Rabelo tem pouca paciência com os que fazem discurso ecológico, mas quando chegam à praia, sujam tudo e não respeitam ninguém FOTO: ROGÉRIO REIS_2008
Meu nome é She-Ra
Entre um salvamento e outro, a rotina de um guarda-vidas no Rio de Janeiro
Nilson Rabelo | Edição 17, Fevereiro 2008
O Sargento Nilson César Pereira Rabelo trabalha como guarda-vidas nas praias cariocas há mais de 26 anos. Acaba de ser transferido para o Grupamento Marítimo de Itaipu, em Niterói, após ter servido oito anos no Posto 6, em Copacabana. Natural do Maranhão, de onde migrou aos 11 anos de idade, e formado em Educação Física, Rabelo é viúvo, tem quatro filhas e mora com duas delas em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio.
Em primeiro lugar, vou me apresentar: meu nome de guerra é Rabelo, mas no trabalho me chamam de She-Ra, a irmã do He-Man, do desenho animado. Me botaram esse apelido há muitos anos durante o curso de guarda-vidas. O tenente-instrutor, que gostava de colocar apelido em todo mundo, ao ver que o pessoal me chamava de “Tarzan”, decidiu: “Tarzan não. Vamos botar um apelido diferente, um nominho bem danado pra te machucar durante o treinamento. Você vai ser o She-Ra”. Aí não teve jeito, o apelido pegou. Adulto, criança, todo mundo na praia agora só me conhece como She-Ra. Até o coronel Nicácio, meu comandante, só me chama de She-Ra. Mas isso é só no trabalho. Em casa me chamam de Rabelo. Ninguém me chama de Nilson.
SEXTA-FEIRA, 28 DE DEZEMBRO – Eu estava em casa quando recebi um telefonema do 3º. GMar (Copacabana). Era o sargento escalante, comunicando que eu estaria de serviço na passagem do ano. “Está preparado?”, perguntou. “A qualquer hora, a qualquer tempo, em qualquer mar”, respondi. O que ele não sabia era que eu já tinha feito os preparativos de uma grande festa de réveillon aqui no quintal de casa. Não teve jeito: avisei que não poderia participar. Todos ficaram tristes, porque sou eu que organizo a brincadeira: recolho o dinheiro, faço as compras, agito o som e dá tudo certo.
SEGUNDA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO – Enquanto a família se preparava para a grande festa, eu me aprontava para pegar o ônibus às 13h e chegar ao serviço às 16h. “Ué, vai trabalhar hoje?”, me perguntavam na rua. “Pois é, estou à noite em Copacabana”, respondia. Peguei o 284 (Praça Seca-Tiradentes), saltei na Central do Brasil e peguei o 455, Méier-Copacabana. Entrei no meu grupamento, o 3º. GMar, onde o oficial do dia já fazia a chamada para assumirmos nossos postos das 17h30 até as 6h do dia seguinte. Recebemos um pacote com o lanche da tarde, que desta vez veio bem reforçado: bolo, laranja, maçã, biscoito e Gatorade. Mais tarde teríamos um jantar especial de réveillon, servido na mesa, tipo self-service: torta de bacalhau, frutas, cereais, tábua de frios etc.
O oficial do dia perguntou se alguém tinha alguma coisa a dizer, antes de começarmos o trabalho. Eu pedi a palavra. Disse a todos os meus colegas que não ficassem tristes por estarem longe da família e dos amigos, pois tinham nos preparado uma grande festa. Alguém perguntou que festa era essa e eu disse: “O réveillon de Copacabana é pra gente, galera!”
Às 17h30 eu estava no posto e a praia já fervia. Todo mundo se espremia, era cada um por si, buscando um pedacinho de espaço. Não dava para todos ficarem só na torre, o risco era muito grande. Em cada torre ficaram três ou quatro guarda-vidas, além do pessoal de apoio, bombeiros, maqueiros, enfermeiros e o pessoal de extinção de incêndio. Outra turma foi postada na beira d’água – inclusive eu.
Tinha também o pessoal da Guarda Municipal e da Polícia Militar, segurança reforçada, porque tinha muita gente alcoolizada e drogada. Ainda por cima tinha festa rave na praia do Leme. Aí já viu, né?
