FOTOGRAFIA DE INGE MORATH, 1962_THE INGE MORATH FOUNDATION / MAGNUN PHOTOS_MÁSCARAS DE SAUL STEINBERG_THE SAUL STEINBERG FOUNDATION/ARTISTS RIGHT SOCIETY (ARS), NY / LICENCIADO POR AUTVIS BRASIL
O artista mascarado
Saul trocava de máscara e casaco, e os diferentes detalhes da roupa, ou posições, ou gestos, modificavam o efeito da máscara
Inge Morath e Saul Steinberg | Edição 15, Dezembro 2007
Eis o que lembro: ainda morava em Viena, devia ser o fim dos anos 40. A guerra finalmente acabara e a agitação da abertura do mundo, que nos permitia ver e obter coisas inacessíveis por tanto tempo, era quase insuportável. Usávamos roupas distribuídas pela organização filantrópica CARE (tinha encontrado um vestidinho de seda vermelho e verde que raramente tirava), e eu devorava as revistas americanas que chegavam à seção onde trabalhava, na Agência de Informações dos Estados Unidos. Entre elas vinha a The New Yorker, em cujas páginas vi pela primeira vez os desenhos de Saul Steinberg. Na época, boa parte de sua produção mostrava as ruas, as mulheres e os homens de Manhattan, seus cães, gatos e carros, além dos seus costumes estranhos e idiossincráticos. Apaixonei-me por esse universo steinberguiano, e comecei a desejar um dia ir ao Novo Mundo para vê-lo em pessoa, e talvez conhecer o artista cuja visão singular acrescentara uma nova dimensão à minha maneira de ver o mundo.
Fiquei mais próxima disso ao mudar-me para Paris, entrar para a agência fotográfica Magnum e começar a trabalhar com Henri Cartier-Bresson, que conhecia Saul – e tirara um lindo retrato dele estendido num gramado, quase como uma odalisca, uma das pernas erguida para o céu num ângulo reto, exibindo a bota preta. Na foto, um gatinho curioso, em primeiro plano, o examina. Agora eu sabia como era a sua cara. Perguntei a Henri como era o jeito dele. Henri revirou os olhos para cima, seu sinal costumeiro de aprovação, e respondeu: “C’est un homme délicieux, d’une si grande intelligence. Você vai ver, você vai conhecê-lo”.
Em 1956, finalmente cheguei a Nova York. Um amigo meu, o violinista Alexander Schneider, que vivia em constantes turnês, emprestou-me por alguns dias o seu apartamento na rua 23. Ele me entregara as chaves em Paris. Cheguei tarde da noite, exausta, e caí na cama quase sem ver o quarto. Quando acordei, era dia claro e me esquecera de onde estava. Na parede em frente à cama, vi uma série de documentos emoldurados que me pareceram familiares. Na Áustria, a burocracia levava muito a sério tanto a si mesma quanto aos seus documentos. Quando a pessoa precisava de uma certidão, primeiro devia requisitar o papel no ministério em questão. Depois, precisava comprar selos, no valor especificado para aquele documento, numa das lojinhas autorizadas a vender tabaco, que era monopólio do Estado, assim como os selos. Depois de colar os selos no documento, a pessoa era obrigada a retornar ao ministério para recolher as assinaturas e os carimbos de um ou mais funcionários, para colocá-los no devido lugar. Aqueles documentos pendurados nas paredes me pareciam exemplos esplêndidos dessa insanidade burocrática, e me aproximei para lê-los e descobrir do que tratavam. Para meu horror, não consegui ler nada. A caligrafia elegante não formava palavras que eu conseguisse decifrar. Será que alguma coisa acontecera com os meus olhos? Fiquei assustada e liguei para Gjon Mili, meu amigo fotógrafo, para lhe explicar a situação. Ele riu. “Esses documentos”, disse, “são de Saul Steinberg. São importantes, mas ilegíveis.” Peguei um livro e, claro, consegui ler perfeitamente. Havia naqueles supostos documentos uma carga de verdade que os tornava mais memoráveis que os genuínos. O artista revelava o quanto eles eram vãos: carimbos e assinaturas que perseguiam uns aos outros, competindo em importância até, finalmente, perderem a corrida para os últimos, os maiores e mais barrocos de todos os autógrafos, acompanhados por uma fanfarra de clarins. Mili ligou para Saul Steinberg e lhe contou como tinha sido o meu encontro com os seus documentos. Saul concordou em me encontrar, e talvez posar para um retrato.
