O projeto de Affonso Eduardo Reidy foi a primeira obra de porte, no Brasil, a usar concreto aparente. A solução para sustentar a estrutura, por colunas em V, causou inveja a Le Corbusier ILUSTRAÇÃO: FERNANDO SERAPIÃO_2007
Jogo dos sete erros
A construção do teatro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro conclui, depois de mais de meio século, um marco do modernismo arquitetônico. Mas o resultado valeu a espera?
Fernando Serapião | Edição 12, Setembro 2007
“Ora veja: eu quis fazer esta coluna, mas não tinha armação desse tipo”, sussurrou um dos grandes arquitetos do século XX. O desabafo, em tom de superioridade, e talvez com uma ponta de inveja, foi feito por Le Corbusier, enquanto ele caminhava pelo piloti do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, ainda em construção. Era o final de 1962, quando da terceira e última viagem do projetista franco-suíço ao Brasil, num banquete em sua homenagem. O motivo da viagem foi seu projeto da embaixada francesa em Brasília, nunca construído. Havia um clima de despedida no ar. Além de representantes oficiais – diplomatas do Brasil e da França -, compareceram alguns dos principais arquitetos brasileiros. Entre eles, Lucio Costa e Affonso Eduardo Reidy, o projetista do MAM.
O discurso do ex-ministro da Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, emocionou Corbusier, que estava com 75 anos. Sua conturbada, mas frutífera, relação com o Brasil, iniciada no final dos anos 20, terminava com um balanço ambíguo. Se, de um lado, apesar de inúmeras tentativas, ele nada edificou por aqui, do outro, a arquitetura moderna brasileira, ainda que com vida própria, dava sinais evidentes de ter incorporado suas lições. No almoço, vestindo terno claro e usando os acessórios que o identificavam (os pesados óculos de aro redondo e a gravata-borboleta), Corbusier sentou-se ao lado de uma senhora dezesseis anos mais jovem, que usava um vestido com pregas e estava com os braços à mostra. Era Carmen Portinho, companheira do projetista do museu. A posição de destaque dela à mesa não se devia a seus laços com Reidy: além de dirigir o museu, ela fora também a responsável pela sua construção. Ou seja, era a anfitriã do banquete.
Carmen Portinho foi a terceira brasileira a receber um diploma de engenharia. Se o pioneirismo acadêmico não bastasse, ela também dirigiu a Escola Superior de Desenho Industrial, a Esdi, e editou a revista municipal de engenharia. Com uma personalidade política e expansiva, ela serviu de suporte para o desenvolvimento do talento de Reidy, um homem reservado e tímido. Nunca oficializado, o casamento deles durou quase trinta anos e não deixou descendentes. Deixou para a cultura brasileira, contudo, um invejável conjunto de obras públicas que pensaram juntos – ela como diretora do Departamento de Habitação Popular do Rio, e ele como arquiteto responsável pelos projetos. Nesse espólio, está o Museu de Arte Moderna. Mesmo não sendo público, o museu foi criado e construído por eles, como oferecimento da municipalidade, e ambos não receberam honorários.
O museu, fundado em maio de 1948, surgiu graças à iniciativa de Nelson Rockefeller, que convenceu políticos e empresários da então capital federal da importância de a cidade ter uma instituição cultural do gênero. As duas primeiras sedes foram temporárias: o último piso do Banco Boavista, na avenida Rio Branco, e parte do piloti do Ministério da Educação e Saúde. Ambas foram desenhadas por Niemeyer que, preferido de Capanema, por pouco não foi designado para desenhar a sede à beira-mar. Com a segunda diretoria eleita, tendo à frente Carmen e a empresária Niomar Muniz Sodré, o museu deslanchou. A fim de construir sede própria, em dezembro de 1952 o MAM ganhou da prefeitura um terreno de 40 mil metros quadrados, numa área a ser aterrada, no Flamengo, com o desmonte do morro Santo Antônio.
