Neschling à frente da Osesp: "Espero continuar regendo a orquestra pelos próximos dez anos, mas sei que as coisas não são estáticas. Tudo tem começo, meio e fim. Caso eu saia, meu estilo ainda vai ficar entranhado. Há uma relação especial entre mim e a orquestra. FOTO: ELLA DÜRST_2007
Criador e criatura
O talento administrativo, o pulso firme e os atritos do maestro John Neschling com o governo e os instrumentistas da Sinfônica de São Paulo
Roberto Kaz | Edição 16, Janeiro 2008
O inspetor da orquestra acompanhava das coxias, em um monitor, a movimentação do maestro John Neschling, que, coberto de suor, regia os últimos instantes do Poema Sinfônico nº 3, de Franz Liszt. “Ele está vindo, ele está vindo”, avisou, apressado. Um assistente se postou rente à porta, com a mão na maçaneta. Outro empunhou uma bandeja com dois copos d’água e uma toalha de rosto. Quando o maestro estava a 1 metro da saída, o inspetor Xisto Alves Pinto deu a ordem: “Pode abrir”.
Neschling tirou os óculos, esfregou a toalha no rosto e perguntou:
– Começamos bem, não?
– O público gosta do senhor aqui no Rio – respondeu o inspetor da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp.
– É, somos muito amados no Rio.
– Muito bem, maestro – disse um músico. – E o senhor ainda diz que não gosta de Liszt.
– Não gosto mesmo – respondeu Neschling. – Acho ele superficial, mas esse prelúdio é lindíssimo.
Enquanto o palco era reorganiza-do para a próxima peça, o Concerto nº 5 para piano e orquestra, de Beethoven, o maestro ficou lado a lado com o solista, o holandês Ronald Brautigam, que, naquela apresentação no Municipal carioca, ocorrida em outubro, tocava pela primeira vez com a sinfônica paulista. Os dois entraram, Neschling apertou a mão do primeiro violinista, o spalla Claudio Cruz, e cochichou: “E aí, doutor? Vamos mandar ver”.
Dois dias depois, o crítico Luiz Paulo Horta escreveu no jornal O Globo: “Com a Osesp, passamos a dispor de uma orquestra de primeira linha à distância de uma ponte aérea. Ela dá a impressão de que sempre vai tocar bem, e de que isso não é fruto do acaso. Não é mesmo: são dez anos de trabalho contínuo. A isso deve somar-se o talento específico do maestro”.
John Luciano Neschling tem 60 anos e medidas superlativas para cima e para os lados. Em dias de ensaio, veste sapato marrom, calça jeans azul, camisa pólo e, pendurado no pescoço, o crachá de identificação. “Quando o esqueço, faço questão de mostrar a carteira de identidade na entrada”, explicou. Ele chega à sede da orquestra, a Sala São Paulo, por volta de nove e meia da manhã. Seu escritório, no 2º andar, é antecedido por um enorme retrato em preto-e-branco, no qual posa de fraque num palco, sentado sozinho em meio a várias cadeiras vazias, com as pernas cruzadas e a batuta na mão direita.
O gabinete tem cerca de 40 metros quadrados, com 6 metros de pé direito. Numa salinha anexa, um divã preto é usado para eventuais cochilos diurnos. As cadeiras são do designer húngaro naturalizado americano Marcel Breuer, formado pela Bauhaus. As paredes abrigam quadros de Nuno Ramos e de outros artistas brasileiros contemporâneos: “São todos meus, fazem parte de uma pequena coleção que tenho em casa”, ele se apressou em esclarecer. O único quadro que destoa é uma reprodução da Pomba da Paz, de Pablo Picasso, que os músicos lhe deram de presente quando completou dez anos à frente da orquestra. Ao lado da pomba estão diversas assinaturas e algumas mensagens fraternais: “Estamos com você”; “Valeu, chefe, manda ver”, “Ten more years and ten more years and ten more years“.