No posto 4, bem no meio de Copacabana, teve o show da prefeitura. Era pagode, reggae, todo tipo de música, escola de samba, o escambau. E nós lá embaixo, na beirada da praia, só apitando para o povo: “Piiiii, piiiii… Sai da água!”, “Cuidado!”, e dá-lhe tirar gente da água. O pessoal fica maluco e vai invadindo o mar; não querem nem saber.
À meia-noite começou a queima de fogos. Era todo mundo olhando para cima e nós olhando para o povo lá embaixo. Música, batuques, abraços, choro e histeria, todo mundo querendo entrar no mar. Lá pelas tantas, fui tirar uma senhora da água. Ela me abraçou pelo pescoço e começou a me beijar, desejando um feliz ano novo. Como ela não me soltava, o público em volta gritava e aplaudia: “Valeu, guarda-vidas!” Outra mulher me chamou no posto 5. Ela estava vestida de roupa de mãe-de-santo e me disse: “Vou dar um passe em você e te limpar, aceite”. Imagine se passasse alguém do comando e visse aquilo.
Quando amanheceu, ficamos sabendo que no Leme um cara tinha se jogado no mar e morreu. Os pescadores contaram que ele andou pelas pedras e se atirou bem no canto da praia. O mar trouxe o seu corpo de volta lá pelas seis da manhã. Meus colegas que estavam assumindo o turno da manhã o retiraram da água e ficaram esperando o rabecão.
Na minha área não ocorreu nada de grave, só muito bêbado mesmo, todo mundo doidão.
TERÇA-FEIRA, 1º DE JANEIRO DE 2008 – Chego em casa por volta das 11h da manhã, ainda sem ter dormido. Todos já estavam reunidos para o enterro dos ossos do réveillon. Foi uma alegria quando cheguei: o som estava ligado bem alto, com Zeca Pagodinho. Recebi abraços e beijos, e logo me deram um copo de cerveja bem gelado com um pedaço de pernil. A festa entrou noite adentro. Dancei e cantei muito. Como estava muito quente, todo mundo tomou banho de mangueira no quintal. Fui dormir lá pelas 23h, já no bagaço.
QUARTA-FEIRA – Hoje estou de folga. Minha escalação de trabalho funciona assim: trabalho um dia, e folgo no dia seguinte. Nunca tenho dois dias seguidos de trabalho.
Acordei cedo para continuar a obra da minha casa. É duro morar numa casa em construção. Aqui eu sou auxiliar de pedreiro, ou seja, auxiliar de mim mesmo; faço de tudo. Estou morando há um mês nessa casa com as minhas duas filhas mais velhas.
Vendi meu carro, comprei o terreno e estou pagando a perder de vista. Fui levantando a obra da casa com a ajuda do meu irmão Nixon (isso mesmo, o nome do presidente americano), que entende de construção. Casa normal, dois quartinhos, pequena, é a minha primeira casa própria.
Antes eu morava de aluguel aqui mesmo em Jacarepaguá, perto do meu pai. As filhas que moram comigo são assim: Cássia é atendente da Telemar, e a Huli terminou o curso da Embeleze, de cabeleireiro, e está começando a trabalhar nessa área.
As duas são solteiras e cuidam da casa, quer dizer, “mais ou menos”: eu sou o arrumadinho, e elas as bagunceiras. A briga lá em casa é por causa disso. Eu cozinho, faço todo tipo de comida. Minha especialidade é estrogonofe. E gosto de feijão com coentro bem picadinho, porque sou maranhense e lá o coentro é de lei. Se não tiver coentro, aquele cheirinho pra dar um gosto, a comida não desce legal.
QUINTA-FEIRA – Acordei às 4h30 e cheguei no grupamento às 6h45. Quero aproveitar para esclarecer uma coisa: o pessoal nos chama de salva-vidas, mas nós somos é guarda-vidas. Salva-vidas é o nome daquela bóia que socorre a pessoa afogada. Nós somos guardiões da vida, por isso, somos os guarda-vidas. Tenho o maior orgulho disso.