A obra de Reidy foi a primeira de porte, no Brasil, a usar o concreto à vista. O ponto forte do desenho é a solução estrutural do volume de exposições: a coluna em V, que invejou Corbusier, apóia no braço interno a laje do primeiro piso (o salão de exposições) e, no braço externo, a cobertura. O pórtico formado pelos pilares de fora sustenta o segundo piso, por meio de tirantes. O mote desse malabarismo estrutural, tal como pregava a arquitetura moderna, é deixar a paisagem fluir pela construção. Essa é a origem dos pilotis, dos ambientes contínuos, do uso do vidro, das rampas e circulações generosas. A filosofia do projeto foi a de criar um espaço de liberdade, de diluir a noção de espaços público e privado.
Desde os primeiros esboços de Reidy, fica clara essa intenção. Numa sequência de três croquis explicativos, quase um diagrama, ele demonstra o desejo de que o prédio não influísse na “belíssima paisagem”. Para isso, há poucos pontos de apoios deixando “livre grande parte do pavimento térreo”. O desenho-diagrama é ilustrado com o pavilhão de exposições. Disposto no sentido leste-oeste do terreno, o pavilhão é o mais significativo dos três que compõem o museu. Situados em extremidades opostas, os outros dois são o bloco-escola e o teatro.
Carmen Portinho encarava a construção do museu como uma missão cívica. Deve-se a ela a correlação entre projeto e obra. Além da dificuldade em colocar de pé a complexa estrutura, havia também o detalhamento minucioso de Reidy, um dos mais rígidos e exigentes arquitetos brasileiros. Em seu projeto, por exemplo, o perfil das janelas coincide com a junta dos tijolos, e as tomadas, nos banheiros, ficam bem no meio dos azulejos. Não se fez economia na construção. Por isso, o museu foi executado em partes. Reidy só conheceu o bloco-escola, inaugurado por Juscelino Kubitschek em janeiro de 1958. Aos 54 anos, ele morreu de câncer nos pulmões em agosto de 1964. Três anos mais tarde, o pavilhão de exposições foi aberto. Um incêndio fez desaparecer parte do acervo em 1978 e o museu foi reaberto só quatro anos depois do fogo, após uma restauração malsucedida. Em 1999, outra restauração mais minuciosa deixou o MAM no prumo. Mas o teatro ficou para trás. Carmen morreu em 2001, aos 98 anos, sem imaginar que ele seria construído.
O teatro só foi construído devido a um hipermercado. Em 2002, ao participar do projeto de um Extra no Maracanã, onde havia ainda uma construção de interesse histórico – a primeira fábrica de cerveja da cidade -, o arquiteto Luís Antônio Rangel entrou em contato com a Rio Arte. O seu cliente gostaria de restaurar o edifício e passar a gestão dele para a prefeitura. Foi assim que ele conheceu o presidente da instituição, o também arquiteto Ricardo Macieira. Eles não só se tornaram amigos como projetaram juntos o Centro Coreográfico do Rio, inaugurado em 2004. Quando César Maia se reelegeu prefeito, Macieira foi nomeado secretário da Cultura. Antes de assumir, conversou com conhecidos sobre idéias para tocar no governo. Para o novo amigo, perguntou: “o que você acha que devo construir?” De bate-pronto, Rangel respondeu: “pelo amor de Deus, completa o teatro do Reidy!”, e contou a história do projeto. Macieira registrou a idéia.
Ele lembrou da conversa meses depois, ao saber do interesse de um grupo paulista em construir uma casa de espetáculos no Rio. “Estávamos procurando há mais de cinco anos um lugar no Rio”, diz Gladston Tedesco, um dos sócios da Tom Maior Empreendimentos, que controla a Tom Brasil e o Tom Jazz, em São Paulo. Tedesco, corpulento e falante, cuida da parte administrativa. Seu sócio Paulo Amorim, mais tímido e reservado, faz o trato com os artistas. Ambos trabalharam no governo Quércia.