Na mesa, repousa sempre um jarro de suco Clight e dois copos. Enquanto bebe, Neschling pergunta à secretária se há recados, assina documentos e passa os olhos numa partitura que pretende reger: “Quando a peça é difícil, começo a lê-la com um mês de antecedência”, disse. Findo o ritual, desce à sala de concerto para o ensaio matutino, que começa pontualmente às dez da manhã e vai até o meio-dia.
Chegando ao palco, ele apresentou aos músicos o pianista britânico Peter Donohoe, a quem caberia solar com a orquestra durante os setenta minutos do Concerto para piano, opus 39, do italiano Ferruccio Busoni. Neschling sentou-se em um banco giratório, ajustado à altura da cintura para que a orquestra pudesse vê-lo, e falou da peça: “Esse concerto carrega a fascinação que os fascistas tinham pelo neoclássico, mas vocês precisam separar a estética da política. O Estádio do Pacaembu, por exemplo, é um exemplo de arquitetura fascista, e é lindo. A arquitetura fascista não era muito criativa, mas tinha certa harmonia”. A pedido do pianista, iniciou o ensaio pelo quarto movimento, por ser o mais vibrante. “Ou os músicos vão rejeitar a peça”, Donohoe avisou. Antes de levantar a batuta, Neschling fez uma ressalva: “O Busoni pede que o concerto seja feito sem pausa. Não dá para tocar por uma hora e dez minutos sem pausa. Vamos parar entre o terceiro e o quarto movimentos. Um minuto para a respiração, sem nova afinação, e voltamos”.
Começaram.
Até a chegada de Neschling, a Osesp era comandada por Eleazar de Carvalho, único brasileiro que regeu as Filarmônicas de Nova York, Viena e Berlim. Ela padecia de verba curta, salário baixo e estrutura precária. Na falta de uma sede, ensaiava em um auditório no Caetano de Campos, um colégio público no centro de São Paulo. Com a morte de Eleazar, em setembro de 1996, o então secretário de Cultura, o advogado Marcos Mendonça, pediu aos músicos que fizessem uma lista de possíveis sucessores. “Eu colocava como condição que fosse um maestro brasileiro, para que conhecesse o modo de agir do brasileiro”, contou Mendonça. Surgiram três nomes: Fabio Mechetti, hoje na Sinfônica de Jacksonville, John Neschling, então regente titular da Ópera de Palermo, e Roberto Tibiriçá, que está à frente da Filarmônica de São Bernardo do Campo. Mendonça optou por Neschling, que aceitou o cargo com três condições: sede própria, reavaliação técnica do corpo da orquestra e aumento salarial para os músicos que fossem aprovados.
No final de 1996, com o respaldo de um engenheiro de som americano, chegou-se à conclusão de que a Estação Ferroviária Júlio Prestes, se passasse por uma ampla reforma, teria os atributos de uma boa sala de concerto. A idéia foi levada ao governador Mario Covas, que, segundo um amigo, o advogado Dalmo Nogueira Filho, seu secretário na época, perguntou apenas quanto custaria a obra: “Covas percebeu que a Sala São Paulo seria uma marca do seu governo”, disse Nogueira. A reforma, terminada em julho de 1999, custou 44 milhões de reais.
A orquestra entrou em recesso para que os integrantes tivessem seis meses de preparo para a reavaliação técnica. A banca de julgamento foi integrada por maestros e solistas estrangeiros. Dos 96 instrumentistas, 70 enfrentaram o teste e 47 foram aprovados. Covas autorizou que o salário deles fosse triplicado, pulando para 4 200 reais.
Neschling costuma almoçar em seu apartamento em Higienópolis, bairro rico de São Paulo. Numa segunda-feira recente, descumpriu a regra: por estar sem cozinheira, quando saiu do ensaio matinal já havia uma travessa de comida japonesa o aguardando no gabinete. Antes de qualquer pergunta, ele se adiantou: “Você é judeu?” Ao ouvir a resposta de que apenas por parte de pai, sentenciou: “Então é gói”. Disse que não marca concertos nos dias de festa judaicos e que pretendia viajar no fim de dezembro para Israel, onde morou por um ano. “Foi em 1968, quando trabalhei num kibutz”, contou, depois de tomar um gole na lata de refrigerante dietético. “Mas a minha grande aproximação com a religião foi há dez anos, quando voltei para São Paulo. Minha mulher até se converteu ao judaísmo.” Em maio, o maestro se casou com a escritora Patrícia Melo, autora do livro Valsa Negra, que conta a história de um maestro obsessivo que tem ciúmes do regente assistente, não gosta de Liszt e só toma refrigerante dietético.