Cheguei ao grupamento, tomei um café com pão e manteiga, e fui malhar antes de assumir o meu posto. No verão, nosso preparo físico é feito antes de pegar no posto, logo cedo. Cada um faz a sua própria rotina de exercícios. Eu corro, nado, faço barra e paralelas. No inverno é o contrário. Como a praia fica mais vazia, de manhã o comando já tem um quadro de atividades físicas para ser cumprido coletivamente.
Lá pelas dez da manhã chegou o lanche: duas bananas. Mandei ver. Eu não dispenso comida, costumo dizer que eu faço a dieta da sopa: deu sopa, eu como tudo.
Terças e quintas são os dias em que aparecem mais mulheres, tanto solteiras como casadas. Em Copacabana, a praia lota todos os dias, porque a praia é o quintal de quem vive em apartamento, é a área de lazer do pessoal. Tem muitos que acordam cedo e chegam entre 7 e 7h30, voltam para casa ou o hotel às 10 ou 11h para almoçar, retornam às 14h30 para nadar, jogar bola, peteca, futevôlei, frescobol, e ficam até escurecer.
No verão não tenho hora pra sair. Além de a praia estar mais cheia, anoitece mais tarde, então eu tenho que ficar até o fim.
SEXTA-FEIRA – Nos meus dias de folga eu adoro ir à praia – sem o compromisso de estar de serviço – para encontrar os amigos, cantar nos karaokês da vida e, religiosamente, ir à academia para malhar. As minhas praias preferidas são as da Barra e do Recreio. Estando em casa, adoro assistir tevê, gosto de filmes, documentários e esporte. Em casa sempre tem alguma coisa para fazer ou consertar. Nos finais de semana eu tomo uma cerveja com os amigos, acompanhada de uma costelinha de porco e de um bom pagode. Gosto de músicas dos anos 70 e 80. Tenho tantos amigos, que sempre dizem que eu poderia me candidatar a um cargo político ou de contador de histórias. Já participei de dois casos especiais para a TV Globo no papel de bombeiro: “O Homem que Incendiou o Maracanã” e “O Bravo Soldado Bombeiro”. Nesse último, eu apareço em uma cena falando por alguns minutos. Isso já tem uns quinze anos.
SÁBADO – Gosto de separar na véspera o material e uniforme que vou usar no serviço: sunga, camiseta, apito, chapéu, protetor solar e óculos de sol. Guardo tudo na bolsa para não esquecer.
Cada posto na praia cobre uma área de 500 metros para a esquerda e 500 metros para a direita. Hoje, nesse espaço, nadei quase 2 mil metros antes de correr. Nos aparelhos ao lado do posto, eu fiz barra, paralelas e flexões – tudo isso sempre sem dar as costas para o mar, para poder prestar atenção ao que acontece na água. Almocei, lá pelas 13h, uma quentinha que o grupamento mandou entregar no meu posto, mas com os olhos ligados no mar. Sempre que há um socorro nesse horário, nem volto para terminar o almoço.
Como o mar estava calmo, não aconteceu nada de extraordinário. Só teve “sirizinho” como a gente diz, coisinha à toa, socorro sem perigo. Recolhi os materiais, entreguei o relatório das ocorrências e fui dispensado. Eu adoro poder sentar no final do dia no alto do posto para apreciar o pôr-do-sol. Para mim, é o melhor momento do serviço. E esse serviço, o melhor do mundo.
Em todo esse tempo de praia, conheci tanta gente que daria para lotar o Maracanã. Tenho amizade com idosos, jovens e crianças. Dessas muitas crianças que conheci, algumas hoje são doutores, empresários, delegados, garis, guarda-vidas, policiais, enfermeiros. Um menino que tomava conta do quiosque do pai, por exemplo, hoje é capitão do Corpo de Bombeiros. Outro dia, fui ao ortopedista e o médico que me atendeu já foi um dos meninos que os pais levam à praia com uma pranchinha de isopor e pedem para ficarmos de olho. Hoje ele é capitão-médico do Hospital do Corpo de Bombeiros.
