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Côncavo e convexo
Um problema lendário da matemática e a batalha sobre quem o solucionou
Sylvia Nasar e David Gruber | Edição 12, Setembro 2007
O auditório do Hotel da Amizade, em Pequim, recebia naquela tarde centenas de físicos, inclusive um vencedor do prêmio Nobel. Eles estavam ali para uma palestra do matemático chinês Shing-Tung Yau. No final da década de 70, quando ainda nem chegara aos 30 anos, Yau fizera uma série de descobertas incríveis, que ajudaram a lançar a revolução da teoria das cordas em física e lhe valeram, além da medalha Fields – o prêmio mais cobiçado da matemática -, a reputação, nas duas disciplinas, de um pensador com poder técnico inigualável.
Desde então, Yau dividia seu tempo entre os Estados Unidos e a China: havia se tornado professor de matemática em Harvard e diretor dos institutos de matemática de Pequim e Hong Kong. Sua palestra no Hotel da Amizade fez parte de uma conferência internacional sobre a teoria das cordas, que ele organizara com o apoio do governo chinês, em parte para promover os avanços recentes do país em física teórica. (Mais de 6 000 estudantes compareceram à palestra do amigo próximo de Yau, Stephen Hawking, no Grande Salão do Povo.) O tema da palestra de Yau era um ponto pouco conhecido pelo público: a conjectura de Poincaré, um enigma com um século de duração sobre as características de esferas tridimensionais. Devido às suas importantes implicações para a matemática e a cosmologia, e por ter se esquivado a todas as tentativas de solução, a conjectura é considerada pelos matemáticos um Santo Gral.
Yau, um homem atarracado de 57 anos que usa óculos de aro preto, subiu à tribuna em mangas de camisa. Com as mãos nos bolsos, descreveu como, semanas antes, dois de seus alunos, Xi-Ping Zhu and Huai-Dong Cao, haviam obtido a prova da conjectura de Poincaré. “Estou muito otimista com o trabalho de Zhu e Cao”, Yau disse. “Os matemáticos chineses têm motivos de sobra para se orgulhar de tamanho sucesso na solução completa do enigma.” Ele disse que Zhu e Cao deviam muito a um colaborador americano de longa data, Richard Hamilton, a quem cabia grande parte do mérito da solução da conjectura. Ele também mencionou Grigory Perelman, um matemático russo que, reconheceu, dera uma contribuição importante. Mesmo assim, Yau disse: “No trabalho de Perelman, por mais espetacular que seja, muitas idéias-chave das provas estão esboçadas ou delineadas, e os detalhes completos muitas vezes estão faltando”. E acrescentou: “Gostaríamos de receber Perelman para ouvir seus comentários. Mas Perelman mora em São Petersburgo e não quer se comunicar com outras pessoas”.
Durante noventa minutos, Yau discutiu alguns dos detalhes técnicos da prova de seus alunos. Quando enfim terminou, ninguém fez qualquer pergunta. Naquela noite, porém, um físico brasileiro postou uma notícia sobre a palestra no seu blog. “Parece que a China logo tomará a dianteira também em matemática”, ele escreveu.
Grigory Perelman é realmente solitário. Deixou o emprego de pesquisador do Instituto de Matemática Steklov, em São Petersburgo, tem poucos amigos e mora com a mãe num apartamento na periferia da cidade. Embora jamais tivesse concedido uma entrevista antes, mostrou-se cordial e franco quando o visitamos, pouco após a conferência de Yau em Pequim, conduzindo-nos por uma longa caminhada pela cidade. “Estou em busca de amigos, e não precisam ser matemáticos”, ele contou. Na semana antes da conferência, Perelman passara horas discutindo a conjectura de Poincaré com sir John M. Ball, o então presidente de 58 anos da International Mathematical Union (IMU), a influente associação profissional da disciplina. O encontro, realizado num centro de conferências de uma mansão com vista para o rio Neva, foi bastante incomum. Semanas antes, um comitê de nove matemáticos proeminentes votara pela concessão da medalha Fields a Perelman, pelo trabalho sobre a conjectura de Poincaré, e Ball viajara a São Petersburgo para tentar persuadi-lo a receber o prêmio, numa cerimônia pública no congresso quadrienal da IMU, que seria realizado em Madrid.
A criação da medalha Fields, como o prêmio Nobel, resultou, em parte, da vontade de elevar a ciência acima das animosidades nacionais. Os matemáticos de países que perderam a I Guerra Mundial – Alemanha, Áustria, Hungria e Bulgária – foram excluídos do primeiro congresso da IMU, em 1924, e embora a exclusão fosse revogada antes do congresso seguinte, o trauma causado levou, em 1936, à criação da medalha Fields, prêmio que pretendia ser “o mais puramente internacional e impessoal possível”.
A medalha Fields, concedida a cada quatro anos para dois a quatro matemáticos, pretende não apenas premiar realizações passadas, mas também estimular pesquisas futuras. Por esse motivo, é concedida apenas a matemáticos de até 40 anos. Nas últimas décadas, com o crescimento do número de matemáticos profissionais, aumentou o prestígio da medalha. Até 2002, somente 44 medalhas foram concedidas – inclusive três por trabalhos intimamente ligados à conjectura de Poincaré – e nenhum matemático jamais recusou o prêmio. Não obstante, um dos escolhidos de 2006, Perelman informou a Ball que não tinha a menor intenção de aceitá-lo. “Eu me recuso”, disse ele simplesmente.
Durante um período de oito meses, começando em novembro de 2002, Perelman postou uma prova da conjectura de Poincaré na internet, em três partes. À semelhança de um soneto ou uma ária, uma prova matemática possui uma forma característica e respeita um conjunto de convenções. Começa por axiomas, ou verdades aceitas, e emprega uma série de enunciados lógicos para chegar a uma conclusão. Se a lógica é considerada irrefutável, o resultado constitui um teorema. Ao contrário de uma prova em Direito, ou nas ciências empíricas, baseados em dados e, portanto, sujeitos a ressalvas e revisões, a prova de um teorema é definitiva. Os julgamentos da precisão de uma prova são mediados por revistas especializadas. Para assegurar a justeza, os examinadores devem ser cuidadosamente escolhidos pelos editores da revista e a identidade do acadêmico cujo artigo está sob exame é mantida em segredo. A publicação implica que uma prova é completa, correta e original.
Por esses padrões, a prova de Perelman era pouco ortodoxa. Espantosamente breve para um trabalho tão ambicioso, seqüências lógicas que poderiam ter-se estendido por várias páginas estavam muitas vezes fortemente comprimidas. Além disso, a prova não fazia menção direta alguma a Poincaré e incluía muitos resultados elegantes, mas irrelevantes ao argumento central. Antes, contudo, ao menos duas equipes de especialistas haviam checado a prova sem encontrar inconsistências ou erros. Um consenso vinha emergindo na comunidade da matemática: Perelman solucionara a conjectura de Poincaré. Mesmo assim, a complexidade da prova – e os atalhos de Perelman em algumas das afirmações mais importantes – tornaram-na vulnerável à contestação. Poucos matemáticos dispunham dos conhecimentos necessários para avaliá-la e defendê-la.
Depois de uma série de palestras sobre a prova, nos Estados Unidos, em 2003, Perelman retornou a São Petersburgo. Desde então, embora continuasse respondendo às consultas por e-mail, mantinha com os colegas o mínimo de contato possível e, por motivos que ninguém entendeu, não tentou publicá-la. Mesmo assim, havia pouca dúvida de que Perelman, então com 40 anos, merecia a medalha Fields. Ao planejar o congresso da IMU de 2006, Ball começou a concebê-lo como um evento histórico. Mais de 3 000 matemáticos compareceriam, e o rei Juan Carlos, da Espanha, concordara em presidir a cerimônia de premiação. O boletim informativo da IMU previu que o congresso seria lembrado como “a ocasião em que a conjectura se tornou um teorema”. Determinado a assegurar o comparecimento de Perelman, Ball decidiu ir a São Petersburgo.