Durante o almoço, explicou a predileção pelas obras de Strauss e Mahler: “A relação que tenho com eles é a de um amigo”. E, além de Liszt, reconheceu que também não gosta de Berlioz. Disse não ouvir gravações – “Para não me influenciar” – e não sentir necessidade de compor.
O ensaio recomeçou às duas da tarde, com o concerto de Busoni. Neschling parou nos primeiros compassos: “A terceira flauta está muito alta”. Mais alguns compassos e nova pausa: “Fagote, vamos tentar nos concentrar e tocar direitinho? Não vou repetir 500 vezes”. Em seguida, foi a vez das cordas graves: “Violoncelo e contrabaixo, é sol bemol. Não é isso que está escrito para vocês?” Modificadas as partituras, a música prosseguiu. Por pouco tempo: “Vocês estão olhando para baixo. Ninguém está olhando para mim. Que cultura de orquestra é essa?”
Em uma passagem melodiosa, exigiu lirismo: “A frase tem que ter fantasia. Não toquem o que está escrito: façam música. Somos artistas e não burocratas”. Em um trecho de ritmo acentuado, pediu que as notas soassem rudes: “Vocês, músicos de orquestra fina, imitem um pouco a choldra”. Percebendo que o tempo da orquestra não coincidia com o do pianista, decidiu acelerar: “O Donohoe pega um pouco mais rápido. Então não vamos insistir no nosso compasso que não é inteligente”. Ao ver que parte dos músicos não estava concentrada, passou-lhes um pito paternal: “Hoje vocês estão conversando muito. De repente a gente dá um berro e o clima fica horrível de novo”.
Numa orquestra de grande porte, a programação é definida com dois anos de antecedência, tempo necessário para que se encontre uma vaga na agenda de maestros e instrumentistas de renome. Lorin Maazel, regente da Filarmônica de Nova York, pode cobrar 60 mil dólares por uma semana de apresentação. A Osesp trabalha, em média, com convidados que custam de 8 a 20 mil dólares.
Um mês antes da execução de qualquer obra, a partitura é entregue ao spalla, o músico mais importante depois do maestro. Cabe a ele determinar a direção em que o arco do violino encostará nas cordas, para que todo o naipe faça o mesmo movimento. Se o arco é tocado de cima para baixo, o som fica mais afirmativo, devido ao peso do braço. Já o arco tocado de baixo para cima dá uma sensação de leveza. Com as marcações feitas, a partitura é distribuída aos chefes de viola, violoncelo e contrabaixo, que reproduzem seus movimentos a partir das anotações do spalla. Três semanas antes da apresentação, a partitura é entregue aos músicos.
No primeiro ensaio, Neschling passa a obra de ponta a ponta, para que a orquestra se acostume com a sonoridade. Nos ensaios subseqüentes, destrincha os trechos mais difíceis. No dia da estréia, faz uma passagem geral, aberta ao público, em que as peças são tocadas sem interrupção. Ao reger, a batuta de Neschling parece flanar em sua mão direita. Os avisos de entrada antecedem os ataques dos músicos. A marcação de tempo é fluida e os movimentos corporais são contidos. Ele justifica: “Já fui um maestro mais histérico, mas fiquei econômico nos gestos”.
