ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Agora são poucos
Lembranças d'antanho entre um bacalhau e um cappelletti
Maria da Paz Trefaut | Edição 16, Janeiro 2008
Uma gigantesca tela de dom Afonso Henriques, de espada em punho em meio a índios, jesuítas e caravelas, decora o saguão da Casa de Portugal, na avenida da Liberdade, em São Paulo. Para os portugueses que passam por ali, a alegoria de um tempo de glórias e aventuras não é mais objeto de reflexão. Os freqüentadores do almoço das quintas, referência tradicional da comunidade, têm outros assuntos a discutir. O principal deles é o fechamento de vários consulados no Brasil e o fato de São Paulo ter ficado sem cônsul por mais de nove meses: temas deixados de lado pela retórica oficial dos políticos de cá e de lá.
Enquanto os dois países se preparam para comemorar o bicentenário da vinda da família real, os números revelam que a cada ano a população lusitana no Brasil se torna menor. Pelos dados do IBGE, em 2000 havia pouco mais de 200 mil patrícios em terras brasílicas. Mas, atualmente, no Departamento de Imigração da Polícia Federal constam 277 mil com registro ativo. O que não indica aumento, apenas confirma a dificuldade em obter números precisos. Seja como for, “há mais portugueses na vizinha Venezuela [400 mil] e na África do Sul [370 mil] do que por aqui”, diz o embaixador Francisco Seixas da Costa.
Uma pequena parcela de portugueses ainda freqüenta associações luso-brasileiras. Eles estão entre os convivas do almoço das quintas na Casa de Portugal. O encontro se repete há mais de sessenta anos, sempre ao meio-dia, e reúne por volta de cinqüenta pessoas. No início, era um almoço apenas entre comendadores – mulheres não eram admitidas nem na condição de copeiras. Ao longo dos anos, o próprio cardápio foi se aculturando. Hoje, o bacalhau figura ao lado do cappelletti e a musse de maracujá compartilha o balcão de sobremesas com o pastel de nata.
O cozinheiro Mauro Fernandes é o dono do restaurante Marquês, onde acontece o almoço. Ele escolhe os vinhos e monta o menu, num sistema de bufê a 70 reais por pessoa. O preço não preocupa os freqüentadores, quase todos executivos. Durante algumas horas, eles se dedicam a renovar os vínculos da dispersa comunidade (todos odeiam a palavra “colônia”). Do século XIX a meados do século XX, mais de 1 milhão de portugueses veio para o Brasil. Na década de 60, compunham o maior contingente de estrangeiros do país, mas nos últimos quarenta anos o declínio foi vertiginoso. A economia brasileira deixou de ser atraente (não só para eles).
Entre 1950 e 1975, o Brasil também acolheu exilados políticos lusos. Muito diferentes do imigrante econômico, nunca foram expressivos numericamente. A primeira leva foi de antifascistas; a segunda, de burgueses e gente de classe média identificada ao regime deposto que fugiam da Revolução dos Cravos.
Embora no anedotário nacional tenha ficado a caricatura do português dono de padaria, de camiseta regata e lápis na orelha, faz tempo que esse tipo deixou de cruzar o Atlântico. Na maioria dos casos atuais, em princípio nem se trata propriamente de um imigrante. Ele vem para trabalhar por um período determinado – com contrato em euro – e volta para a Europa; tem situação financeira estável e uma carreira em multinacionais conhecidas, como a Portugal Telecom ou a Energias do Brasil. Quando resolve ficar, conta com a moeda forte para garantir uma boa aposentadoria.
É o caso de Roy Silva, de 48 anos, “conservado”, nas suas próprias palavras, “em álcool, drogas e rock’n’ roll”. Silva fez um detalhado estudo do litoral baiano antes de se instalar em Imbassaí, ao norte de Salvador. Ao identificar que era ali o epicentro dos investimentos turísticos estrangeiros no país, abriu um “pabe” tropical, o Café Balalaika. Depois, virá a discoteca. A época “do português ignorante, que tinha vergonha da sua origem, acabou”, afirma ele, que não dá a mínima para os compatriotas (não freqüenta almoços de confraternização) e se considera um cidadão do mundo.
Ao contrário de Silva, Antonio Joaquim Freixo, do Banif, o Banco Internacional do Funchal, é dos mais assíduos no almoço das quintas, conhece quase todo mundo e se preocupa com o destino dos conterrâneos. E também com o próprio. Enquanto degusta um arroz de tomate e um tinto alentejano, aproveita para capturar novos clientes. Portugueses e filhos de portugueses têm direito a abrir uma conta bancária em qualquer cidade de Portugal, na qual poderão receber heranças e outros dividendos familiares, mantendo seus vínculos com a economia de além-mar. Freixo é um grande incentivador dessa prática. O Banif está aí para isso mesmo.
Antes de servirem o café, o radialista Martins Araújo, que comanda um domingão luso-brasileiro na rádio 9 de Julho AM, se aproxima do microfone e, como nas festas de interior, encerra o almoço citando o nome de alguns presentes. Nem o sotaque é mais o de piada. Araújo fala português daqui mesmo. Todos aplaudem. De volta à mesa, queixa-se da comunidade desunida, que não quer saber de política e não dá as caras nem para prestigiar o presidente da República ou o primeiro-ministro português em visita oficial ao Brasil. O jeito é falar de futebol, “o único tema que, entra ano, sai ano, ainda dá ressonância entre portugueses e brasileiros”. Ainda mais depois que Felipão (ou Scolari, como preferem os gajos) foi para lá e eles passaram a ter seu próprio Ronaldo. Entre Ronaldinho e Cristiano Ronaldo, balança o coração do que resta da colônia lusa no Brasil.