Ball procurou manter sua visita em segredo – os nomes dos ganhadores da medalha Fields são anunciados oficialmente na cerimônia de premiação – e o centro de conferências onde se encontrou com Perelman estava deserto. Por dez horas, durante dois dias, ele tentou persuadi-lo a aceitar o prêmio. Perelman, um homem esguio, cuja calva vem avançando, barba crespa, sobrancelhas espessas e olhos azul-esverdeados, escutou com polidez. Ele não falava inglês havia três anos, mas recusou o pedido fluentemente. Perelman sintetizou assim a conversa: “Ele me propôs três alternativas: aceitar e vir; aceitar e não vir, e mandamos a medalha mais tarde; e a terceira, eu não aceitar o prêmio. Desde o início, deixei claro que optei pela alternativa três”. Perelman explicou que não tinha o menor interesse pela medalha Fields. “Ela era totalmente irrelevante para mim”, ele frisou. “Se a prova está correta, nenhum outro reconhecimento é necessário.”
Provas da conjectura têm sido anunciadas quase todos os anos, desde a sua formulação por Henri Poincaré, há mais de cem anos. Poincaré, primo de Raymond Poincaré, o presidente da França durante a I Guerra Mundial, foi um dos matemáticos mais criativos da virada do século XX. Delicado, míope e famoso pela distração, concebeu o problema em 1904, oito anos antes de morrer, incluindo-o discretamente como uma pergunta improvisada no final de um artigo de 65 páginas.
Poincaré não avançou muito na prova da conjectura. “Cette question nous entraînerait trop loin” (esta questão nos levaria longe demais), escreveu. Ele foi um dos fundadores da topologia, também conhecida como “geometria da folha de borracha”, por seu foco nas propriedades intrínsecas dos espaços. Da perspectiva de um topologista, não há diferença entre uma rosca e uma xícara de café. Ambas possuem um só orifício e podem ser manipuladas para ficar semelhantes, sem se rasgar ou cortar. Poincaré empregou o termo “variedade” para descrever tal espaço topográfico abstrato. A variedade bidimensional mais simples possível é a superfície de uma bola de futebol, que, para um topologista, é uma esfera. A prova de que um objeto é uma biesfera, já que pode assumir um número indefinido de formas, é o fato de estar “ligado de forma simples” – ou seja, não ter furo algum. Ao contrário de uma bola de futebol, uma rosca não é uma esfera verdadeira. Se você amarra um nó corrediço em torno de uma bola de futebol, pode facilmente apertar o nó ao longo da superfície da bola. Mas se você amarra um nó corrediço em torno de uma rosca, envolvendo o furo do meio, não consegue apertar o nó sem destruir a rosca.
As variedades bidimensionais eram bem compreendidas em meados do século XIX. Mas, se o que era verdade para duas dimensões também seria para três, continuou duvidoso. Poincaré propôs que todas as variedades tridimensionais fechadas e ligadas de forma simples – aquelas sem furos e de extensão finita – eram esferas. A conjectura era potencialmente importante para cientistas que estudavam a maior variedade tridimensional que se conhece: o universo. Prová-la matematicamente, porém, não era nada fácil. A maioria das tentativas foi constrangedora. Mas algumas levaram a descobertas matemáticas importantes, como as provas do Lema de Dehn, o Teorema da Esfera e o Teorema do Circuito, que são hoje conceitos fundamentais em topologia.
Na década de 60, a topologia se tornara uma das áreas mais produtivas da matemática, e topologistas jovens enfrentavam regularmente a conjectura de Poincaré. Para espanto da maioria dos matemáticos, as variedades de quarta e quinta dimensões, e mesmo de dimensões mais altas, se mostraram mais manejáveis que as de terceira dimensão. Em 1982, a conjectura de Poincaré havia sido provada em todas as dimensões, exceto a terceira. Em 2000, o Instituto de Matemática Clay, uma fundação privada de pesquisa, considerou a conjectura de Poincaré um dos sete problemas em aberto mais importantes da matemática, e ofereceu 1 milhão de dólares a quem conseguisse prová-la.
“Minha vida inteira como matemático tem sido dominada pela conjectura de Poincaré”, disse John Morgan, o chefe do Departamento de Matemática da Universidade de Columbia. “Nunca achei que veria uma solução.”
Grigory Perelman não planejava tornar-se matemático. Estávamos diante do prédio de apartamentos onde ele mora, em Kupchino, um bairro de edifícios altos e insípidos. O pai de Perelman, um engenheiro elétrico, estimulou seu interesse por matemática. “Ele me passou uma porção de problemas lógicos e matemáticos”, Perelman contou. “Deu-me um monte de livros para ler. Ensinou-me a jogar xadrez. Ele se orgulhava de mim.”
Foi uma surpresa para Perelman a descoberta de que a sociedade russa considerava útil o que ele fazia por prazer. Aos 14 anos, ele era o astro de um clube de matemática local. Em 1982, o ano em que Shing-Tung Yau ganhou uma medalha Fields, Perelman conseguiu a pontuação máxima e a medalha de ouro da Olimpíada Internacional de Matemática, em Budapeste. Ele era gentil com os colegas de equipe, mas não tinha intimidade com eles. Era um dos dois ou três judeus de sua turma e cultivava uma paixão por ópera, o que também o distinguia dos colegas. Sua mãe, professora de matemática numa escola técnica, tocava violino e começou a levá-lo à ópera quando ele tinha 6 anos. Aos 15 anos, Perelman gastava sua mesada em discos. Orgulhava-se de possuir uma gravação da famosa interpretação da Traviata de 1946, com Licia Albanese no papel de Violeta.
Na Universidade de Leningrado, onde ingressou em 1982, aos 16 anos, Perelman cursou cadeiras avançadas de geometria. Lá, resolveu um problema formulado por Yuri Burago, um matemático do Instituto Steklov, mais tarde orientador do seu doutorado. “Existe uma série de estudantes altamente capazes, que falam antes de pensar”, Burago disse. “Grisha era diferente. Ele pensava profundamente. Suas respostas estavam sempre certas. Ele as verificava com muito cuidado.” Burago acrescentou: “Ele não era rápido. Velocidade não quer dizer nada. A matemática não depende de velocidade. O que vale é a profundidade“.
No Instituto Steklov, no início dos anos 90, Perelman se especializou na geometria dos espaços riemanniano e de Alexandrov – extensões da geometria euclidiana tradicional – e passou a publicar artigos nas principais revistas de matemática russas e americanas. Em 1992, foi convidado a passar um semestre na Universidade de Nova York e outro na Stony Brook University. Quando partiu para os Estados Unidos, naquele outono, a economia russa havia entrado em colapso. Dan Stroock, um matemático do MIT (Massachusetts Institute of Technology), lembra que contrabandeou maços de dólares para a então URSS, a fim de entregar a um matemático aposentado do Instituto Steklov que, como muitos colegas, passava necessidades.
Perelman estava contente por morar nos Estados Unidos, a capital da comunidade matemática internacional. Vestia todos os dias a mesma jaqueta de cotelê marrom e contou aos amigos da Universidade de Nova York que vivia à base de uma dieta de pão, queijo e leite. Gostava de caminhar até o Brooklyn, onde tinha parentes e podia comprar o pão preto russo tradicional. Alguns de seus colegas ficaram surpresos com suas unhas, de vários centímetros de comprimento. “Se elas crescem, por que impedi-las?”, costumava dizer, quando alguém perguntava por que não as cortava. Uma vez por semana, ele e um jovem matemático chinês, chamado Gang Tian, iam de carro até Princeton, para assistir a um seminário no Instituto de Estudos Avançados.