Em julho de 2001, os músicos da Osesp enviaram uma carta a Neschling e Roberto Minczuk, o maestro associado. Assinada por 90% dos instrumentistas, ela reclamava do “clima existente nas relações entre os músicos e os regentes, titular e adjunto, o qual freqüentemente tem se caracterizado por uma acentuada percepção de baixa tolerância e aspereza no trato”. Duas semanas depois, num ensaio conduzido por Minczuk (Neschling estava na Suíça), o maestro associado confundiu a marcação do tempo da Sinfonia nº 4, de Schubert. Alguns músicos seguiram a partitura, outros obedeceram às suas ordens e os sopros acabaram se desencontrando. O regente abaixou a batuta e perguntou, irritado, o que havia ocorrido. O oboísta Joel Gisiger respondeu: “Maestro, o senhor errou”. Segundo relatos, ele também comentou com um flautista ao lado “que não era à toa que os regentes que vêm de fora reclamam do nosso tempo” (na semana anterior, um maestro francês havia desistido de comandar a orquestra, reclamando de desatenção por parte dos músicos).
No intervalo, Minczuk escreveu uma advertência formal a Gisiger – seu amigo de infância e, como ele, evangélico. Ao saber da punição, o oboísta subiu ao gabinete do regente para reclamar. Na discussão, diz-se na orquestra, Gisiger teria citado trechos bíblicos para apontar que Minczuk sucumbira à vaidade. O maestro transformou a advertência em suspensão. O oboísta deu as costas e bateu a porta.
Quando a orquestra voltou do intervalo, Gisiger subiu ao palco para contestar a decisão. Citou o estatuto da Osesp, segundo o qual uma suspensão deveria ser precedida de três advertências (e ele havia sido advertido uma única vez). O maestro respondeu que a discussão havia sido íntima, e ordenou que o seu irmão, o oboísta Arcádio Minczuk – substituto de Gisiger – , afinasse a orquestra. (A afinação é iniciada pelo primeiro oboé, que serve de base para o primeiro violino, que serve de base para todos os instrumentos.) Arcádio soprou a nota lá e a orquestra não respondeu. O ensaio foi suspenso.
O fagotista Fabio Cury, presidente da associação dos instrumentistas da orquestra, interrompeu sua folga para conversar com Minczuk. Foi ao gabinete com outros diretores da associação e sugeriu que a suspensão de Gisiger fosse adiada por uma semana, para não prejudicar o próximo concerto. Pelo viva-voz, ouviram o brado de Neschling, que, sem que soubessem, acompanhava a discussão da Suíça. O maestro titular exigiu que a orquestra voltasse a ensaiar. A ordem não foi cumprida. No dia seguinte, o ensaio geral foi feito com uma câmera no centro da platéia, para filmar eventuais contestações. Ao voltar, Neschling demitiu sete músicos por telegrama, inclusive Fabio Cury, mas excluiu Gisiger, que no meio da disputa escrevera uma carta de retratação.
Por telefone, Gisiger relembrou o episódio e sua amizade com Minczuk: “Eu freqüentava a casa dele, ele freqüentava a minha. Isso me deu liberdade para que protestasse com veemência. Se o problema fosse com o Neschling, jamais teria falado daquela forma ou batido a porta. Agora, isso é o meio da história. A relação do Neschling com a associação era atritada. Eu fui usado como bucha de canhão”. Na avaliação de Neschling, “aqueles músicos queriam a velha tradição de indisciplina, falta de hierarquia e tranqüilidade. Houve um trauma, mas acho que o caminho foi bom”.
Fabio Cury toca hoje na Orquestra do Municipal de São Paulo. Ganha 4 mil reais por mês, metade do que recebia na Osesp. Ele lembra que escreveu uma carta a Marcos Mendonça, contestando a demissão, que considerava arbitrária. Dias depois, o secretário da Cultura recebeu uma segunda carta, de apoio a Neschling, endossada por doze líderes de naipe, que acabaram conhecidos como “os doze apóstolos”. O texto, redigido por Marcelo Lopes, atual diretor-executivo da Osesp, dizia que Cury não falava em nome da orquestra. Lopes continua a defender as demissões: “Aquele foi o momento em que a orquestra acordou do ponto de vista disciplinar e passou da adolescência para a fase adulta”.
Em novembro passado, um áudio intitulado “Neschlíngua” foi colocado no YouTube. Na gravação, feita durante dois ensaios sem que Neschling soubesse, o maestro diz: “Não tive nenhum problema em mandar embora sete músicos anos atrás, e não terei nenhum problema em mandar embora outros sete”. Mais adiante, afirma: “Se houver discussão, é fora. É rua na hora, na hora. Não quero nem saber”. Talvez estivesse se referindo a Roberto Minczuk.