DOMINGO – Para relaxar no dia da minha folga, fui à praia no Recreio dos Bandeirantes, mas acabei tendo que fazer uns sete ou oito salvamentos no mar. Não tive escolha, é impossível ficar sem socorrer alguém. Mesmo de sunga verde ou azul, e sem o uniforme, minha cabeça fica condicionada: “Pô, eu tô na praia, e se acontecer…” É que nem médico, não dá para recusar um socorro. Depois fui para o outro lado do calçadão, onde estava tendo um pagode e um começo de carnaval, e fiquei por ali.
SEGUNDA-FEIRA – Hoje não teve nada de especial, só alguma criança perdida, mas logo achada. Eu costumo dizer que não é a criança que se perde dos pais, são os pais que se perdem da criança. Uma curiosidade sobre crianças perdidas na praia é que elas sempre andam na direção contrária ao sol. Como a luz forte do sol incomoda, elas dão as costas para o sol e vão andando no sentido oposto. Muitas vezes se perdem em um posto e só vamos ter notícia de que foram encontradas três ou quatro postos mais adiante. Isso é o tipo da coisa que a gente aprende na prática.
No curso, entre outras coisas, aprendemos a lidar com os diferentes graus de afogamento: antes do grau 1, tem o grau zero, que apelidamos de grau do afobado – é o cara que entra na água, toma aquela primeira agüinha no nariz e “Ahhhhh!…”, já começa a gritar e espernear.
Grau 1 é a pessoa que entra no mar, aspira a água muito rápido, fica cansada, apavorada, ocorre um leve comprometimento, mas não é grave. No grau 2, ela aspirou um pouco mais de água, já começou a tossir porque entrou água no pulmão, ou então já engoliu muita água e tem vontade de vomitar. Desses afogamentos mais leves tratamos na praia mesmo, e depois liberamos.
No grau 3, a pessoa aspira muita água pela boca e pelo nariz, e já não consegue respirar direito. O excesso de água vai para a barriga, que fica inchada; vômitos e sangramento do nariz podem ocorrer, acompanhados de tosse e dificuldade para respirar. Nestes casos, os movimentos de natação ficam prejudicados, a pessoa perde a visualização e o sentido de direção. A vítima começa a perder a cor e a tensão acentua a taquicardia.
No grau 4, o sintoma mais visível é a quantidade de espuma saindo pela boca do afogado. Com o pulmão alagado, a pessoa está desacordada, em estado grave, muito mal. No grau 5, a pulsação da vítima já é muito fraca, quase inexistente; sua respiração está comprometidíssima e a midríase – dilatação da pupila sem retração à exposição na luz – começa a aparecer. Há, também, falta de oxigenação no cérebro. O grau 6 é o que chamamos de morte aparente: a pessoa já não apresenta os sinais vitais, a pele tornou-se fria e arrepiada, sem reação a qualquer estímulo. Um guarda-vidas não pode atestar a morte, fazemos apenas o socorro imediato e passamos o caso para um médico. Cabe a ele tentar reavivar o paciente com um desfibrilador. Todo Centro de Recuperação de Afogados ligado aos grupamentos tem um médico e um enfermeiro de plantão. Eles são acionados por rádio.
É um sufoco avaliar o grau de um afogado depois de já ter feito dez ou vinte socorros num mesmo dia: corre-corre, praia lotada, você acode um daqui, tira o outro dali, enquanto alguém já está gritando do outro lado: “Mais um socorro ali…” O código para chamar um helicóptero é tirar a camiseta e começar a girá-la sobre a cabeça, como se fosse o movimento da hélice. O pessoal do posto, então, aciona o chamado.
TERÇA-FEIRA – Em casa eu faço tudo: faxina, supermercado, pago as contas, cozinho. Costumo acordar cedo mesmo na folga, porque sempre tem coisas pra consertar. Ganho uns 2.200 reais por mês, juntando os dois empregos – dou aula noturna de educação física numa escola do estado, em Cordovil, três vezes por semana. Lá eu ganho uns 500 reais e o resto vem do salário de bombeiro. Sou eu que banco tudo em casa e ainda pago pensão para as minhas duas filhas menores, do segundo casamento. As mais velhas, que moram comigo, gastam tudo o que ganham só em sapato, bolsa, roupa e cabelo.
No fim da tarde, fui para a academia malhar porque para mim isso é sagrado. Eu malho dia sim, dia não, três vezes por semana.