Durante décadas, o Instituto e a vizinha Universidade de Princeton foram centros de pesquisa topológica. No final da década de 70, William Thurston, um matemático de Princeton que gostava de testar suas idéias usando tesoura e cartolina, propôs uma taxonomia para classificar variedades de três dimensões. Ele argumentou que, embora as variedades pudessem assumir várias formas diferentes, possuíam uma geometria “preferida” – assim como um tecido de seda que, ao ser jogado sobre um manequim, assume a forma do manequim.
Thurston propôs que toda variedade tridimensional podia ser decomposta em até oito tipos de componentes, incluindo um tipo esférico. A teoria de Thurston – que se tornou conhecida como a conjectura da geometrização – descreve todas as variedades tridimensionais possíveis, sendo, portanto, uma generalização poderosa da conjectura de Poincaré. Caso fosse confirmada a teoria de Thurston, a conjectura de Poincaré também o seria. Provar as conjecturas de Thurston e Poincaré “definitivamente abre portas”, observou Barry Mazur, um matemático de Harvard. As implicações das conjecturas para outras disciplinas poderão não transparecer durante anos, mas, para os matemáticos, os problemas são fundamentais. “Esse é um tipo de teorema de Pitágoras do século XX”, Mazur acrescentou. “Ele muda a paisagem.”
Em 1982, Thurston ganhou uma medalha Fields pelas contribuições para a topologia. Naquele ano, Richard Hamilton, matemático de Cornell, publicou um artigo sobre uma equação chamada fluxo de Ricci, que ele suspeitava pudesse ajudar a resolver a conjectura de Thurston e, assim, a de Poincaré. À semelhança de uma equação do calor – que descreve como o calor se distribui uniformemente por uma substância, fluindo das partes mais quentes para as mais frias, por exemplo, de uma placa de metal para criar uma temperatura mais uniforme -, o fluxo de Ricci, ao aplainar as irregularidades, confere às variedades uma geometria mais uniforme.
Hamilton, filho de um médico de Cincinnati, desafiava o estereótipo de nerd dos matemáticos. Impetuoso e irreverente, ele cavalgava, praticava windsurf e teve uma sucessão de namoradas. Tratava a matemática como apenas mais um dos prazeres da vida. Aos 49 anos, embora considerado um professor brilhante, havia publicado relativamente pouco além de uma série de artigos seminais sobre o fluxo de Ricci, e tinha poucos alunos de pós-graduação. Perelman havia lido os artigos de Hamilton e foi ouvir uma palestra sua no Instituto de Estudos Avançados. No final, timidamente, Perelman foi falar com ele.
“Eu realmente queria perguntar algo a ele”, Perelman recordou. “Ele estava sorrindo e foi bem paciente. Na verdade, contou-me algumas coisas que veio a publicar alguns anos depois. Ele não hesitou em me contar. A franqueza e a generosidade de Hamilton… aquilo realmente me atraiu. Não posso dizer que a maioria dos matemáticos age assim.”
“Eu estava trabalhando em várias coisas diferentes, embora ocasionalmente pensasse sobre o fluxo de Ricci”, Perelman acrescentou. “Não é preciso ser um grande matemático para ver que ele seria útil para a geometrização. Eu sentia que não sabia muita coisa. Não parava de fazer perguntas.”
Shing-Tung Yau também vinha fazendo perguntas a Hamilton sobre o fluxo de Ricci. Yau e Hamilton haviam se conhecido nos anos 70, tendo se tornado íntimos, apesar das diferenças consideráveis de temperamento e formação.
A família de Yau mudou-se da China continental para Hong Kong em 1949, quando ele tinha 5 meses, junto com centenas de milhares de outros refugiados fugindo dos exércitos de Mao. No ano anterior, seu pai, que trabalhava em ajuda humanitária para as Nações Unidas, perdera grande parte da poupança da família numa série de empreendimentos fracassados. Em Hong Kong, para sustentar a esposa e oito filhos, dava aulas particulares de literatura e filosofia chinesas clássicas a estudantes de faculdade.
Quando Yau tinha 14 anos, o pai morreu de câncer no rim, deixando a mãe na dependência de donativos de missionários cristãos e do pouco dinheiro que arrecadava vendendo artesanato. Até então, Yau havia sido um estudante indiferente. Mas, para ganhar dinheiro, começou a dedicar-se aos trabalhos escolares e deu aulas particulares de matemática aos colegas. Yau estudou matemática na universidade chinesa de Hong Kong, onde atraiu a atenção de Shiing-Shen Chern, proeminente matemático chinês. Ele ajudou Yau a obter uma bolsa de estudos na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Chern foi o autor de um teorema famoso, combinando topologia com geometria. Passou grande parte da carreira nos Estados Unidos, em Berkeley. Fazia visitas freqüentes a Hong Kong, Taiwan e, mais tarde, à China, onde era venerado como símbolo da realização intelectual chinesa, a fim de promover o estudo de matemática e ciências.
Em 1969, Yau iniciou a escola de pós-graduação em Berkeley, matriculando-se em sete cursos por semestre e assistindo como ouvinte a vários outros. Ele enviava metade do dinheiro da bolsa à mãe, em Hong Kong, e impressionou os professores pela tenacidade. Em 1976, ele provou uma conjectura formulada vinte anos antes, referente a um tipo de variedade crucial para a teoria das cordas. Um matemático francês havia formulado uma prova do problema, conhecida como a conjectura de Calabi, mas a de Yau, por ser mais geral, foi mais poderosa. (Os físicos agora se referem às variedades de Calabi-Yau.) “Em vez de criar algum meio original de examinar um tema, ele vinha solucionando problemas técnicos dificílimos que, na época, somente ele poderia resolver, pelo puro intelecto e pela força de vontade”, observou Phillip Griffiths, ex-diretor do Instituto de Estudos Avançados.
Em 1979, aos 30 anos, Yau tornou-se um dos matemáticos mais jovens de todos os tempos a ser nomeado para o corpo docente do Instituto de Estudos Avançados e começou a atrair estudantes talentosos. Ele ganhou a medalha Fields pouco depois, sendo o primeiro chinês a conseguir a façanha. Àquela altura, Chern, aos 70 anos, estava prestes a se aposentar. Segundo um parente de Chern, “Yau resolveu que seria o próximo matemático chinês famoso e que estava na hora de Chern sair de cena”.
Harvard vinha tentando recrutar Yau e, quando ia fazer uma segunda oferta ao matemático em 1983, Phillip Griffiths contou ao reitor da faculdade um episódio de O Romance dos Três Reinos, um clássico chinês. No século III, um chefe guerreiro chinês sonhou em criar um império, mas o general mais brilhante da China estava trabalhando para um rival. Depois de duas tentativas mal-sucedidas, o chefe guerreiro foi ao reino do inimigo pela terceira vez em busca do general. Impressionado, o general concordou em unir-se a ele e juntos conseguiram fundar uma dinastia. Aceitando a dica, o reitor voou até Filadélfia, onde Yau morava na época, para lhe fazer uma oferta. Mesmo assim, Yau recusou o cargo. Finalmente, em 1987, concordou em ir para Harvard.