Em 2004, Minczuk aceitou o convite para coordenar o Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, o maior evento de música clássica do Brasil. Neschling não gostou, mas concordou que Minczuk continuasse na orquestra como regente convidado e se afastasse das funções administrativas. No ano seguinte, O Estado de S. Paulo publicou uma página sobre a Osesp, na qual o jornalista Daniel Piza afirmou que os músicos da orquestra gostavam mais de trabalhar com o regente convidado do que com o titular. Ele também escreveu que “o aluno superou o mestre, pois Neschling não tem a mesma riqueza expressiva de Minczuk”. Neschling pediu que Minc-zuk escrevesse uma carta ao jornal, contestando as afirmações. Diante da recusa, o maestro cancelou todos os concertos de Minczuk e o afastou. Ambos se recusam a comentar o assunto.
O terceiro caso de desligamento público da Osesp foi o do pianista Ilan Rechtman, diretor do Concurso Internacional de Piano Villa-Lobos, instituído pela orquestra em 2006. Quando os vinte participantes do concurso foram anunciados, parte da lista não batia com o julgamento da banca avaliadora. Rechtman foi demitido e, em resposta, contou que a manipulação havia sido encomendada por Neschling, que exigira mais brasileiros do que chineses entre os selecionados. O maestro disse na ocasião que as acusações eram absurdas. Rechtman mora em Nova York, de onde acompanha as quatro ações que move contra a Osesp e as duas que a orquestra move contra ele (numa delas, Neschling ganhou 250 mil reais em primeira instância). Como os processos correm em segredo de justiça, nem ele nem o maestro falam do assunto.
Há dois anos, Neschling mudou o estatuto da Osesp, que passou a ser gerida por uma fundação. Desde então, a orquestra é administrada como uma empresa privada, mas, por meio de um convênio, manteve o respaldo público: o governo paulista comprometeu-se a financiá-la com 43 milhões de reais ao ano, até 2010, o que representa 10% do orçamento anual da Secretaria de Estado da Cultura. Em contrapartida, a fundação é obrigada a arrecadar 12% desse valor na iniciativa privada. Em 2007, o orçamento da Osesp foi de 58 milhões de reais, enquanto a segunda maior orquestra nacional, a Sinfônica Brasileira, teve um orçamento de 21 milhões de reais.
Com a privatização, a orquestra ganhou liberdade para firmar contratos em moeda estrangeira, empregar prestadores de serviço em função do mérito, e não da licitação, e agilizar a compra de instrumentos. Além disso, os 117 músicos tiveram a carteira de trabalho assinada. Um instrumentista iniciante tem um salário de 7 500 reais. Um líder de naipe ganha 9 000 reais e o spalla, 14 500. Com 270 funcionários, ela promove 130 concertos anuais e tem 25 discos gravados. Em 2007, fez turnês pela América do Sul e pela Europa. Seu repertório inclui, ao lado dos clássicos, muitas peças nacionais ou feitas a partir da segunda metade do século XX. É opinião unânime, entre afetos e desafetos de Neschling, que o maestro é um bom administrador.
A privatização foi também uma vitória política de Neschling, a quem coube fazer os convites para o Conselho de Administração e Consultivo da Fundação Osesp. Para a presidência, ele chamou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Para vice, Pedro Moreira Salles, presidente do Unibanco. Entre os conselheiros estão o economista Pedro Malan, o embaixador Rubens Antonio Barbosa, o jornalista Alberto Dines e um representante da orquestra, eleito para um mandato de dois anos.
