ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Doce milagre
Padre oferece 10 mil dólares a larápio
| Edição 14, Novembro 2007
José Rezek, 68 anos, e Sônia Dinis, 48, são um simples casal de católicos do bairro Vilas Boas, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Ou eram. Moram numa casa modesta, apenas três cômodos e uma grande varanda. A cozinha fica do lado de fora. O quintal servia de oficina mecânica para Rezek. Já não serve mais. Há cinco meses, o anonimato deles se esvaiu em mel. A casa da rua Domingos Marques se tornou ponto de encontro de uma multidão que se reúne ali todas as tardes.
No dia 16 de maio, depois de rezar o terço com o marido diante de Nossa Senhora de Fátima – costume do casal –, Sônia Dinis percebeu que havia algo estranho na imagem da santa. Um líquido espesso, dizem, escorria pelo rosto da Virgem. José Rezek encostou o dedo e o levou à língua. Parecia mel. Repararam que havia uma pequena poça aos pés da estátua. Mel também. Pelo volume, deduziram que o fenômeno começara uns três dias antes, justamente no dia de Nossa Senhora de Fátima. Limparam com cuidado. No dia seguinte, o líquido doce e transparente continuava a brotar da imagem.
A notícia se espalhou quando uma jornalista soube da história. O povo começou a chegar. Em 7 de julho, as portas da casa foram abertas à visitação. Tinha gente que lambia a santa. Sônia lavava com água e sabão. O mel continuava a escorrer. Segundo o casal, a própria Virgem teria dado o roteiro para os passos seguintes. Em sonho, chamou Sônia pelo nome. Mandou que rezassem o terço às três da tarde e que em seguida se misturasse o mel da imagem ao mel comum. Assim, o mel daria para todos. Foi adiante nas instruções: pediu que Sônia gravasse na memória uma receita de sopa a ser oferecida a quem viesse visitá-la (visitar a santa, não Sônia). A sopa é de abóbora. Segundo a Virgem, o povo come pouca abóbora, alimento sagrado – de resto, informação absolutamente nova na iconologia cristã. Finalizou seu rol de tarefas sugerindo que as pessoas pedissem mais pelos outros e menos para si mesmas. A Nossa Senhora do Mel, como passou a ser conhecida, referia-se especialmente aos lugares onde há guerra.
São três da tarde do dia 3 de outubro. Do lado de fora da casa, estão estacionados nove carros, alguns de luxo. No portão de entrada há um casal que vende mel comum, não abençoado, para quem quiser, mais tarde, multiplicar o mel sagrado que, lá dentro, será oferecido no fundo de um copinho de café. O pote grande de mel secular custa 6 reais; o pequeno, 3. Outro camelô vende CDs de cânticos religiosos. Sônia Dinis se aborrece com os ambulantes, que atrapalham o seu comércio de camisetas e fotos, a 20 e 10 reais, respectivamente. Segundo ela, as vendas são para custear o movimento.
De microfone em punho, um jovem puxa a primeira oração. Cerca de oitenta pessoas estão diante da gruta de concreto que foi doada à família e que agora ocupa a varanda. Na gruta repousa a santa, dentro de uma redoma de vidro (à noite, ela é recolhida ao interior da casa). A imagem segue vertendo mel diante dos fiéis admirados. O líquido brota, por assim dizer, de todos os poros da imagem – pinga pelo queixo e escorre pela cruz que a santa segura na mão direita. Uma trave de madeira separa a imagem dos fiéis. Do lado direito da imagem, há uma urna para as doações em dinheiro. Quem quiser registrar as graças alcançadas pode dar seu testemunho num caderno vermelho. São mais de sessenta histórias, com nome, endereço e CPF. A maioria dos relatos fala de cura de depressão, dores e câncer. Muita gente diz ter experimentado grande “paz interior”.
Ao lado da casa, pedreiros constroem um puxadinho de alvenaria. Será um quarto de hóspedes para um visitante ilustre cuja identidade o casal guarda a sete chaves. Na cozinha, um caldeirão de sopa de abóbora, legumes e um pingo de mel sagrado (para abençoar) crepita sobre o fogo. Com exceção do fluido divino, todos os ingredientes são doados. Maria de Lourdes Albuquerque Batista, de 44 anos, trabalha como voluntária ajudando os fiéis; é técnica em enfermagem e está desempregada. Há dez voluntários fixos que se revezam durante a semana. Eles ajudam na limpeza da casa, distribuem o mel metafísico, rezam o terço e preparam a sopa.
Albuquerque Batista conta ter recebido uma graça que ficou conhecida como “a graça das 24 horas”. Seu filho Marcos, que trabalha no interior de São Paulo, ficou sem lugar para morar. Dormia dentro do carro. Desesperada, a mãe se ajoelhou às oito da manhã de um dia de agosto e implorou que a Virgem conseguisse um pouso para o filho. No dia seguinte, às oito em ponto, ela ajoelhada diante da santa, seu celular tocou. Era o filho, com a notícia de que havia esbarrado num conhecido que procurava alguém para dividir o apartamento.
O padre Oscar Quevedo – aquele mesmo que costumava desmascarar fenômenos paranormais no Fantástico – ofereceu, pela imprensa local, 10 mil dólares a quem surrupiasse a imagem. Para ele, a ocorrência não passaria daquilo que a parapsicologia chama de “aporte”, fenômeno pelo qual “a matéria é projetada para dentro da matéria”. No caso, o mel teria sido introduzido “mentalmente” dentro da imagem da santa, ou, em termos mais técnicos, “um objeto material teria atravessado a barreira física de outro objeto material”. O fenômeno soa a coisa sobrenatural, mas milagre não é. Pelo menos, não na conta do padre Quevedo. Quando lançou a oferta de dólares, sua intenção foi justamente afastar da santa a pessoa que deve estar fazendo o aporte, pois, segundo a teoria, se essa pessoa se distanciar mais de 50 metros do objeto, ele pára de verter mel. Os manuais de parapsicologia garantem.
A espinhosa questão teológica pode não ter nenhuma relevância e o dinheiro é bom, mas o fato é que, até agora, ninguém se interessou em levar adiante o furto. De todo modo, a família Rezek entrou em contrato com o juiz Odilon de Oliveira, sendo informada de que, se houvesse ameaça ao “sentimento religioso”, protegido pela Constituição Federal, eles poderiam pedir a intervenção do Estado. De fato, no dia 24 de agosto Sônia Dinis anunciou ter recebido um telefonema anônimo: ordenavam-lhe que entregasse a imagem à arquidiocese. Afirmou também que haviam até ameaçado sua filha Chaieni. O casal requisitou, e conseguiu, policiamento ostensivo da Polícia Militar – ainda que de um solitário policial, que por alguns dias se postou vigilante ao lado da imagem. José Rezek pendurou uma faixa no portão de casa: “Fica expressamente proibida a entrada de bispos e padres de qualquer ordem no recinto”.
De sua parte, o arcebispo de Campo Grande, dom Vitório Pavanello, pediu que quebrassem a imagem. Houve consternação e mágoa. O incidente foi superado com a retratação de Sua Eminência nos jornais. Segundo ele, houve um mal-entendido: “quebrar” era mais no sentido de “investigar” mesmo.