A garra empreendedora de Yau estendeu-se a colaborações com colegas e estudantes. Além de conduzir suas próprias pesquisas, começou a organizar seminários. Com freqüência, aliava-se a matemáticos brilhantes e inventivos, incluindo Richard Schoen e William Meeks. Mas Yau impressionou-se especialmente com Hamilton, tanto por sua ousadia como pela imaginação. “Consigo me divertir com Hamilton”, Yau nos contou, durante a conferência da teoria das cordas em Pequim. “Posso ir nadar com ele, saio com ele e suas namoradas.” Yau estava convencido de que Hamilton poderia usar a equação do fluxo de Ricci para solucionar as conjecturas de Poincaré e Thurston, e estimulou-o a se concentrar nesses problemas. “O encontro com Yau mudou sua vida matemática”, um amigo dos dois matemáticos disse sobre Hamilton. “Foi a primeira vez que ele viu a perspectiva de algo realmente grande. Conversar com Yau deu-lhe coragem e rumo.”
Yau acreditava que, se conseguisse ajudar a solucionar a conjectura de Poincaré, a vitória não seria só sua, mas também da China. Em meados da década de 90, Yau e vários outros cérebros chineses se reuniram com o presidente Jiang Zemin para discutir como reconstruir as instituições científicas do país, em grande parte destruídas durante a revolução cultural. As universidades chinesas estavam em péssimas condições. Segundo Steve Smale, professor em Hong Kong depois de se aposentar por Berkeley, a Universidade de Pequim tinha “salas que cheiravam a urina, só um salão comunitário e um único escritório para todos os professores auxiliares”, e pagava ao corpo docente salários de fome.
Yau persuadiu um magnata dos imóveis de Hong Kong a ajudar a financiar um instituto de matemática na Academia de Ciências Chinesa, em Pequim, e a conceder uma medalha tipo a Fields para matemáticos chineses com menos de 40 anos. Nas viagens à China, Yau elogiou Hamilton, falando que ele era um modelo para os jovens matemáticos chineses. Como ele disse em Pequim: “Como vivem dizendo que o país inteiro deveria aprender com Mao ou alguns grandes heróis, fiz uma brincadeira, mas em parte falava sério: disse que o país inteiro deveria aprender com Hamilton”.
Grigory Perelman já vinha aprendendo com Hamilton. Em 1993, iniciou uma bolsa de dois anos em Berkeley. Durante a permanência de Perelman, Hamilton deu várias palestras no campus e em uma delas mencionou que vinha trabalhando na conjectura de Poincaré. Sua estratégia do fluxo de Ricci era extremamente técnica e de difícil execução. Depois de uma de suas palestras em Berkeley, ele contou a Perelman sobre seu pior obstáculo. À medida que um espaço é aplainado sob o fluxo de Ricci, algumas regiões se distorcem, até formar o que os matemáticos denominam “singularidades”. Algumas regiões, denominadas “gargalos”, tornam-se áreas atenuadas, de densidade infinita. Mais preocupante para Hamilton era um tipo de singularidade que ele denominou “charuto”. A preocupação de Hamilton era que, se charutos se formassem, poderia ser impossível obter uma geometria uniforme. Perelman percebeu que um artigo que ele escrevera sobre os espaços de Alexandrov poderia ajudar Hamilton a provar a conjectura de Thurston – e a de Poincaré – desde que fosse resolvido o problema do charuto. “A certa altura, perguntei a Hamilton se ele conhecia um resultado sobre o colapso que eu havia provado, mas não publicado – que acabou se mostrando bastante útil”, Perelman contou. “Mais tarde, percebi que ele não entendeu do que eu estava falando.” Dan Stroock, do MIT, observou: “Perelman pode ter aprendido coisas com Yau e Hamilton, mas na época esses não estavam aprendendo com ele”.
No final de seu primeiro ano em Berkeley, Perelman escrevera diversos artigos, de uma originalidade impressionante. Foi convidado a dar uma palestra no congresso da IMU de 1994, em Zurique, e a se candidatar a cargos em Stanford, Princeton, no Instituto de Estudos Avançados e na Universidade de Tel Aviv. Assim como Yau, Perelman era um tremendo solucionador de problemas. Em vez de passar anos desenvolvendo uma estrutura teórica intricada, ou definindo novas áreas de pesquisa, concentrava-se na obtenção de resultados específicos. De acordo com Mikhail Gromov, um renomado geômetra russo que tem colaborado com Perelman, ele vinha tentando superar uma dificuldade técnica relacionada com os espaços de Alexandrov e, aparentemente, ficara aturdido.
Perelman contou-nos que gostava de atacar vários problemas ao mesmo tempo. Em Berkeley, porém, vivia retornando à equação do fluxo de Ricci e ao problema que Hamilton acreditava poder resolver com ela. Alguns amigos de Perelman notaram que ele vinha se tornando, cada vez mais, um asceta. Visitantes que iam ao seu apartamento em São Petersburgo se impressionavam com a falta de móveis. Para outros, ele parecia querer reduzir a vida a um conjunto de axiomas rígidos. Quando um membro de um comitê de contratação de Stanford pediu o seu currículo para incluir nos pedidos de cartas de recomendação, Perelman se recusou. “Se eles conhecem o meu trabalho, não precisam do currículo”, ele disse. “Se precisam do currículo, não conhecem o meu trabalho.”
Perelman acabou recebendo diversas ofertas de emprego. Mas recusou todas elas e, no verão de 1995, retornou ao antigo emprego no Instituto Steklov, em São Petersburgo, para ganhar menos de 100 dólares mensais. (Ele contou a um amigo que poupara dinheiro suficiente nos Estados Unidos para o resto da vida.) Seu pai se mudara para Israel dois anos antes e a irmã mais nova planejava juntar-se a ele depois de terminar a faculdade. Sua mãe, porém, decidira permanecer em São Petersburgo, e Perelman foi morar com ela. “Sinto que na Rússia produzo melhor”, ele contou aos colegas do instituto.
Aos 29 anos, Perelman desfrutava de uma reputação sólida como matemático, embora não tivesse grandes responsabilidades profissionais. Estava livre para estudar os problemas que desejasse e sabia que teria a atenção de toda a comunidade matemática por qualquer trabalho que publicasse. Yakov Eliashberg, um matemático de Stanford que conheceu Perelman em Berkeley, acha que ele retornou à Rússia para se dedicar à conjectura de Poincaré. “Por que não?”, Perelman respondeu, quando indagamos se o palpite de Eliashberg estava certo.
A internet permitiu a Perelman trabalhar sozinho, enquanto continuava consultando um acervo comum de conhecimentos. Ele pesquisou os artigos de Hamilton, em busca de pistas sobre seu pensamento, e deu vários seminários sobre seu trabalho. “Ele não precisava de ajuda alguma”, Gromov comentou. “Ele gosta de ficar sozinho. Faz-me lembrar Newton – essa obsessão com uma idéia, o trabalho solitário, o desprezo pela opinião das outras pessoas. Newton era mais antipático. Perelman é mais gentil, mas muito obcecado.”
Em 1995, Hamilton publicou um artigo em que discutiu algumas de suas idéias para obter uma prova da conjectura de Poincaré. Ao ler o artigo, Perelman percebeu que Hamilton não fizera qualquer progresso para superar seus obstáculos – os gargalos e charutos. “Não vi o menor sinal de progresso após o início de 1992”, Perelman nos contou. “Talvez ele tenha empacado até antes.” Perelman achou, porém, que tivesse encontrado uma forma de contornar o impasse. Em 1996, escreveu uma longa carta a Hamilton esboçando sua idéia, na esperança de colaborar. “Ele não respondeu”, Perelman disse, “e decidi trabalhar sozinho.”