Os conselhos com figuras públicas, ricas ou de prestígio existem para ajudar as orquestras na arrecadação de verbas. A Filarmônica de Berlim tem entre seus conselheiros um ex-presidente da Alemanha. O conselho da Sinfônica de Chicago é comandado pelo presidente de uma holding de bancos. Mas nessas orquestras, os músicos têm um poder enorme. Num e-mail, o oboísta gaúcho Alex Klein, líder de naipe na Sinfônica de Chicago até 2004, contou que, “em Chicago, Nova York ou em qualquer outra orquestra que funcione bem, o momento em que um maestro diz um palavrão é o momento em que os músicos se levantam do palco e, unidos, encerram o ensaio. Esses músicos trabalham em uma atmosfera de respeito e educação. O mesmo não acontece na Osesp, na qual participantes regularmente são tratados de maneira nada profissional”.
Pelo estatuto da Osesp, só o conselho pode indicar e dispensar o diretor artístico, por maioria absoluta de votos. Ou seja, apenas o grupo formado por Neschling tem o poder de se voltar contra Neschling. É por isso, talvez, que na gravação do YouTube o maestro diz que “a fundação tem um conselho e o conselho não abre mão de mim”, e, mais à frente, completa: “O governador pode ter desejos, mas não manda no conselho”. O contrato de Neschling vigora até 2010. O governo paulista pode rescindi-lo, desde que arque com “a integral quitação das obrigações pendentes”. Isso significa uma indenização de mais de 2 milhões de reais.
Desde sua instituição, o conselho se reuniu doze vezes. Jamais discutiu formalmente o comportamento do maestro. Em todas as atas, acessíveis no 10° Registro Civil das Pessoas Jurídicas da Capital, o tópico “Outros assuntos e deliberações” é seguido de uma frase curta e seca: “Não houve”. Em seu escritório no centro de São Paulo, com vista para o Viaduto do Chá, Fernando Henrique Cardoso disse que o conselho só discute assuntos administrativos: “Recebi cartas anônimas”, contou o ex-presidente, “mas o que posso fazer? Uma pessoa que não tem a hombridade de colocar o nome numa denúncia não merece minha atenção. Não tenho intimidade com o maestro e não estou aqui para defendê-lo. Estou aqui para ajudar a orquestra”. Ao ser perguntado se o silêncio dos músicos não seria uma conseqüência do comportamento intempestivo do maestro, ele fez um breve silêncio, ponderou e respondeu: “Pode ser. Pode ser”.
Existe um mal-estar entre Neschling e o governador José Serra, e ambos não falam sobre o assunto. No governo, se critica o elitismo da Osesp, que não faz apresentações em áreas carentes e, embora seja sustentada pelo dinheiro dos 645 municípios de São Paulo, prefere apresentar-se na Europa a tocar em cidades do estado. Marcelo Lopes rebate: “Você não vai tirar o acervo do Masp e levar para a Brasilândia. Melhor levar a comunidade de Brasilândia para o Masp. Só nesse ano, trouxemos mais de 40 mil alunos da rede pública para os concertos didáticos na Sala São Paulo”. Quanto à segunda crítica, ele aponta que, em 2007, a orquestra se apresentou em São Caetano do Sul, São José dos Campos, Campos do Jordão e Santos.
Quem conhece o maestro e o governador diz que a desavença começou na véspera da primeira edição da Virada Cultural da cidade de São Paulo, em 2005, quando Serra era prefeito. “A orquestra teria destaque”, contou o secretário municipal de Cultura, o professor de cinema Carlos Augusto Calil. Faltando menos de 24 horas, Neschling cancelou a apresentação, reclamando da ineficiência da organização, que não providenciara camarote, trailers, vestiário e comida para os músicos. Calil rebate: “Se não havia um tratamento assim para ninguém, por que haveria para o maestro? Deu a impressão, na ocasião, de que era um pretexto para não participar”. Também se diz, no primeiro escalão do governo paulista, que Neschling recusou-se a se apresentar na Virada Cultural porque a firma que montaria a aparelhagem de som, ligada a ele, não foi a escolhida pela prefeitura. Marcelo Lopes confirma: “A amplificação era insuficiente. Neschling decidiu que se era para a orquestra tocar em condições precárias, melhor que não tocasse”.