QUARTA-FEIRA – O que dá mais trabalho não é socorrer gente afogada, mas dar atenção a tudo que acontece em volta. É cachorro na praia, é o cara soltando pipa, é o molinete de pesca fora de hora. A linha da pipa pode cortar o pescoço de alguém, a vara de pesca e o frescobol podem machucar uma criança, mas ninguém se liga. E dá muito trabalho ficar chamando a atenção dos marmanjos. Eu fico o dia todo: “Pi, piiii, pi…”, “Não pode isso, não pode aquilo”. Na minha área, eu boto ordem, proíbo tudo que pode dar confusão. Os barraqueiros ficam danados comigo porque eu proíbo usar bujão de gás na areia. Se tem prancha muito perto da beirada da água, vou lá no surfista e “Pi, piiii, pi…Irmão, pega onda lá no canto, mais para dentro do mar”. Toda hora tem gente machucada por causa de prancha.
Em caso de ocorrência de socorro, temos que anotar no relatório do dia. Só que muitas pessoas não querem que o nome conste de nenhum registro – ficam com vergonha de falar que se afogaram. Alegam que deu câimbra.
Nós, os guarda-vidas, somos o braço da autoridade do Estado na areia da praia, e por isso acabamos batendo de frente com os banhistas. Quando a gente proíbe alguma coisa, a primeira pergunta que fazem é: “Quem mandou?” Ninguém quer cumprir as regras. Tem gente que vem a menos de 200 metros da praia de barco, lancha ou jet-ski, o que é proibido. Quando eu apito, o faltoso sempre pergunta: “Quem é você?” Sabe o que eu respondo? “Eu sou O CARA.” Então querem falar com meu superior.
Todo posto tem aquelas tabuletas com o regulamento do que é proibido na praia: raquete, frescobol etc., mas ninguém obedece. Por outro lado, quem é que vai proibir essas coisas no posto 10, em Ipanema? Ali só tem rico, os influentes da sociedade, e fica impossível proibir qualquer coisa. Esse povo de televisão aí, intelectual e doutor, fica aparecendo na tevê com discurso a favor da natureza, pelo bem-estar da sociedade, da ecologia, salvem as baleias e tal. Mas quando chega à praia, joga frescobol, joga lixo, leva pit bull sem focinheira, deixa cachorro fazer cocô na areia, não está nem aí. “Ai, a natureza, a ecologia…”, pomba nenhuma, vai lá ver a lambança que eles fazem na praia. Alguém lá de Belford Roxo vai trazer seu cachorro de ônibus para passear na praia de Copacabana ou Ipanema? Claro que não. Quem traz é o morador da Zona Sul, que mora ali perto. Quem traz pit bull é o bacana de Ipanema. Quem faz merda em Copacabana não é o pobre. Não somos nós do subúrbio. Os prédios de Copacabana não têm central de tratamento de esgoto, então o esgoto que vem para o mar não é dos suburbanos, é de quem mora nos prédios dali mesmo, o doutor, o ambientalista.
QUINTA-FEIRA – Hoje acordei mais tarde, toquei um pouquinho da obra da varanda e depois fui pagar as contas de luz e telefone. Dá uma tristeza: cheguei com meu salário todo e não sobrou quase nada, mesmo sem ter feito as compras de casa. E a conta da Net nem chegou – são 119 contos, caríssimo. Mas para mim tevê a cabo vale a pena, não agüento essas novelas.
SEXTA-FEIRA – Entre nós, guarda-vidas, e o pessoal dos bombeiros, que fazem extinção de incêndio, sempre tem zoação. Eles brincam que o nosso serviço é mole, chamam a gente de “Turma da Xuxa”, acham que é fácil salvar afogado. Mas prefiro ser “Turma da Xuxa” a ser “C… de Fogo”. Eles têm que trabalhar de coturno e capacete, e a gente trabalha de regata e de sunga. Damos um duro danado, e eles acham que é só festa.