Marcamos um encontro. No Upper East Side, rua 70 e poucos. Toquei a campainha e Saul Steinberg apareceu com a cabeça coberta por um saco de papel, no qual havia desenhado um auto-retrato. Entramos numa sala grande, que dava para um jardim. Numa das paredes, Saul prendera uma série de auto-retratos em diferentes estados de espírito, desenhados em sacos de papel pardo de supermercado. Comecei a fotografar e iniciamos de imediato um jogo maravilhoso. Saul trocava de máscara e casaco, e ficava claro como diferentes detalhes da roupa, ou posições, ou gestos, modificavam o efeito da máscara. A mulher de Saul, a pintora Hedda Sterne, entrou na brincadeira. Ela ergueu uma das máscaras de gato, que também estavam presas na parede, e inclinou levemente a cabeça para um lado, como fazem os gatos quando prestam atenção. Hedda, que usava um laço de veludo preto atado à nuca, transformou-se num gato que parecia uma moça, ou numa moça que fazia o papel de um gato. O gato de verdade assistia a tudo em silêncio.
O ateliê de Saul ficava no 1º andar. Ele se sentou à mesa com uma máscara de expressão severa cobrindo a cabeça, e depois a trocou por uma outra, pequenina, que prendeu no nariz. Tinha passado o dia trabalhando em miniaturas para usar na maquete de um cenário de ópera. Pequenos cavaleiros de lança em riste, montados em cavalos encouraçados, estavam espalhados sobre pedaços de papel, decorados com quadrados pintados em perspectivas que davam vertigem. Saul divertiu-se deslocando os pequenos cavaleiros, mudando o resultado das suas batalhas. Finalmente, recebi a permissão para fazer um retrato de Saul Steinberg sem máscara. Hedda preparou o almoço. Sentamo-nos à grande mesa da cozinha e marcamos uma nova sessão para dali a alguns dias.
Eu sempre tivera paixão por fazer retratos, mas aqui ocorrera um encontro de outro tipo: a pessoa que posava para o retrato estava de máscara, personificando um arquétipo, da mesma forma que aqueles documentos ilegíveis eram os arquétipos de todos os documentos importantes.
No encontro seguinte, saímos para o jardim. Saul usava um dos seus auto-retratos feitos num saco de papel, e o homem mascarado num canto transformou todo o jardim. Era o jardim dele, com a sua mesa, o seu gato, as suas plantas. E ele era ele mesmo, mas ao mesmo tempo era muitos homens de óculos e bigodes que vivem na cidade e têm um jardim. Discutimos as técnicas de interpretação de outra pessoa, como acontece naqueles momentos deliciosos, durante as viagens, em que ninguém nos conhece e podemos representar por um tempo uma persona diferente.
Perguntei: “Além das máscaras de si mesmo e do gato, você faz máscaras de outras pessoas? Seria divertido pôr vários tipos de corpo debaixo delas”. Não lembro agora se Saul respondeu que já tinha feito a experiência, ou que tencionava fazê-la, mas combinamos que tornaríamos a trabalhar juntos. Voltei a Paris a trabalho. Quando regressei a Nova York, cerca de um ano mais tarde, embarcamos imediatamente numa prolongada exploração de fotografias de pessoas bem diversas, que adaptavam os seus corpos e os seus gestos à persona steinberguiana, que usavam à guisa de máscara.
Recrutei todo tipo de pessoas para posar. Saul era um imitador excelente, assim como uma jovem artista, Sigrid Spaeth, que àquela altura entrara na vida de Saul. Eu tinha conhecido Arthur Miller, e ele ficava ótimo com máscaras de homens altos. Algumas jovens mulheres do meu escritório e vários poe-tas de vanguarda também gostaram de se perder debaixo das máscaras. As locações eram os nossos quartos no Chelsea Hotel, o apartamento de Saul no Village e, numa ocasião, uma casa muito elegante no Gramercy Park, pertencente a um amigo de Saul. Finalmente, fomos até Springs, em Long Island, onde Saul tinha uma casa. Um antigo carro e uma bicicleta ajudaram muito a compor algumas cenas e, nas manhãs dos dias de semana, podíamos trabalhar nas praias pouco freqüentadas.
Um belo dia acabamos. Tínhamos ficado amigos, mas a brincadeira chegara ao fim e os nossos encontros deixaram de envolver o uso de máscaras. Algumas das fotos foram parar num livro chamado Le Masque, cheio de esplêndidos desenhos de Steinberg. Sempre planejamos fazer mais coisas a partir desse trabalho de investigar “Quem eu vou interpretar hoje?”, “Que cara prefiro mostrar ao mundo?”, “Debaixo de qual máscara quero me esconder?”. Uma escolha das possibilidades é apresentada aqui, numa homenagem a um grande artista e conhecedor dos recantos de nossas almas: Saul Steinberg.
Saul Steinberg (1914–99), artista gráfico e cartunista nascido na Romênia e radicado nos Estados Unidos. Trechos de Reflexos e Sombras, a ser lançado em maio pelo Instituto Moreira Salles.