Em 1995, eles abriram o primeiro Tom Brasil, na Vila Olímpia, e em 2003 outra casa, na chácara Santo Antônio. Ambas foram inauguradas por João Gilberto, em shows inesquecíveis, o que lhes conferiu um atestado técnico de qualidade do sistema de som. Do ponto de vista arquitetônico, a primeira foi mais bem cuidada, pois a segunda sofreu com o corte de verba. Além dos espetáculos, eles usam a estrutura do Tom Brasil para abrigar eventos corporativos. “Não é raro que uma apresentação musical dê prejuízo”, relata Tedesco. “Por isso, no ano passado, em São Paulo fizemos 96 shows contra 140 eventos, que são uma garantia de lucro.”
Era exatamente uma casa desse gênero, para shows e eventos, que Amorim e Tedesco queriam abrir no Rio. Tentaram primeiro um acordo com o Canecão e depois com a Marina da Glória. Nas conversas com os administradores da Marina, Macieira conheceu a dupla. Por problemas de contrato e de tombamento da área da Marina, as negociações não foram adiante. Macieira lembrou do museu e falou com Tedesco: “Olha, pouca gente sabe, mas existe no MAM um projeto de um teatro que nunca foi construído. Como faz parte do desenho original, pode ser que se consiga construir agora”. Levantando as sobrancelhas, seu interlocutor respondeu: “Isso me interessa”.
No encontro seguinte, Macieira e os dois empresários paulistas se reuniram em torno da mesa de um restaurante no Rio com João Maurício de Araújo Pinho e Carlos Alberto Gouvêa, presidente e vice-presidente do museu. Dias depois, a direção do MAM foi a São Paulo, para conhecer de perto os empreendimentos. Começou um namoro, que logo chegou ao altar. Para a cúpula do museu, a idéia representaria a possibilidade de independência financeira. Para os empresários, a oportunidade de abrir no Rio uma casa bem localizada, num conjunto arquitetônico nobre. “Não queríamos nada na Barra”, lembra Tedesco. O contrato de vinte anos, renovável por mais vinte, reza o seguinte: o grupo paulista fica responsável pelo financiamento e pela construção do teatro, pagaria um aluguel reajustável para o museu e teria uma participação proporcional à quantidade de vezes que o espaço fosse utilizado.
Do ponto de vista formal, o teatro é a peça mais expressiva do conjunto. Enquanto as outras duas construções são contidas, o teatro, pelo próprio uso, possui formas curvas e tem uma massa mais densa e pesada. A idéia foi descrita por Reidy em 1953: “Na extremidade leste do conjunto ficará situado o teatro, com mil lugares. O palco terá uma largura disponível de 50 metros, 20 de profundidade e 20 de altura livre. A construção cênica baseia-se num sistema de carros movimentados eletronicamente, que se deslocarão para os espaços laterais e de fundo do palco. A boca de cena terá 7,5 metros de altura e 12 metros de largura, podendo chegar a 16 metros em caso de abertura total, para a realização de concertos sinfônicos”.
Ou seja, era um teatro de grande dimensão para uso cênico, com acústica para atender também a apresentações musicais. Existem apenas dois teatros cariocas com capacidade maior: o Municipal (2 365 lugares) e o João Caetano (1 220 lugares), ambos construídos antes do projeto de Reidy. O teatro daria uma estrutura invejável ao MAM: que outro museu no mundo possui um teatro com essa dimensão? O Masp, para ficar com um exemplo nacional, tem somente dois pequenos auditórios.
Pelos desenhos originais, percebe-se que o foyer seria dividido em dois níveis: um no térreo e outro no piso superior, que coincidiria com a parte mais alta da platéia (que teria também um balcão). Assim como no Municipal, o foyer superior se abriria para uma generosa varanda, um terraço-jardim, cujo piso é a marquise que protege a entrada e conecta o museu ao teatro. No subsolo, estariam o fosso da orquestra, os camarins e duas salas de ensaio, com 450 metros quadrados cada.