Outro motivo da insatisfação de Serra com Neschling seria o salário dele. O maestro é o funcionário mais bem pago de São Paulo: de acordo com a ata da segunda reunião ordinária do conselho, de 28 de novembro de 2005, “a remuneração para o cargo de diretor-artístico da Osesp, por unanimidade, foi fixada em 110 mil reais”. Não existe salário equivalente em nenhuma outra orquestra da América Latina. Nos Estados Unidos, Lorin Maazel recebe da Filarmônica de Nova York 2,6 milhões de dólares anuais. Na Europa, o salário de Neschling seria metade do estimado em milhão de euros ganho por Simon Rattle à frente da Filarmônica de Berlim. Mas Maazel e Rattle são dois dos mais renomados maestros da atualidade, e estão à frente de duas instituições veneráveis.
Em abril, a Osesp fez um concerto em homenagem ao ex-governador Mario Covas e aos dez anos da reestruturação da orquestra. A Sala São Paulo estava lotada, salvo pela cadeira do governador José Serra. A colunista Mônica Bergamo escreveu na Folha de S. Paulo que, quando a apresentação terminou, “aos gritos, o maestro John Neschling desabafava, no camarim da Sala São Paulo: ‘Por que eu tenho que sair? Me diga? Por quê? Por quê?'”. A história é confirmada por músicos.
Depois de três dias de apresentação das peças de Liszt e Busoni na Sala São Paulo, a Osesp se dividiu em dois vôos com destino ao Rio de Janeiro, para apresentar um concerto no Theatro Municipal. Num avião vieram os músicos. Noutro, Neschling, sua mulher e o pianista convidado, o holandês Ronald Brautigam. Violinos, violas e instrumentos de sopro foram trazidos a mão. Violoncelos, contrabaixos e tímpano haviam sido despachados um dia antes, em um caminhão.
O ensaio geral começou às três da tarde, duas horas antes de a casa ser aberta ao público. Neschling subiu no pódio do maestro e falou: “Primeiramente, o Liszt. O concerto de quinta foi bom, o de sábado mais ou menos, e o de sexta achei péssimo. Vou dizer o porquê: tocamos com pouco entusiasmo, sem espírito. Havia um monte de notas e entradas erradas”. Ele cantarolou as partes que o haviam incomodado, e prosseguiu: “Quero agora uma leitura de Liszt correta. Quero ter orgulho de vocês como tive nos outros ensaios”. Empinou a batuta para marcar o tempo. A orquestra errou o primeiro acorde, que, por começar no contratempo, é de difícil sincronia. Ele juntou as mãos, como se rezasse, e pediu ao grupo que reiniciasse: “Tem gente entrando quase uma colcheia atrás”. Voltou a marcar o primeiro compasso. Parou no segundo. “A afinação do fagote está ruim.” Deu mais uma entrada, e nada: “Nas três vezes em que tocamos esse acorde, vocês podiam ter consertado a afinação e não consertaram”. Na quarta tentativa, a orquestra engrenou.
Neschling se irritou pouco depois com a sonoridade: “Qual é a dinâmica que está escrita? Está escrito piano e vocês estão tocando mezzo-forte”. O spalla se levantou, virou-se para os outros músicos e disse: “Temos que tocar baixo, porque o som aqui é mais forte que na Sala São Paulo”. O maestro então reclamou de mim, que estava num canto do palco, atrás dos violinos, anotando o que ele dizia: “Acho que não tem nada a ver você ficar escrevendo tudo que eu estou falando, porque isso aqui é um trabalho interno. Não é aberto à imprensa. Não é aberto a ninguém. Feio isso. Entendeu? Fica um jornalista ali em pé, a gente aqui ensaiando. Fica uma coisa feia”. Enquanto eu fechava o caderno, ele prosseguiu: “Pode sentar na platéia, mas é melhor não escrever agora. Isso aqui é um trabalho interno. É ensaio. Não tem sentido ficar anotando. Parece que você está na Volkswagen”.
Neschling passou os olhos sobre a partitura e dirigiu-se à orquestra: “Vamos fazer do início mais uma vez”. Antes de levantar a batuta, virou-se para mim e continuou: “Expõe os músicos, entendeu? E não tem sentido expor músico de orquestra assim. Nem a mim, nem à orquestra. Ninguém vai ficar na linha de produção da Gradiente vendo o gerente, o cara que monta o chip. O que importa é o resultado final”.