Às vezes, mesmo com o mar muito baixo, na canela, alguém se afoga. Pode ter tido um ataque cardíaco, e acaba morrendo na água. Isso não significa que houve negligência por parte do pessoal do posto de salvamento. Eu mesmo já respondi a vários processos, movidos por pessoas que alegaram que o guarda-vidas não estava no posto. Há famílias que criticam o tipo de atendimento dado na hora do socorro. Lembro o caso de uma mulher que queria que eu fizesse respiração boca a boca no marido, que tinha se afogado, mas estava respirando. Só que se eu tivesse feito o que ela pedia, poderia ter matado o cara. O leigo sempre acha que você tem que fazer a respiração boca a boca porque ele viu a cena no cinema. No caso, o marido tinha desmaiado de estresse e os procedimentos corretos eram outros.
SÁBADO – Acordei e fui comprar cimento e areia. Depois fui botar a mão na massa, ou seja, tocar a obra, porque ainda falta colocar as telhas da varanda. Minha filha Huli fez o almoço: macarrão com carne moída e queijinho ralado por cima. O Nixon me ajudou nesse dia, ele saca mais de construção. Estamos fazendo no peito e na marra. Trabalhamos até umas seis da tarde, depois fomos para um botequim perto de casa. Comi asinha de galinha na brasa com cerveja. Meus amigos ainda iam para um pagode depois, mas eu não fui, estava cansado. Dormi cedo.
SEGUNDA-FEIRA – Acordei às 8h e o Nixon já estava lá em casa para ajudar na obra. Falta a pintura, faltam as portas; o piso já tem, a cozinha e o banheiro já dá para usar. Preciso terminar a varanda, passar um liso no chão, cobrir o cimento com resina, ou botar um piso mesmo. Já emagreci uns 3 quilos com essa obra. Fazemos tudo sozinhos, o Nixon e eu, inclusive a parte hidráulica e elétrica, e nada estourou até agora. Mas as madeiras da varanda já estiveram fora de prumo e tivemos que cortar e nivelar a madeira de novo. Tem dias que eu chuto o balde, e vamos à praia tomar cerveja, fazer uma costelinha na churrasqueira. Não fico na paranóia. Eu tinha um Del Rey 87, a gás, que vendi pro Nixon para poder comprar material de construção. Quando mudamos para cá, a inauguração foi no dia 2 de dezembro, aniversário da minha filha Cássia. Começamos com um churrasco, às dez da manhã, que durou o dia inteiro e foi até as dez da noite. Decidi mudar com a casa incompleta mesmo, porque toda obra fica pronta mais rápido quando a gente está morando nela.
TERÇA-FEIRA – Nadei tanto no mar hoje, que no meio da tarde me deu um sono danado. A praia estava tão tranqüila e vazia, que eu tive que lavar o rosto para não dormir no posto. Na volta do trabalho, parei na Praça Seca, encontrei uma galera, conversei com um e outro e depois fui para casa. Agora que eu tenho tevê a cabo, adoro assistir aos canais de filme e documentário.
SÁBADO – Fui transferido para o 4º Grupamento Marítimo (Niterói). Pedi para ir para Itaipu, onde se vê o pôr-do-sol mais bonito do Rio, não esquecendo o de Guaratiba, é claro. Partindo do posto Itaipu, basta atravessar um canal e você já está em Camboinhas, considerada a praia das mulheres mais bonitas do Rio.
SEGUNDA-FEIRA – No meu primeiro dia no 4º GMar, fui escalado para o piscinão de São Gonçalo. Mas como ele não abre às segundas, dia de limpeza e cloração da água, aproveitei para dar continuidade às obras em casa. Consegui abrir um crediário para comprar um fogão de quatro bocas e uma cafeteira. À tarde levei minhas filhas menores, Isadora e Maria Julia, para passear. Fomos ao shopping e tomamos sorvete.
Quem freqüenta o piscinão são pessoas do bairro, cordiais com o sistema de segurança. Incrível como elas colaboram com a limpeza e a conservação de todo o parque. Temos pista de ciclismo, pista de caminhada, quadra de vôlei e área com equipamentos de ginástica, onde gosto de me exercitar.
Nunca me imaginei trabalhando num piscinão, por preferir a agitação dos postos de praia. Mas pouco importa. Digo sempre que ser guarda-vidas é o melhor serviço do mundo. E adoro o nosso lema: “A qualquer hora, em qualquer tempo, com qualquer mar”.
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