Mas não era nada disso que os empresários do Tom Brasil desejavam. Eles queriam uma casa de show que pudesse alternar, dependendo do gênero, de 2 500 lugares sentados (em configuração de mesas) a 6 000 espectadores de pé (como uma imensa pista de dança). E, para os eventos corporativos, seria necessário fazer cozinha industrial, capaz de servir pratos quentes para até 6 000 pessoas.
Pela qualidade do desenho e de seu entorno, desde 1965 o museu é protegido por tombamento federal. Depois disso, os órgãos estadual e municipal que cuidam do patrimônio histórico também criaram leis para protegê-lo. Em miúdos: o museu é quase blindado, pois qualquer modificação, mesmo que mínima, deve ser aprovada por diversos órgãos públicos, que costumam ser rigorosos. Quando existe tombamento em mais de um âmbito, a praxe funciona assim: se não há disputa política, todos esperam e acompanham a resolução da esfera superior. No caso do MAM, foi o órgão federal – o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan – quem deu as cartas. E no início de 2005, a superintendência fluminense do Instituto, na época dirigida pela arquiteta Thays Pessotto, entendeu o seguinte: o que interessava preservar era o volume externo, que deveria ser construído de acordo com o que foi imaginado por Reidy, mesmo que o uso e os interiores fossem alterados. Era tudo o que a direção do MAM e os empresários paulistas queriam ouvir.
Faltava um arquiteto para bolar o novo arranjo. Pelo telefone, Rangel recebeu a notícia do secretário da cultura: “Arrumei um pessoal que vai fazer esse negócio”. Além de ter fomentado a retomada da construção, Rangel tinha no currículo uma qualificação especial para trabalhar naquela idéia: durante mais de dois anos, ele foi estagiário de Reidy no projeto do museu. “Reidy era um cara muito sério”, recorda o arquiteto, que gosta de contar histórias da época. Ele lembra que, com a nova capital federal na pauta do dia, perguntou ao mestre: “Doutor Reidy, o senhor não entrou no concurso de Brasília?” A resposta negativa que ouviu foi ácida: “Eu faço as coisas com mais seriedade”.
Formado no início dos anos 60, Rangel tem escritório num prédio antigo do Flamengo que era residencial e agora tem uso misto. Fica lá só à tarde: pela manhã acompanha, como contratado pela prefeitura, a construção da Cidade da Música, na Barra, desenhada pelo francês Christian de Portzamparc. Sua faceta profissional mais conhecida é em restauração (além do Centro Coreográfico do Rio, fez ainda a recuperação do Copacabana Palace) e, principalmente, em hotelaria. É dele o desenho do Le Méridien da avenida Atlântica, feito com Paulo Casé, seu ex-sócio.
Tudo caminhava bem: empresários bem intencionados, um museu de renome prestes a ganhar independência financeira, um marco da arquitetura modernista a ser concluído com a ajuda de um ex-aprendiz, e a cidade que ganharia um equipamento cultural de peso. O que poderia ser melhor? Algo na receita, no entanto, desandou. Para entender o que aconteceu, é preciso comparar o projeto original com a obra finalizada. O que resulta é um jogo de sete erros.
A primeira dessemelhança diz respeito ao uso. A mudança de uso – de teatro para casa de espetáculos – em vez de ser complementar, conflita com as atividades do museu. Gerido por terceiros, o espaço não é pautado pela programação cultural do museu. João Maurício se defende: “Adoraria que apresentássemos ópera – aliás, nem sei se adoraria -, mas as coisas mudaram”. Segundo ele conta, nos últimos anos investiu-se para atrair o público jovem, por exemplo com desfiles de moda. O presidente alega também que o museu não conta com receita do governo. Segundo afirma, quando iniciou sua gestão, havia uma dívida de cerca de 10 milhões de reais, e hoje o MAM está tão azul quanto o céu de inverno carioca. Parte da dívida foi conseguida com a receita gerada pelos eventos, inclusive festas de casamento.
