ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Triste cachorrada
Homenagem póstuma a Rex, Totó e Negrinha
| Edição 14, Novembro 2007
Diante de um calendário de mesa, o dedo do paulista Assis José Aparecido Tasca, de 42 anos, gira, gira, gira e pára sobre 11 de setembro. A data é significativa. Sentado na ponta de uma cadeira de couro sintético, ele inspira, expira e, cravando um peteleco no meio da página, proclama: “Foi nessa noite que o inferno começou”.
Tasca, um homem de óculos de armação fina e revólver ao alcance da mão, trabalha como investigador da Polícia Civil há vinte anos. Há dezoito, bate ponto na fastidiosa delegacia de Sales Oliveira, no interior de São Paulo. Em sua sala, um recinto de 15 metros quadrados cercado por paredes que jogam com o azul-claro e o rosa-bebê, ele afirma que jamais precisou quebrar a cabeça para solucionar casos. Um furto aqui, uma briga ali, nada demais. Até a noite de 11 de setembro. Com pouco mais de 10 mil habitantes, o máximo que acontece em Sales Oliveira é sua produção de palha para cigarro. Dali, por ano, sai matéria-prima para confeccionar 150 milhões de unidades.
O sol ainda não havia enxugado o orvalho da madrugada quando a bióloga Fátima Fabrini entrou na sala de jantar da casa, atrás do bom-dia dos seus cachorros. (Desde os 4 anos, ao aceitar a proposta do pai de trocar vinte preás por uma única cadela, ela gosta de amanhecer na companhia de cães.) Às 6 horas do dia 12, seguiu o costume. De pijama, agarrou uma xícara de café quente e fechou os olhos para receber as primeiras lambidas de Negrinha, Pretinho, Peludo, Bocão, Sharope (com sh por ser irmão de Sheriff), Marrom, Pelado, Pipoca e Grafite. Notando a demora dos chamegos, abriu os olhos de novo e sentiu um calafrio. Pretinho, um vira-lata de 11 anos, manco e quase cego, gemia. Uma espuma branca saía de sua boca. Peludo, outro vira-lata de quase 6 anos, também cuspia um líquido viscoso e estrebuchava no chão. Negrinha não estava na sua caixa de madeira. Os outros seis cachorros se espremiam num canto, assustados com o sofrimento dos colegas.
Fátima ouviu que, da rua, vinham os gritos de socorro dos vizinhos. Todos os cães da região se torciam de dor e babavam compulsivamente. Com os olhos marejados, a bióloga fez imediatamente um diagnóstico: “Envenenaram os nossos bichinhos”. Era o início do canicídio que tiraria dos eixos a rotina de Sales Oliveira e, conseqüentemente, a vida pacata do investigador Assis Tasca.
Apavorada, Fátima pegou as seringas que guardava em cima da geladeira e dois frascos de sulfato de atropina, antídoto usado em casos de intoxicação. Estava certa de que poderia reverter a tragédia se injetasse 1 mililitro do líquido em cada cachorro. Pretinho recebeu a primeira dose. De tão mole, nem tentou fugir da injeção. Peludo tomou a segunda dose e, no mesmo instante, se arrastou na direção do pote de água. Fátima, então, pegou o carro e saiu à procura de Negrinha. Antes de encontrá-la morta no meio-fio, parou na praça da cidade. “Os lixeiros me cercaram para pedir que eu acudisse os cachorros dali. Eram muitos, todos agonizando”, ela conta. Única pessoa que, num raio de 150 quilômetros, possuía um antídoto para o sofrimento dos animais, Fátima aplicou, em questão de minutos, mais de quarenta injeções. Seu esforço não pôde evitar que mais de cinqüenta cachorros acabassem sob sete palmos de terra. No bolo, seriam enterrados dezenas de Totós e incontáveis cachorros sem dono.
Revoltados, os salenses cobram da polícia a solução do caso. Querem o culpado, e Tasca está no olho do furacão. “O problema é que não temos nenhuma prova consistente e, portanto, nenhum suspeito”, diz aborrecido. “Ninguém viu nada. Não sabemos a que horas exatamente os fatos se deram. Não sabemos se o ataque foi consumado por uma pessoa que estava a pé, de carro, de moto ou de bicicleta. Não sabemos nem se estamos falando de uma pessoa só.”
Enquanto isso, a mortandade prosseguiu. No dia 8 de outubro, inconsolável, o salense Antonio Carlos Aleixo assinou o boletim de ocorrência de número 308/2007. Registrava o assassinato cruel dos seus dois poodles e do seu bassê, dias antes. Os três haviam morrido se contorcendo em dor.
Na delegacia, a única pista deixada pelo serial dog killer é um potinho de papa de fubá com uns pedaços de lingüiça, salpicada de pontos pretos que, à primeira vista, parecem o raticida conhecido como chumbinho. Graças ao irmão da bióloga Fátima Fabrini – que recolheu um pouco da papa comida por seus cachorros antes de se sentirem mal –, o investigador acredita ter uma linha plausível de investigação. “Mas a questão é que o laudo do Instituto Adolfo Lutz, que dirá qual foi o veneno usado, só sai em três meses, e eu não sei se a cidade vai suportar até lá…”, afirma o policial. Na sua frase, vem embutida uma vontade danada de substituir “não sei se a cidade vai” por “não sei se eu vou”.
Razão para a falta de paciência existe. Alguns dias depois do início da onda de crimes, o delegado responsável por Sales Oliveira, Vinícius Alexandre Marine, saiu de férias, a exemplo da escrivã que registrou a maior parte das queixas e do secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Social e Meio Ambiente, Dalcyr Borsato Filho. Só sobrou Tasca. É nele que deságuam todas as cobranças. Ele tenta passear no final da tarde e a população voa no seu pescoço. Tasca atende a todos que o param. Dono de um poodle de 7 anos chamado Flick, compreende bem a dor que aperta o coração de seus concidadãos e faz questão de dizer que não arquivará o caso na gaveta dos crimes sem solução.
Lamenta apenas que, nas únicas duas vezes que Sales Oliveira espetou o dedo para o alto e chamou a atenção do Brasil, o motivo foi cachorro. Há cinco anos, um caminhão que transportava cães de exposição rodopiou na Rodovia Anhangüera, na altura da cidade, e tombou num barranco. Tasca passou horas ajoelhado entre as ferragens, estalando os dedos e assobiando para resgatar cerca de vinte representantes da alta aristocracia canina. Daquela vez, pelo menos, houve sobreviventes.