ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
O sábado antes do domingo
E daí que o papa não gosta?
| Edição 14, Novembro 2007
William Santos tem 22 anos e está desempregado. Hoje, entretanto, está mais preocupado em subir no palco, sem remuneração, e fazer um bom show. No momento, William atende pelo nome de Duda Lacerda. Junto com outras nove drag queens, Duda concorre ao Troféu Chiquita do Ano. O páreo é duro. Ele terá de se haver com Evita Perón (seios fartos) e Shaula Vegas (juba de cabelos rubros, collant de cores radiativas e, como se não bastasse, exímia cuspidora de fogo). Duda não se intimida. O único problema é a hora. Já passa da uma da manhã e, daqui a pouco, ele sairá de cena para que William assuma seu lugar. William-Duda será mais um entre os 2 milhões de católicos que acompanham o Círio de Nazaré, procissão religiosa que há 214 anos percorre as ruas do centro da capital pa-raense no segundo domingo de outubro – Belém tem menos de 1,5 milhão de habitantes. Duda-William é uma das 40 mil pessoas presentes à festa das Filhas da Chiquita, evento gay criado em 1976 e realizado anualmente na véspera do Círio.
A Igreja Católica condena a festa e gostaria que ela fosse abolida. O encontro acontece na praça da República, entre o Theatro da Paz e o Bar do Parque, tradicional ponto de encontro da boemia belenense. É uma praça de guerra, literalmente. Existe ali um clima de conflito permanente. Se não físico, pelo menos ideológico e religioso. Durante o Círio, a praça é palco de diversas homenagens a Nossa Senhora de Nazaré. Um palanque é montado para abrigar um coral religioso. Adiante, turistas endinheirados e a alta sociedade local assistem à procissão de camarote, instalados num hotel cinco estrelas. É também por ali que, no sábado à noite, exatamente durante a Festa da Chiquita, passa a Trasladação, uma procissão menor, mas não menos disputada, na qual a imagem de Nossa Senhora deixa a igreja onde fica ao longo do ano e é levada para a Catedral da Sé, de onde sai o Círio de Nazaré.
Neste sábado, na praça, homens e mulheres andam de mãos dadas com parceiros do mesmo sexo sem serem incomodados. Aos poucos, o território vai sendo demarcado. As escadarias do teatro são reservadas a quem quer beber e conversar. A frente do palco é para namoros ou para os que gostam de dançar música eletrônica e carimbó. Espalhados, ambulantes empreendedores vendem de tudo: comida, bebidas alcoólicas, imagens e camisetas de Nossa Senhora. Os católicos tradicionais que, aos poucos, voltam a pé da Trasladação evitam o tumulto. De esguelha, lançam olhares um tanto escandalizados aos travestis, gays e às lésbicas que passeiam pelo calçadão da praça. Elói Iglesias, um dos criadores da Chiquita e mestre-de-cerimônias da festa, sugere no microfone que todos sigam os mandamentos da ministra Marta Suplicy. Espaventados, beatos ouvem o grito de guerra: “Relaxa e goza!” Vários fazem o sinal-da-cruz.
Os que têm mais sorte são poupados de cruzar a praça na hora em que se entrega o Troféu Veado de Ouro, outorgado segundo critérios que nunca ficaram muito claros. Este ano, o prêmio vai para o estudante de história Adelson Oliveira, autor de uma monografia sobre a homossexualidade na Universidade Federal do Pará. A solenidade é interrompida pela chegada da governadora Ana Júlia Carepa, do PT. A recepção é meio fria. Carepa tenta seduzir a platéia com uma peroração sobre o amor livre e os direitos dos homossexuais. Nada. Iglesias toma a frente e lembra a platéia de que a festa é financiada com dinheiro público. Também não empolga. Animação mesmo, só com a volta dos go-go boys ao palco.
A Chiquita é essencialmente contraditória. Boa parte dos freqüentadores são católicos observantes. Saem direto da festa para a Sé. É o caso de Mel Quiboa, drag queen que abocanhou a Chiquita de 2004, no concurso que elege quem faz o melhor show da festa. Todo ano, Mel organiza uma novena para Nossa Senhora na sexta-feira, vai para a Festa da Chiquita no sábado e acompanha o Círio de Nazaré no domingo. É também o caso de William Santos, o esforçado candidato à Chiquita 2007 (não ganhou). De família católica, jamais deixou de ser um homem de fé. “Todo mundo tem direito ao Círio, até os gays. Nós também temos religião e acreditamos em Deus. Sei que algumas coisas que eu faço são contra a Igreja, mas mesmo assim quero participar da procissão. Acho que Ele vai acabar me perdoando”, diz com paixão.