O argumento dos empresários paulistas é outro: “Quem no Brasil visita um museu?” pergunta Tedesco. “Revitalizamos aquilo tudo: na região, havia ponto de drogas e prostituição. Hoje está completamente diferente. E, depois que inauguramos, triplicou a freqüência do museu.” Os empresários informam também que, vez ou outra, há parceria entre o MAM e a casa de shows: ao comprar um ingresso, o espectador ganha uma entrada para o museu. “Não houve mudança de uso: houve uma atualização”, diz, por sua vez, o atual superintendente do Iphan, Carlos Fernando de Andrade.
O problema da mudança de uso é outro. Um dos preceitos básicos da arquitetura moderna é que a forma segue a função. Assim, o teatro do MAM não tinha aquela forma por acaso: sua expressividade era fruto dos espaços que ele abrigaria. Dito de outro modo, a expressão volumétrica de Reidy para um teatro de 1 000 lugares se tornou falsa com outro uso. O volume da caixa do palco, por exemplo, só teria aquela altura para abrigar os urdimentos (a parafernália que suporta a troca de cenários, iluminação e outros recursos). Na casa de show, aquele volume não tem função. A cozinha e o público maior, igualmente, exigem acessos diferentes, estacionamento e rotas de fuga com outras dimensões, como as duas saídas laterais que não estavam previstas no projeto. Ficam as questões: se era para modificar o uso, não seria mais verdadeiro construir um volume diferente? O que é melhor, um Reidy falso ou outra coisa, mais verdadeira?
O segundo dos sete erros diz respeito, especificamente, à relação interior-exterior. Para os arquitetos modernos, como Reidy, há uma continuidade entre os conceitos daquilo que se vê dentro com aquilo que está por fora. Eles não concebem o exterior como se fosse uma casca de ovo, nem o interior como se fosse um cenário: há uma unidade. A partir do momento que o projeto do interior de Reidy foi para o lixo, a unidade se perdeu. Mesmo admitindo a mudança de uso, e só valorizando o lado externo, os problemas persistem: o foyer transparente, por exemplo, faz parte de dentro ou de fora? Um usuário do museu que visite o espaço durante o dia leva um choque ao avistar aqueles interiores, mesmo sem entrar no teatro. Fica a segunda pergunta no ar: por fazer parte do conjunto, o desenho de Rangel, com suas virtudes e defeitos, já nasceu tombado?
Continuando a comparação do passado com o presente, da utopia com a realidade, o terceiro erro se refere ao volume. Nesse caso, a questão é concreta: as alterações feitas feriram a lógica da diretriz do Iphan. “Externamente, o projeto de Reidy foi seguido no milímetro”, afirma João Maurício. Não é bem assim. Era impossível atender às inúmeras solicitações novas do interior do prédio num volume predefinido. A saída que Rangel encontrou foi simples e radical: se não dá para mudar para cima, vamos para baixo da terra. Mesmo com a dificuldade do lençol freático alto, o arquiteto usou profundamente o subsolo, botando nele a cozinha industrial e todos os demais serviços. Nesse caso, foi fundamental sua experiência em hotelaria, pois ele aprimorou a lógica utilizada pelo Tom Brasil em São Paulo. “É na verdade um programa de convenções”, ele diz.
Mesmo assim, só a área do público e do palco não caberiam no volume de Reidy. Por isso, Rangel propôs ao Iphan que o caixilho do foyer avançasse 10 metros sob o espaço da marquise, que estava vazia no projeto de Reidy. Das três linhas de pilares da marquise, duas ficavam para fora do teatro e uma para dentro. A proposta, infelizmente, foi aceita pelo Instituto, e o desejo de liberdade de Reidy desapareceu nos 500 metros quadrados que o novo foyer invadiu. Massudo e fechado, como é todo teatro, certamente essa era a peça mais difícil de lapidar. Reidy tratou de deixá-lo mais leve por meio de elementos secundários, dos quais a marquise era o principal. Quando o volume finalmente foi construído, admiradores de Reidy, acostumados com a leveza do pavilhão de exposições, ficaram chocados. “Não é nada daquilo!”, ouvi de um professor, especialista em arquitetura moderna.