Yau não tinha a menor idéia de que o trabalho de Hamilton sobre a conjectura de Poincaré chegara a um impasse. Ele estava cada vez mais ansioso com sua própria posição no mundo da matemática, particularmente na China, onde temia que algum acadêmico mais jovem pudesse suplantá-lo como o herdeiro de Chern. Mais de uma década decorrera desde que Yau provara seu último grande resultado, embora continuasse publicando prolificamente. “Yau quer ser o rei da geometria”, observou Michael Anderson, geômetra da Universidade de Stony Brook. “Ele acredita que tudo deve emanar dele, que ele deve estar na supervisão. Ele não gosta que as pessoas invadam seu território.” Determinado a conservar o controle sobre seu campo, Yau estimulou seus alunos a atacarem grandes problemas. Em Harvard, conduziu um seminário notoriamente difícil sobre geometria diferencial, que se reunia durante três horas seguidas, três vezes por semana. Cada aluno recebia uma prova recentemente publicada e a incumbência de reconstituí-la, corrigindo quaisquer erros e preenchendo as lacunas. Yau acreditava que um matemático tinha a obrigação de ser explícito, e convenceu seus alunos da importância do rigor em cada etapa do trabalho.
Existem duas maneiras de obter o reconhecimento por uma contribuição original em matemática. A primeira é produzir uma prova original. A segunda é identificar uma lacuna importante na prova de outro matemático e fornecer o bloco faltante. Somente lacunas matemáticas reais – argumentos faltantes ou errados – podem servir de base para se reivindicar a originalidade. Preencher lacunas na exposição – atalhos e abreviações usados para dar mais eficiência a uma prova – não conta. Quando, em 1993, Andrew Wiles revelou que uma lacuna havia sido encontrada em sua prova do último teorema de Fermat, o problema ficou em aberto para qualquer um, até que, no ano seguinte, Wiles corrigiu o erro. Em contrapartida, a maioria dos matemáticos concordaria que, ainda que passos implícitos de uma prova possam ser explicitados por um especialista, nesse caso houve uma lacuna de exposição e a prova pode ser considerada originalmente completa e correta.
Às vezes, pode ser difícil discernir a diferença entre uma lacuna matemática e uma na exposição. Em pelo menos uma ocasião, Yau e seus alunos parecem ter confundido as duas, reivindicando uma originalidade que outros matemáticos consideram injustificável. Em 1996, um jovem geômetra de Berkeley chamado Alexander Givental provou uma conjectura matemática sobre a simetria do espelho, um conceito fundamental para a teoria das cordas. Embora outros matemáticos achassem a prova de Givental difícil de acompanhar, estavam otimistas no sentido de que ele havia solucionado o problema. Nas palavras de um geômetra: “Ninguém na época reclamou que era incompleta e incorreta”.
No outono de 1997, Kefeng Liu, um ex-aluno de Yau que lecionava em Stanford, deu uma palestra em Harvard sobre a simetria do espelho. De acordo com dois geômetras na platéia, Liu passou a apresentar uma prova muito semelhante à de Givental, dizendo constar de um artigo que ele escrevera com Yau e outro aluno dele. “Liu mencionou Givental, mas ele era apenas um nome em uma longa lista de pessoas que haviam contribuído para o campo”, lembrou um dos geômetras. (Liu sustenta que sua prova foi bem diferente da de Givental.)
Mais ou menos na mesma época, Givental recebeu um e-mail assinado por Yau e seus colaboradores, explicando que haviam achado seus argumentos impossíveis de seguir e sua notação confusa, de modo que formularam uma prova nova. Elogiaram Givental por sua “idéia brilhante” e escreveram: “Na versão final de nosso artigo, sua importante contribuição será reconhecida”.
Algumas semanas depois, o artigo “Princípio do Espelho I” apareceu no Asian Journal of Mathematics, do qual Yau é co-editor. Nele, Yau e seus co-autores descrevem seu resultado como “a primeira prova completa” da conjectura do espelho. Eles mencionaram o trabalho de Givental apenas de passagem e alegaram que a prova dele estava incompleta, mas sem identificar uma lacuna matemática específica.
Givental ficou abismado. “Eu queria saber qual era a objeção deles”, disse. Em março de 1998, ele publicou um artigo que incluiu uma nota de rodapé de três páginas, na qual apontou uma série de semelhanças entre a prova de Yau e a sua. Vários meses depois, um jovem matemático da Universidade de Chicago, incumbido pelos colegas de investigar a controvérsia, concluiu que a prova de Givental era completa. Yau afirma que se dedicou à prova com seus alunos e obtiveram seu resultado independentemente de Givental. “Tivemos nossas próprias idéias e as redigimos”, ele afirma.
Nessa época, Yau teve seu primeiro conflito sério com Chern e a comunidade matemática chinesa. Durante anos, Chern tentara atrair o congresso da IMU para Pequim. De acordo com vários matemáticos, Yau fez um esforço de última hora para que o congresso ocorresse em Hong Kong. Mas não conseguiu persuadir um número suficiente de colegas a aderir à proposta. A IMU acabou decidindo realizar o congresso de 2002 em Pequim. (Yau nega que tenha tentado atrair o congresso para Hong Kong.) Entre os delegados designados pela IMU para selecionar oradores para o congresso, estava o aluno mais bem-sucedido de Yau, Gang Tian, que estivera na Universidade de Nova York com Perelman e então lecionava no MIT. O comitê anfitrião em Pequim também pediu a Tian um discurso na sessão plenária. Yau foi pego de surpresa. Em março de 2000, ele publicara um levantamento de pesquisas recentes em seu campo, repleto de referências entusiásticas a Tian e aos seus projetos conjuntos. Ele retaliou organizando sua primeira conferência sobre a teoria das cordas, aberta em Pequim alguns dias antes do início do congresso de matemática, no final de agosto de 2002. Ele persuadiu Stephen Hawking e vários premiados com o Nobel a comparecerem. Durante dias, os jornais chineses estiveram repletos de fotos de cientistas famosos. Yau conseguiu até uma audiência de seu grupo com o presidente Jiang Zemin. Um matemático que ajudou a organizar o congresso de matemática lembra que, ao longo da estrada entre Pequim e o aeroporto, viu cartazes com fotos de Stephen Hawking colados por toda parte.
Naquele verão, Yau não estava pensando muito na conjectura de Poincaré. Ele tinha confiança em Hamilton, apesar de seu ritmo lento. “Hamilton é um ótimo amigo”, Yau contou-nos em Pequim. “Ele é mais que um amigo. É um herói. Ele é tão original. Estávamos tentando terminar nossa prova. Hamilton dedicou-se a ela durante 25 anos. O trabalho deixa a pessoa cansada. Ele deve ter ficado um pouco cansado – com vontade de descansar.”
Até que, em 12 de novembro de 2002, Yau recebeu um e-mail de um matemático russo cujo nome lhe passou despercebido. “Gostaria de submeter à sua atenção meu artigo”, o e-mail dizia.
Em 11 de novembro, Perelman havia postado um artigo de 39 páginas, intitulado “A Fórmula de Entropia para o Fluxo de Ricci e suas Aplicações Geométricas” no arXiv.org, um site usado por matemáticos para divulgarem preprints – artigos aguardando publicação em revistas especializadas. Ele enviou então por e-mail uma síntese de seu artigo para uma dúzia de matemáticos dos Estados Unidos – inclusive Hamilton, Tian e Yau -, nenhum dos quais tinha notícias dele havia anos. Na síntese, explicou que escrevera “um esboço de uma prova eclética” da conjectura da geometrização.
Perelman não mencionara a prova nem a mostrara a ninguém. “Eu não tinha quaisquer amigos com quem discutir aquilo”, ele disse em São Petersburgo. “Não queria discutir meu trabalho com alguém em quem não confiasse.” Andrew Wiles também mantivera em segredo o fato de estar trabalhando no último teorema de Fermat, mas havia pedido que um colega examinasse a prova antes de divulgá-la. Perelman, ao postar despreocupadamente na internet uma prova de um dos problemas mais famosos da matemática, além de desprezar a convenção acadêmica, corria grande risco. Se a prova fosse falha, seria publicamente humilhado e não haveria como impedir que outro matemático corrigisse eventuais erros e reivindicasse a vitória. Mas Perelman explicou que não estava particularmente preocupado. “Meu raciocínio foi: se cometesse um erro e alguém usasse meu trabalho para construir uma prova correta, eu ficaria satisfeito”, ele disse. “Nunca pretendi ser o único solucionador da conjectura de Poincaré.”