No dia seguinte, um músico da orquestra, que preferiu não se identificar, telefonou e disse: “Volta, por favor. Queremos um jornalista por semana. O Neschling nunca esteve tão calmo!” Recebi também, em novembro, um envelope anônimo, assinado por um “Professor instrumentista da Osesp”, que continha um CD com gravações de onze ensaios. Entre eles, havia o trecho descrito acima e outro, supostamente gravado no dia 24 de outubro, em que Neschling desabafava: “As violas são absolutamente risíveis. Um naipe absolutamente risível. Não consegue fazer uma parada junto. Não lembra de nada. Naipe de segunda categoria em relação à orquestra”.
O maestro alemão naturalizado austríaco Bruno Walter, que regeu a Filarmônica de Nova York de 1947 a 1949, costumava dizer que o instrumento do regente é um dragão de 100 cabeças. Marcelo Lopes complementa: “São 100 cabeças de artistas, sentindo-se diminuídas pelas ordens do maestro. A felicidade que o público sente ao ouvir a música não é a felicidade que o músico sente ao tocá-la”. O crítico Luiz Paulo Horta diz que “em orquestras o princípio democrático não vale. A autoridade do maestro tem que ser indiscutível”. Neschling pensa de maneira semelhante: “Aqui parece que somos a vitrine de tudo que é autoritário e ditatorial no país. Mas nunca houve autoritarismo. Houve autoridade. Democracia é autoridade. Democratismo leva à zorra”. O jornalista Alberto Dines, conselheiro da Osesp e amigo do maestro há mais de trinta anos, disse que Neschling é impetuoso e personalista: “Mas se não fosse, não seria bom maestro. O que importa é que o resultado é bom”. Para o pianista Peter Donohoe, solista do concerto de Busoni, nenhuma orquestra na América do Sul funciona como a Osesp: “Neschling é rei aqui!”, exclamou.
Henrique Autran Dourado, diretor da Escola Municipal de Música de São Paulo, de onde saiu Roberto Minczuk, diz que a Osesp “é o espelho da sociedade brasileira: autoritária, personalista e sem participação do andar de baixo”, e completa: “O Neschling transformou a orquestra em um projeto pessoal. E aquilo é uma fundação. Não pode ter dono”. Carlos Augusto Calil concorda: “Não conheço nada igual no Brasil. Ele é inamovível: define as condições, o salário e o tempo do contrato. Só sai de lá por iniciativa própria. Acho que esse assunto está morto”. Nem tanto: em dezembro, os boatos sobre a saída de Neschling se intensificaram. No governo paulista, se discutia uma saída gradual e negociada: dar a ele um cargo honorífico. Entre os músicos, começou a circular a idéia de uma possível sucessão internacional. O contrabaixista Jefferson Collacico, presidente da associação, disse que a orquestra “não precisa alavancar ninguém. Precisa que alguém a alavanque, como o Nesch-ling fez. Queremos um puro-sangue”.
Para Fernando Henrique Cardoso, “ninguém é inamovível e o conselho não está impermeável a, no futuro, mudar. Vamos dar ao maestro o estímulo necessário para que ele conduza a orquestra, sabendo, no entanto, que não é eterno. Mas isso não significa que vamos romper o contrato”. Citando o próprio exemplo, filosofou: “Quem está em cima tem que calcular qual é o momento de renovação. Uma boa liderança não é aquela que se perpetua, mas uma que, ao sair, deixa saudade”.
Neschling se defende: “Eu não peguei uma orquestra pronta. Eu construí uma orquestra. Alguns músicos aqui até me chamam de pai”. Acomodado em seu gabinete, fez previsões para o futuro: “Espero continuar regendo a Osesp pelos próximos dez anos, mas sei que as coisas não são estáticas. Tudo tem começo, meio e fim. Caso eu saia, meu estilo ainda vai ficar entranhado. Existe uma relação especial entre mim e a orquestra. É uma relação de criador e criatura”.