A gravidade desse terceiro erro abriu a porteira para passar uma boiada de modificações no volume externo – algumas ilegais. Uma das mais graves se refere à rampa lateral. O terraço-jardim, sob a marquise de entrada do teatro, era conectado ao térreo através de uma rampa ao ar livre. Tanto a marquise como a rampa já estavam construídas, ou seja, eram tombadas. Vendo na rampa problemas de segurança, os empresários pediram sua demolição. A superintendente do Iphan, Thays Pessotto, atendeu ao pedido. (Ela é hoje assessora do presidente do Instituto e não quis falar sobre o assunto.) “O nível de violência hoje no Rio é muito diferente do que existia há 50 anos”, justifica Tedesco. “Não tínhamos como fechar aquela rampa, e tudo ficaria vulnerável.” Já João Maurício argumenta que a rampa atrapalharia a saída de emergência, cuja legislação ficou, de Reidy a Rangel, mais rigorosa. O presidente do museu acha que a o fim da rampa é uma mudança “insignificante”. E o arquiteto diz que desenhou uma escada “ao sabor de Reidy” para substituir a rampa. O desenho do ex-pupilo, de fato, lembra a que o mestre utilizou em sua casa, em Itaipava.
Só que uma escada, mesmo de Reidy, é muito diferente de uma rampa. Quando subimos um plano inclinado, como era o caso da rampa destruída, ao lado de um jardim de Burle Marx, podemos apreciar a paisagem com calma e segurança. Já o ritmo duro dos degraus de uma escada torna essa contemplação mais difícil. A rampa torna maior a percepção de continuidade entre o térreo e o terraço-jardim. É o que Le Corbusier chamava de “passeio arquitetônico”: um percurso que dá visões diferenciadas.
Para piorar, a escada que vingou não é a que foi aprovada. O arquiteto se defende: “Não digo que minha proposta seria igual ou melhor do que a solução em rampa. Era apenas uma solução factível. Mas aquela coisa que está lá não é o meu desenho!” Trata-se de uma escada desengonçada, cercada de grades, cujo desenho envergonharia um aluno do primeiro ano de arquitetura. Junto à escada, foi feito ainda um “puxadinho” no caixilho.
Existem outros elementos do volume que não correspondem ao projeto original, entre eles a falta da abertura superior da fachada principal (que também ajudaria a deixar mais leve a massa construída), a estação de energia (que poderia ser subterrânea, atrapalhando a visão do volume) e a bilheteria. Para vender ingressos, Reidy tinha pensado em um volume circular externo, pequenino, embaixo da marquise. Como a área externa foi ocupada pelo foyer, Rangel criou na lateral alguns volumes circulares semelhantes, de concreto e tijolos.
Os tijolos utilizados, assim como os outros que Reidy havia previsto para a parte posterior do palco, são diferentes dos escolhidos na década de 50. Não é um crime trocar um material, desde que exista argumento pertinente. Ele pode não mais existir (como alguns tipos de pedras), não ser mais fabricado ou ser proibido (como o amianto ou o jacarandá). Mas a troca de tijolos maciços refratários para tijolos de revestimento comum por causa de rapidez e falta de rigor na execução – tudo o que Carmen e Reidy não aprovariam – parece muito esquisita. O MAM, seguindo o viés brutalista, foi construído com poucos tipos de materiais, todos deixados à vista. A lógica desse raciocínio é transmitir a idéia da “verdade construtiva”: quando vemos um painel de tijolo, ele é realmente construído com tijolos, e não com um material falso, de revestimento, que o imita.