Gang Tian estava no seu escritório no MIT quando recebeu o e-mail de Perelman. Eles haviam sido amigos em 1992, quando ambos estavam na Universidade de Nova York e haviam assistido ao mesmo seminário semanal de matemática em Princeton. “Imediatamente percebi sua importância”, disse Tian sobre o artigo de Perelman. Tian começou a ler o artigo e discuti-lo com os colegas, que se mostraram igualmente empolgados.
Em 19 de novembro, Vitali Kapovitch, um geômetra, enviou a Perelman um e-mail:
Oi Grisha, desculpe incomodá-lo, mas um monte de pessoas está me perguntando sobre seu preprint ‘A Fórmula de Entropia para o Fluxo’. Será que entendi certo que, embora você ainda não consiga realizar todos os passos do programa de Hamilton, consegue fazer o suficiente de modo que, usando alguns resultados sobre o colapso, consegue provar a geometrização? Vitali.
A resposta de Perelman, no dia seguinte, foi sucinta: “Está certo, Grisha”.
Na verdade, o que Perelman havia postado na internet foi apenas a primeira parte de sua prova. Mas foi suficiente para os matemáticos perceberem que ele havia descoberto como solucionar a conjectura de Poincaré. Barry Mazur, o matemático de Harvard, recorre à imagem de um pára-lama amassado para descrever a realização de Perelman: “Suponha que seu carro está com um pára-lama amassado e você liga para o mecânico para perguntar como desamassá-lo. O mecânico teria dificuldade em explicar pelo telefone. Você teria que levar o carro à oficina para ele examinar. Aí ele poderia dizer onde dar umas marteladas. O que Hamilton introduziu, e Perelman completou, é um procedimento independente das particularidades do amassado. Se você aplicar o fluxo de Ricci a um espaço tridimensional, começará a desamassá-lo e aplainá-lo. O mecânico sequer precisaria ver o carro – bastaria aplicar a equação”.
Perelman provou que os “charutos” que preocuparam Hamilton não poderiam realmente ocorrer e mostrou que o problema do “gargalo” poderia ser solucionado por uma seqüência intricada de cirurgias matemáticas: recortar as singularidades e remendar as margens brutas. “Agora temos um procedimento para aplainar as coisas e, em pontos cruciais, controlar as rupturas”, disse Mazur.
Tian escreveu a Perelman e pediu que desse uma palestra sobre seu artigo no MIT. Colegas de Princeton e Stony Brook enviaram convites semelhantes. Perelman aceitou todos eles e marcou um mês de palestras, em abril de 2003. “Por que não?”, ele nos disse, com indiferença. Referindo-se aos matemáticos em geral, Fedor Nazarov, um matemático da Michigan State University, disse: “Depois de resolver um problema, você sente uma forte ânsia em falar a respeito”.
Hamilton e Yau ficaram aturdidos com o anúncio de Perelman. “Achávamos que ninguém mais seria capaz de descobrir a solução”, Yau contou-nos em Pequim. “Mas aí, em 2002, Perelman disse que publicou algo. Basicamente, ele seguiu um atalho sem todas as estimativas detalhadas que realizamos.” Além disso, Yau reclamou, a prova de Perelman “foi escrita de forma tão confusa que não entendemos”.
A viagem de conferências de abril de Perelman foi tratada pelos matemáticos e pela imprensa como um grande evento. Entre o público de sua palestra em Princeton estavam John Ball, Andrew Wiles, John Forbes Nash, Jr., que havia provado o teorema do encaixe riemanniano. Para espanto de muitos na platéia, Perelman não mencionou Poincaré. “Eis um sujeito que provou um teorema mundialmente famoso e sequer o mencionou”, observou Frank Quinn, matemático da Virginia Tech. “Ele expôs alguns pontos-chave e propriedades especiais e, depois, respondeu às perguntas. Ele estava tentando ganhar credibilidade. Se tivesse batido no peito e declarado, ‘Eu solucionei’, teria gerado grande resistência.” Ele acrescentou: “As pessoas estavam esperando uma figura estranha. Perelman era bem mais normal que esperavam”.
Para o desapontamento de Perelman, Hamilton não compareceu à palestra nem às seguintes, em Stony Brook. “Sou um discípulo de Hamilton, embora não tenha recebido sua autorização”, Perelman contou-nos. Mas John Morgan, da Universidade de Columbia, onde Hamilton agora lecionava, estava em Stony Brook e convidou Perelman a falar em Columbia. Perelman, na esperança de ver Hamilton, concordou. A palestra teve lugar na manhã de sábado. Hamilton apareceu atrasado e não fez pergunta alguma durante a longa sessão de discussão depois da palestra, nem no almoço subseqüente. “Tive a impressão de que ele havia lido somente a primeira parte de meu artigo”, Perelman comentou.
Na edição da Science de 18 de abril de 2003, Yau publicou um artigo sobre a prova de Perelman: “Muitos especialistas, embora nem todos, parecem convencidos de que Perelman apagou os charutos e domou os gargalos estreitos. Mas estão menos confiantes de que ele consiga controlar o número de cirurgias. Isso poderia se mostrar uma falha fatal”, Yau advertiu, observando que muitas outras tentativas de provar a conjectura de Poincaré tropeçaram em passos faltantes similares. “As provas devem ser tratadas com ceticismo até que os matemáticos tenham tido a oportunidade de examiná-las minuciosamente”, Yau contou-nos. “Até então”, ele disse, “não se trata de matemática – trata-se de religião.”
Em meados de julho, Perelman havia postado as duas partes finais de sua prova na internet e matemáticos haviam começado o trabalho de explicação formal, reconstituindo minuciosamente seus passos. Nos Estados Unidos, pelo menos duas equipes de especialistas haviam se incumbido da tarefa: Gang Tian (rival de Yau) com John Morgan e um par de pesquisadores da Universidade de Michigan. Ambos os projetos foram patrocinados pelo Instituto Clay, que planejava publicar em livro o trabalho de Tian e Morgan. O livro, além de fornecer aos outros matemáticos um guia à lógica de Perelman, permitiria que este se candidatasse ao prêmio de 1 milhão de dólares do Instituto Clay pela solução da conjectura de Poincaré. (Para fazer jus, uma prova deve ser publicada em um veículo especializado e resistir a dois anos de escrutínio pela comunidade matemática.)
Em 10 de setembro de 2004, mais de um ano depois do retorno a São Petersburgo, Perelman recebeu um longo e-mail de Tian, que contou que acabara de participar de um seminário de duas semanas, em Princeton, dedicado à prova de Perelman. “Acho que entendemos o artigo todo”, Tian escreveu. “Está OK.”
Perelman não respondeu. Ele nos explicou: “Eu não estava muito preocupado. Esse era um problema famoso. Algumas pessoas precisavam de tempo para se acostumar ao fato de que ele não é mais uma conjectura. Decidi que o certo seria eu me afastar da verificação e não participar de todos aqueles encontros. É importante, para mim, não influenciar o processo”.
Em julho daquele ano, a National Science Foundation concedera quase 1 milhão de dólares em subvenções para Yau, Hamilton e vários alunos de Yau estudarem e aplicarem a “revolução” de Perelman. Todo um ramo da matemática decorrera dos esforços em resolver a conjectura de Poincaré, e agora aquele ramo parecia em risco de se tornar obsoleto. Michael Freedman, vencedor de uma medalha Fields por provar a conjectura de Poincaré para a quarta dimensão, contou ao New York Times que a prova de Perelman era “uma pequena desgraça para esse ramo particular da topologia”. Yuri Burago se queixou: “Ela mata o ramo. Depois de concluída, muitos matemáticos mudarão para outros ramos da matemática”.
