caprina. Sua pelagem brilhante, o porte altivo e uma plausível ascendência européia insinuavam a possibilidade de sangue azul. Yoiô tinha ares de rei. Foi poupado.
Gozando a regalia de não ser molestado pelos fiscais da prefeitura, o bode perambulava solto pelas redondezas da Alfândega, localizada na Praia do Peixe, antiga Praia de Iracema, e, de lá, ia e voltava para a Praça do Ferreira, berço da intelligentsia e boemia fortalezense. Com o tempo, ganhou a alcunha de Yoiô e a fama de flâneur e beberrão (tinha uma queda por cachaça). Tornou-se cidadão honorário da capital do Ceará nos anos 20.
Medindo 85 centímetros de altura, 1,15 metro de comprimento e 35 centímetros de chifres, o bode Yoiô devia pesar de 20 a 30 quilos quando vivo, estima o sargento Lima, antigo criador de bode e atualmente segurança do Museu do Ceará, onde repousa, altaneiro, o corpo embalsamado do célebre animal. O museu recebe por volta de 20 mil visitantes por ano.
A funcionária mais antiga do museu, Leide Rodrigues, não lembra muito bem, mas acredita que o sumiço do rabo tenha sido mais um dos acidentes ocorridos durante a mudança da sede da instituição, em 1990. Enigmática, dona Leide sussurra: “Ouvi falar que fizeram macumba com o rabo do bicho…” Já Joselene Maciel, monitora do museu, assegura que foi um gringo que seqüestrou o apêndice, lá pelos idos de 1996: “Te juro, foi assim que me contaram”.
O diretor do Museu, Régis Lopes, tem uma hipótese mais prosaica. O problema se explicaria pela “queda de cabelo” que vem vitimando Yoiô: “Os pêlos foram caindo, caindo, até que não existia mais rabo”. Já a pesquisadora do museu, Cristina Holanda, confessa: “Não faço a menor idéia”.
Muitas lendas rondam a passagem pela Terra do venerando caprino. A mais extraordinária tem ligação com o além. Segundo consta (não se sabe bem onde), o bode Yoiô foi a reencarnação do malfadado seresteiro Paulo de Castro Laranjeira, também engenheiro fiscal das obras do Estado. Laranjeira se apaixonou perdidamente por uma figura esbelta de olhos verdes, e aí, nunca mais foi o mesmo. Ansiou tanto o casamento que, desenganado, matou-se debaixo do sobrado da moça depois de cantar Teu Desprezo, modinha de sua autoria cujo estribilho dizia: “Teu desprezo me arrasta lentamente/ Para a campa solitária vou partir/ E a morte será minha vingança/ Para que serve, ó mulher, eu existir”. Morreu com um tiro de pistola no ouvido, às 23h30 do dia 14 de fevereiro de 1897.
Dezoito anos depois da tragédia, madrugada adentro, o bode Yoiô passeava despreocupadamente pela cidade quando passou ao lado de uma roda de seresteiros, bem na hora em que alguém se lembrava da morte prematura do Laranjeira. Em homenagem póstuma, um rapaz conhecido como Fetinga entoou os primeiros versos de Teu Desprezo. De um golpe, Yoiô caiu em convulsões, apoplético, de língua para fora, derrubado. Houve espanto e desespero. Todos acudiram o bicho. Para alegria geral, o quadrúpede aos poucos se recuperou. Sobreviveu à estranha síncope, apesar do evidente brilho triste no olhar. Desconfiaram. Cantaram novamente para testar. De novo, o bode, epilético, caiu estrebuchando no chão. Estava provado: era, de fato, o espírito do finado Paulo Laranjeira encarnado em forma de bode, no corpo de Yoiô.
A história da reencarnação irritou o clero local, que, temendo heresias idólatras, proibiu qualquer menção ao caso na imprensa. O bode, indiferente, continuou sua vida de fanfarrão, comendo faixas inaugurais nos eventos cívicos, seguindo cortejos fúnebres e zanzando pelo bairro comercial. O fato é que, um ano depois da queda da República Velha, em 7 de novembro de 1931, Yoiô morreu, ninguém sabe se de cirrose ou velhice. Sua morte mereceu necrológios em todos os jornais da cidade. Foi empalhado e, dois anos mais tarde, doado ao Museu do Ceará, para estupor de cidadãos mais conservadores.
Apesar da barbicha rala, dos olhos vidrados, do sorriso sardônico – sim, Yoiô sorri – e do rabo postiço, o bode não perdeu a pose. É, segundo o restaurador Frederico Barros, a vedete do museu e merece cuidados especiais. O problema da queda de pêlos vem sendo tratado periodicamente com hidratante próprio para couro. O produto é importado da Itália.