A troca de materiais externos por “genéricos” é o quarto erro na comparação entre o desenho cinqüentenário e a obra executada. Além dos tijolos, há diferença no tipo de vidro do foyer e no concreto. E aí se chega à técnica construtiva, ao quinto erro. A cobertura, no desenho dos anos 50, tinha estrutura de concreto armado. Ela tem hoje treliças metálicas, escolhidas por serem mais baratas e de execução mais rápida. Nos anos 80, Carmen reagiu com irritação, na imprensa, quando colocaram telhas metálicas na cobertura do MAM, sabendo que elas só poderiam ser vistas do alto de prédios, ou de aviões e helicópteros. Imaginem o que ela diria a respeito dessas novas trocas?
Outro ponto, este mais grosseiro, diz respeito ao concreto aparente. Reidy fazia questão de marcar o concreto com texturas. Nas colunas e nas empenas do pavilhão de exposições há uma caligrafia própria, que procura desvendar o processo construtivo. Na casa de espetáculos, a construtora sugeriu ao arquiteto uma técnica mais moderna e rápida de concretagem, a de formas deslizantes, que dá origem a uma configuração totalmente diversa do concreto. Enquanto o concreto aparente de Reidy convida o olhar, o das formas aparentes dá vontade de sair correndo. Algo semelhante ocorreu com o volume ovalado da caixa de palco, que foi estruturado em metal e fechado com chapas cimentícias. O resultado? Em vez de uma linha contínua, ficou evidente que o volume é formado por uma série de trechos de retas. Que comentário faria Le Corbusier?
A falta de dinheiro, somada à pressa de inaugurar, aumentou todos os problemas. “Exigi que a construção só fosse iniciada quando estivesse disponível todo recurso necessário”, diz João Maurício, que temia ganhar um esqueleto como vizinho. Para fazer a obra, que custou 25 milhões de reais, os empresários paulistas pediram empréstimo no BNDES, que não o concedeu. Eles tentaram obter uma linha de crédito no Banco do Brasil. O acordo foi feito, verbalmente, mas o escândalo do mensalão fez com que o banco, fugindo dos holofotes, desistisse do empréstimo. Sem dinheiro, eles recorreram à Vivo, que paga para ter seu nome vinculado à casa de shows. Quem financiou a obra foi a própria construtora, a Company, de São Paulo. O dinheiro entrou apenas oito meses antes da inauguração. “É muito difícil fazer uma obra com data marcada para abrir”, informa Tedesco.
Mas e o sétimo e último erro? É a ocupação. Não, não vou reclamar das baias que servem aos serviços de manobristas. Mas como aceitar as grades que fecham a área de carga e descarga do teatro? Além das cercas, há por cima um arame farpado que, em vez de espaço cultural, mais faz lembrar Guantánamo. E o gesto de liberdade de Reidy? Não dá para imaginar que, dentro dos 40 mil metros quadrados do terreno do MAM exista um quintalzinho, ainda mais se tratando de uma área nobre, o eixo de circulação de acesso ao museu e a casa de shows.
“Eu tinha a obrigação moral de fazer o projeto do Reidy e pensei que o Iphan e o museu fossem segurar a barra”, diz, cabisbaixo, Rangel. Algumas modificações não constam do projeto aprovado pelo Iphan – como a escada desengonçada e o puxadinho do vidro lateral – apesar de o órgão ter acompanhado a execução. “Duas arquitetas do Iphan visitavam a obra toda semana”, relata Tedesco. “Toda semana é exagero”, diz o atual superintendente, Carlos Fernando. “Acho a obra muito mal acabada, mas que eu saiba não há pendência alguma de aprovação. Se houvesse, a obra estaria embargada.” João Maurício é pragmático: “Foi o melhor que conseguimos fazer. Não está bom?” Dá para imaginar a resposta de Reidy e Carmen…
A programação de shows da casa de espetáculos é intensa e variada. Talvez seja um caso de justiça poética, mas João Gilberto não a inaugurou. Quem fez o show de abertura, em 10 de novembro passado, foi outro Gilberto, o ministro da Cultura, a quem o Iphan está subordinado.