Cinco meses depois, Chern faleceu e os esforços de Yau para assegurar o reconhecimento como seu sucessor – e não Tian – tornaram-se frenéticos. “O que está em jogo é seu predomínio na China e sua liderança entre os chineses expatriados”, esclareceu Joseph Kohn, um antigo chefe do departamento de matemática de Princeton. “Yau não sente ciúme da matemática de Tian, mas de seu poder lá na China.”
Embora Yau jamais passasse mais que alguns meses seguidos na China continental desde a infância, estava convencido de que sua posição de único ganhador chinês da medalha Fields o habilitava a ser o sucessor de Chern. Em um discurso na Universidade de Zhejiang, em Hangzhou, durante o verão de 2004, Yau lembrou seus ouvintes de suas raízes chinesas. “Quando saí do avião, toquei no solo de Pequim e senti grande alegria por estar na minha terra natal”, ele disse. “Orgulho-me de dizer que, ao receber a medalha Fields em matemática, não tinha passaporte de qualquer país, e deveria certamente ser considerado chinês.”
No verão seguinte, Yau retornou à China e, numa série de entrevistas a repórteres chineses, atacou Tian e os matemáticos da Universidade de Pequim. Num artigo publicado em um jornal científico de Pequim, intitulado “Shing-Tung está combatendo a corrupção acadêmica na China”, Yau acusou Tian de acumular várias cátedras ao mesmo tempo e de receber 125 mil dólares por alguns meses de trabalho numa universidade chinesa, enquanto os estudantes viviam com 100 dólares por mês. Ele também acusou Tian de ser um matemático fraco e um plagiador, e de coagir os alunos de pós-graduação a incluírem seu nome nos artigos deles. “Como eu promovi sua ascensão à fama acadêmica atual, também sou responsável por sua conduta imprópria”, Yau teria dito a um repórter, explicando por que se sentia obrigado a pôr a boca no trombone.
Em outra entrevista, Yau descreveu como o comitê da medalha Fields havia ignorado Tian em 1988 e como ele havia defendido Tian perante vários comitês de premiação, inclusive um da National Science Foundation, que concedeu a Tian 500 mil dólares em 1994.
Tian ficou abismado com os ataques de Yau, mas sentiu que, como seu ex-aluno, não podia fazer muita coisa. “Suas acusações eram infundadas”, Tian nos contou. Mas acrescentou: “Tenho raízes profundas na cultura chinesa. Um professor é um professor. Existe respeito. É muito difícil eu pensar numa reação”.
Na China, Yau visitou Xiping Zhu, um pupilo seu, agora chefe do departamento de matemática da Universidade Sun Yat-sen. Em 2003, depois que Perelman completou sua viagem de palestras pelos Estados Unidos, Yau havia recrutado Zhu e outro estudioso, Huaidong Cao, professor da Universidade de Lehigh, para realizarem um esclarecimento da prova de Perelman. Zhu e Cao haviam estudado o fluxo de Ricci com Yau, que considerava Zhu, em particular, um matemático excepcionalmente promissor. “Temos de descobrir se o artigo de Perelman se sustenta”, Yau lhes disse. Yau providenciou que Zhu passasse o ano acadêmico de 2005-06 em Harvard, onde este ministrou um seminário sobre a prova de Perelman e continuou trabalhando com Cao em seu artigo.
Em 13 de abril de 2006, os 33 matemáticos do conselho editorial do Asian Journal of Mathematics receberam um breve e-mail de Yau e do co-editor da revista, informando que teriam três dias para comentar um artigo de Xi-Ping Zhu e Huai-Dong intitulado “A Teoria de Hamilton-Perelman do Fluxo de Ricci: As Conjecturas de Poincaré e da Geometrização”, que Yau pretendia publicar na revista. O e-mail não incluiu uma cópia do artigo, pareceres de peritos ou um resumo. Ao menos um membro do conselho pediu para ver o artigo, mas foi informado de que não estava disponível. Em 16 de abril, Cao recebeu uma mensagem de Yau informando que o artigo havia sido aceito pelo AJM e que um resumo fora postado no site da revista.
Um mês depois, Yau almoçou em Cambridge com Jim Carlson, presidente do Instituto Clay. Yau disse a Carlson que gostaria de trocar uma cópia do artigo de Zhu e Cao por outra do manuscrito do livro de Tian e Morgan. Yau contou-nos que temia que Tian tentasse roubar o trabalho de Zhu e Cao, e queria dar a ambas as partes acesso simultâneo ao que a outra havia escrito. “Almocei com Carlson para pedir a troca dos manuscritos, a fim de assegurar que ninguém conseguisse copiar do outro”, Yau explicou. Carlson hesitou, explicando que o Instituto Clay ainda não recebera o manuscrito completo de Tian e Morgan.
No final da semana seguinte, o título do artigo de Zhu e Cao no site do AJM mudara para “Uma Prova Completa das Conjecturas de Poincaré e da Geometrização: Aplicação da Teoria de Hamilton-Perelman do Fluxo de Ricci”. O resumo também havia sido revisado. Uma frase nova explicava: “Esta prova deve ser considerada o coroamento da teoria de Hamilton-Perelman do fluxo de Ricci”.
O artigo de Zhu e Cao, de mais de 300 páginas, preencheu toda a edição de junho do AJM. A maior parte dele se dedica a reconstituir muitos dos resultados de Hamilton do fluxo de Ricci – incluindo aqueles de que Perelman lançara mão em sua prova – e grande parte da prova de Perelman da conjectura de Poincaré. Em sua introdução, Zhu e Cao creditam a Perelman ter “trazido idéias novas e estimulantes para se entenderem passos importantes na superação dos obstáculos principais remanescentes no programa de Hamilton”. Entretanto, eles escrevem que foram obrigados a “substituir vários argumentos-chave de Perelman por abordagens novas baseadas em nosso estudo, porque não conseguimos compreender esses argumentos originais de Perelman essenciais à conclusão do programa de geometrização”. Os matemáticos familiarizados com a prova de Perelman contestaram a idéia de que Zhu e Cao tivessem contribuído com abordagens novas significativas à conjectura de Poincaré. “Perelman já fez tudo, e o que fez estava completo e correto”, disse John Morgan. “Não me parece que Zhu e Cao tenham realizado algo diferente.”
Em 3 de junho, no seu instituto de matemática em Pequim, Yau concedeu uma entrevista coletiva à imprensa. O diretor em exercício do instituto, procurando elucidar as contribuições relativas dos diferentes matemáticos que haviam trabalhado na conjectura de Poincaré, afirmou: “Hamilton contribuiu com mais de 50%; o russo Perelman, com cerca de 25%; e os chineses Yau, Zhu e Cao etc., com cerca 30%” (Constate-se que uma simples soma às vezes consegue derrubar até um matemático.) Yau acrescentou: “Dada a importância da conjectura de Poincaré, o fato de matemáticos chineses terem desempenhado um papel de 30% não é trivial. É uma contribuição importantíssima”.
Em 12 de junho, na semana anterior ao início da conferência de Yau sobre a teoria das cordas em Pequim, o South China Morning Post informou: “Matemáticos da China continental que ajudaram a decifrar um ‘problema matemático do milênio’ apresentarão a metodologia e as descobertas ao físico Stephen Hawking. […] Shing-Tung Yau, que organizou a visita do professor Hawking e também é professor de Cao, declarou ontem que apresentaria as descobertas ao professor Hawking por acreditar que as informações ajudariam em sua pesquisa sobre a formação dos buracos negros”.
