ILUSTRAÇÃO_ ANDRÉS SANDOVAL_2008
A queda do sanitarista
Tem horas que é melhor um busto calado do que um ministro falando
Marcos Sá Corrêa e Vladimir Cunha | Edição 17, Fevereiro 2008
Quem costuma passar pela praça Batista Campos, em Belém, estranhou quando o viu pela primeira vez, com a cabeleira ondulada, o bigode hirsuto e o ar de importância que convém a uma estátua. Aquilo estava errado. Não era para ele estar ali. Materializara-se literalmente da noite para o dia. O busto de concreto se encarapitava numa pedra na frente do banheiro público.
Daí para se enturmar na informalidade da praça, foi um pulo. Os flanelinhas do estacionamento, sem perguntar quem seria o retratado ou o que viera fazer entre a porta das mulheres e a dos homens, trataram de enfeitá-lo com flores murchas e arranjos de palha. Os turistas tiraram fotografias a seu lado. Os gaiatos puseram apelidos no desconhecido. Os boateiros de praxe inventaram história, atribuindo sua presença a um despacho para o Exu Tranca-Rua. E os palpiteiros acharam que ele era a cara do maestro Carlos Gomes, que fez carreira no Scala de Milão sob o patrocínio do imperador Pedro II e morreu em Belém como diretor do Conservatório de Música.
Não era Carlos Gomes, e o busto provavelmente continuaria ali até hoje, como um monumento ao ilustre desconhecido, se repórteres de TV não apurassem que ele tinha vindo da praça Amazonas, na Cidade Velha, trazido por uma dupla de guardas municipais que durante a ronda o encontrou derrubado no chão, como um Lênin qualquer. Em vez de entregá-lo à prefeitura, os dois preferiram transferi-lo por conta própria para a Batista Campos, que tem vigilância 24 horas por dia. Com todo o respeito, botaram-no na entrada do banheiro justamente por ser o lugar mais seguro. E, se o instalaram numa pedra, foi apenas porque não dá para sair por aí empurrando pedestais.
O telejornal do meio-dia acabou com seu anonimato. Ele foi reconhecido como o busto do médico Oswaldo Cruz e, segundo o comandante da Guarda Municipal, Pio Neto, transferido provisoriamente “numa operação normal” de erradicação do vandalismo. Com isso, o sanitarista reencarnou no noticiário paraense noventa anos depois de sua morte, no mesmo momento em que os brasileiros voltam a falar de febre amarela como assunto na ordem do dia. Um golpe proposital de publicidade dificilmente teria sido mais preciso.
Antes de desembarcar incógnito na Batista Campos, Oswaldo Cruz não circulava nem naquela nem em outras praças desde que o Banco Central recolheu as notas de 50 mil cruzeiros com sua efígie. E ele não parece, à primeira vista, uma celebridade local. Nasceu no interior de São Paulo, fez fama no Rio de Janeiro, no começo do século passado, e morreu em 1917, como prefeito de Petrópolis.
Se o mosquito não estivesse de volta neste verão como o zumbido político da vez, Belém teria tudo para esquecer que, em 1911, Oswaldo Cruz derrubou a zero, da noite para o dia, as estatísticas de óbito por febre amarela na cidade. Isso num tempo em que ainda nem existia a vacina. A doença matara mais de 31 mil pessoas em Belém nos sete anos que precederam a chegada de Oswaldo Cruz, que foi contratado pelo governador paraense João Coelho para assumir na cidade, como diziam os chargistas da época, o posto de “Czar dos Mosquitos”.
Ele havia perdido o cargo de diretor de Saúde Pública no Rio de Janeiro. Levava cicatrizes políticas da Revolta da Vacina, que arrancara os postes de iluminação pública, os trilhos de bondes e seus plenos poderes para higienizar a capital da República. Não inventou a vacina contra a febre amarela. O que tentou inventar foi a aplicação das leis ao pé da letra, incluídas aí a vistoria de residências e a vacinação obrigatória, no caso, contra a varíola. Isso os cariocas não admitiram.
O sanitarista chegou ao Pará em grande estilo, levando mais de setenta ajudantes, 2 mil caixas de querosene, 6 toneladas de creolina e enxofre à vontade para as fumigações. Ouviram-se palavras exaltadas: “Salvador da pátria”, “genio scientifico” pronto para tirar “da goela do monstro” a “princesa encantada, a dormir entre as selvas”. (Como a prosa é ornada, explique-se: a “princesa” era Belém.)
Dito e feito. Em um único semestre, os casos de contágio baixaram de 96 para um por mês. E as mortes acabaram. O melhor é que, ao contrário do que ocorrera no Rio, no Pará tudo aconteceu sem quebra-quebra. Escolado pela revolta carioca de 1904, Oswaldo Cruz entrou de leve em Belém, explicando detalhadamente à opinião pública tudo o que a vigilância médica pretendia fazer. Foi assim que se tornou um busto na cidade.
Trocá-lo de praça não afeta o sentido da homenagem póstuma. Foi a praça Batista Campos que inaugurou em Belém a era das obras públicas de motivação higiênica. Ela foi reformada no ano em que a Companhia de Operetas, Mágicas e Revistas montou no Teatro Polytheama a peça A Bubônica, prenúncio da faxina profilática que Belém, conhecida como a “Paris dos Trópicos”, teria pela frente. Nem servir de enfeite a um banheiro público mancha o currículo do sanitarista, que combateu no Rio de Janeiro o vício de “urinar fora dos mictórios”.
Incoerente mesmo foi o monumento, via telejornal, ter ressuscitado Oswaldo Cruz bem na hora em que as autoridades sanitárias faziam campanha no país contra a vacinação pública. A quem se assustasse com a possibilidade de se sentir fraquinho e enjoado, recomendava-se não correr a um posto de saúde. “Não há surto”, diziam os sábios do governo – e nem vacina. Àquela altura, a doença já havia feito oito vítimas. Na falta de outra coisa, melhor acender uma vela para o busto.
Marcos Sá Corrêa é jornalista. Foi editor de piauí entre 2006 e 2011.