Na manhã de sua palestra em Pequim, Yau contou-nos: “Queremos que nossa contribuição seja entendida. E isso também é uma estratégia para encorajar Zhu, que está na China e realizou um trabalho realmente espetacular. Quer dizer, um trabalho importante sobre um problema centenário, que provavelmente terá mais alguns séculos de implicações. Se você pode associar seu próprio nome de alguma forma, é uma contribuição”.
E. T. Bell, autor de Men of Mathematics, uma história brilhante da disciplina, publicada em 1937, certa vez lamentou “as escaramuças em torno da prioridade que desfiguram a história científica”. No período anterior a e-mails, blogs e sites, certo decoro costumava prevalecer. Em 1881, Poincaré, então na Universidade de Caen, teve uma altercação com um matemático alemão de Leipzig, chamado Felix Klein. Poincaré havia publicado vários artigos em que rotulara certas funções de “fuchsianas”, em homenagem a outro matemático. Klein escreveu a Poincaré observando que ele e outros também tinham realizado trabalhos importantes naquelas funções. Uma troca de cartas polidas entre Leipzig e Caen veio em seguida. A última palavra de Poincaré sobre o assunto foi uma citação do Fausto, de Goethe: “Name ist Schall und Rauch” – que, numa tradução livre, corresponde à pergunta de Shakespeare: “O que há num nome?”
Isso, em essência, é o que os amigos de Yau estão indagando. “Estou ficando aborrecido com Yau porque parece que ele sente necessidade de mais glória”, confessou Dan Stroock, do MIT. “Ele é um sujeito que realizou coisas magníficas, pelas quais foi magnificamente recompensado. Ele ganhou todos os prêmios possíveis. Acho um pouco mesquinho de sua parte que pareça estar tentando conseguir uma participação nisso também.” Stroock observou que, 25 anos atrás, Yau esteve numa situação bem semelhante à de Perelman hoje. Seu resultado mais famoso, sobre as variedades de Calabi-Yau, foi importantíssimo para a física teórica. “Calabi delineou um programa”, disse Stroock. “Num sentido real, Yau foi o Perelman de Calabi. Agora, ele está do outro lado. Ele não teve o menor escrúpulo em ficar com a parte do crédito pelas variedades de Calabi-Yau. E agora parece ressentido com Perelman por ficar com o crédito pela conclusão do programa de Hamilton. Não sei se a analogia chegou a ocorrer a ele.”
A matemática, mais que muitos outros campos, depende de colaboração. A maioria dos problemas requer os insights de diversos matemáticos para ser resolvida, e a comunidade matemática desenvolveu um padrão de reconhecimento de contribuições individuais tão rigoroso quanto as regras que governam a própria matemática. Nas palavras de Perelman: “Se todos são honestos, é natural compartilhar idéias”. Muitos matemáticos vêem a conduta de Yau com relação à conjectura de Poincaré como uma violação dessa ética básica e se preocupam com o dano que ela causou ao grupo profissional. “Política, poder e controle não têm papel legítimo algum em nossa comunidade e ameaçam a integridade de nosso campo”, disse Phillip Griffiths.
Perelman gosta de assistir aos espetáculos de ópera do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo. Sentado no alto da galeria, não consegue discernir as expressões dos cantores ou ver os detalhes de seus figurinos. Para ele, importa apenas o som de suas vozes, e ele acha a acústica onde se senta melhor do que em qualquer outro lugar no teatro. Perelman vê a comunidade da matemática – e grande parte do mundo mais amplo – a uma distância semelhante.
Antes de chegarmos em São Petersburgo, havíamos enviado várias mensagens ao seu e-mail do Instituto Steklov, na esperança de marcar um encontro, mas ele não respondeu. Pegamos um táxi até seu prédio e, relutantes em invadir sua privacidade, deixamos um livro – uma coletânea de artigos de John Nash Jr. – em sua caixa do correio, junto com um cartão dizendo que estaríamos sentados num banco da pracinha ao lado, na tarde seguinte. No dia seguinte, depois que Perelman não apareceu, deixamos-lhe uma caixa de chá de Taiwan e um bilhete descrevendo algumas questões que gostaríamos de discutir com ele. Repetimos o ritual uma terceira vez. Finalmente, acreditando que Perelman estivesse ausente da cidade, apertamos a campainha de seu apartamento, esperando falar ao menos com sua mãe. Uma mulher atendeu e deixou-nos entrar. Perelman recebeu-nos no corredor mal iluminado do apartamento. Descobrimos que havia meses ele não acessava o e-mail do instituto e não olhara a caixa do correio naquela semana. Não tinha a menor idéia de quem éramos.
Marcamos um encontro às 10 horas da manhã seguinte na Perspectiva Nevski, a principal artéria da cidade. Dali, Perelman, que vestia uma jaqueta esporte e mocassim, levou-nos por uma caminhada de quatro horas pela cidade, comentando cada prédio e vista. Depois, fomos a uma competição vocal no Conservatório de São Petersburgo, que durou cinco horas. Perelman repetiu várias vezes que havia se afastado da comunidade matemática e não se considerava mais um matemático profissional. Ele mencionou uma discussão, que tivera anos antes com um colaborador, sobre como reconhecer o autor de uma prova específica, e confessou-se desanimado com a falta de ética da disciplina. “Não são as pessoas que rompem os padrões éticos as que são consideradas estranhas”, ele observou. “São as pessoas como eu que estão isoladas.” Perguntamos se ele havia lido o artigo de Zhu e Cao. “Não está claro para mim que contribuição nova eles deram”, ele respondeu. “Aparentemente, Zhu não entendeu totalmente o argumento e reformulou-o.” Quanto a Yau, Perelman disse: “Não posso dizer que esteja indignado. Outras pessoas fazem pior. Claro que existem muitos matemáticos mais ou menos honestos. Mas quase todos são conformistas. Eles são mais ou menos honestos, mas toleram aqueles que não são honestos”.
A perspectiva de receber a medalha Fields o forçara a romper totalmente com seu grupo profissional. “Enquanto eu não era visível, tinha uma escolha”, Perelman explicou. “Fazer alguma coisa bem desagradável” – um auê pela falta de integridade da comunidade matemática – “ou, se não fizesse esse tipo de coisa, ser tratado como uma pessoa boazinha. Ora, ao me tornar uma pessoa bem visível, não posso permanecer bonzinho e não dizer nada. Por isso tive de sair.” Perguntamos a Perelman se, ao recusar a medalha Fields e se afastar da profissão, estava eliminando qualquer possibilidade de influenciar a disciplina. “Não sou um político!”, ele respondeu, contrariado. Perelman confirmou o que disse ao não comparecer, em agosto do ano passado, à cerimônia de entrega do prêmio, em Madrid. Perelman não quis dizer se sua objeção às recompensas se estendia ao prêmio de 1 milhão de dólares do Instituto Clay. “Só vou decidir se aceitarei o prêmio depois que ele for oferecido”, respondeu.
Mikhail Gromov, o geômetra russo, declarou que entendia a lógica de Perelman. “Realizar um grande trabalho requer uma mente pura. Você só pode pensar em matemática. Todo o resto é fraqueza humana. Aceitar prêmios é mostrar fraqueza.” Segundo Gromov, outras pessoas poderiam achar arrogante a recusa de Perelman em aceitar a medalha Fields, mas seus princípios são admiráveis. “O cientista ideal faz ciência e nada mais importa para ele”, explicou Gromov. “Ele quer viver seu ideal. Ora, não acho que ele viva realmente nesse plano ideal. Mas gostaria.”
Sylvia Nasar é jornalista e americana.
David Gruber é jornalista e escritor americano.