"Fui o primeiro a ser chamado a comparecer diante do juiz, graças à minha linda e loura advogada. Me despedi do meu Ensanguentado" FOTO: ACERVO PESSOAL
Bem-vindo à América
Syed Abbas Raza emigrou para os EUA ainda jovem e se formou em filosofia. Mantém relações no mínimo ciclotímicas com sua pátria de adoção o que o levou a narrar suas desventuras em solo americano. Hoje, edita um website voltado para questões intelectuais, o 3QUARKSDAILY.COM, e prefere viver nos alpes italianos com a mulher e o gato
S. Abbas Raza | Edição 18, Março 2008
2002_ Eu voltava do Paquistão e estava na fila da imigração no aeroporto JFK, de Nova York, completamente exausto depois de um vôo de vinte horas. Ao chegar a minha vez, o agente olhou os
meus documentos, digitou alguma coisa no computador e pediu que o acompanhasse até uma sala ao lado. Fui informado de que estava sendo detido. Dois agentes me algemaram e me levaram para uma sala menor. Perguntei o que tinha feito e ouvi respostas do tipo: “O senhor sabe muito bem o que fez. Sabemos quem o senhor é”.
– E quem sou eu? O que eu fiz?
– O senhor devia saber melhor do que nós, não acha?
Foi quando os meus joelhos começaram a tremer. Tinha ouvido muitas histórias sobre paquistaneses que passavam meses presos sem acusação devido às novas leis de segurança, o chamado Patriot Act. Imagens de Guantánamo começaram a passar pela minha cabeça: o medo foi tanto que quase desmaiei com a descarga de adrenalina. Achei que devia estar sendo confundido com outra pessoa, sabe Deus quem, e que não teria qualquer oportunidade de limpar meu nome.
Passei várias horas encharcado de suor, sentado numa sala, antes que dois funcionários do Serviço de Imigração surgissem, acompanhados de dois agentes do Departamento de Polícia de Nova York. Os policiais disseram que tinham um mandado de prisão contra mim, o que me pareceu um grande alívio, pois qualquer que fosse a questão em pauta era muito melhor ser preso pela polícia de Nova York do que ser levado para algum setor do Serviço de Imigração. Com a polícia de Nova York, eu achava ser capaz de esclarecer qualquer pendência.
Mas as coisas começaram a ficar estranhas: os policiais me chamavam de Edward Sampson, e me diziam: “Vamos andando, Sampson”. Quando protestei, dizendo que não era Edward Sampson – quem quer que ele fosse – , responderam que as impressões digitais não mentem, e que os meus dez dedos correspondiam perfeitamente aos de Edward Sampson, fugitivo procurado pela polícia. Disseram que eu parasse de mentir e admitisse logo que era Edward Sampson. O nome me soava vagamente familiar, mas, naquele estado de exaustão, não consegui lembrar quem era.
Os agentes do Serviço de Imigração retiraram as minhas algemas, e os policiais as substituíram pelas suas. Fui conduzido para o clássico desfile do criminoso na frente dos outros passageiros, passando pela saída normal, onde as pessoas ficam à espera dos amigos e parentes. Houve uma troca de sussurros nervosos quando me viram sair com um policial segurando cada braço, algemado e vestindo o belo terno que mandara fazer no Paquistão.
Foi então que lembrei quem era Edward Sampson. A memória me voltou de estalo. Uns dez anos antes, meu sobrinho e eu estávamos tomando um trago no bar e restaurante West End (que costumava ser freqüentado por Jack Kerouac e Allen Ginsberg), perto da Universidade Columbia (onde eu tinha acabado de começar o meu doutorado em filosofia), quando quatro sujeitos de aparência rude entraram. Pareciam skinheads, e sentaram-se na mesa atrás de onde estávamos, no balcão do bar. Como o meu sobrinho tinha deixado o paletó nas costas da cadeira onde um dos sujeitos se sentou, ele bateu no ombro dele para poder pegar o seu capote. Vi o sujeito se levantar e começar a encarar meu sobrinho, mas não escutei o que foi dito. Aí o homem levantou a voz e ouvi que usava a chamada n-word (nigger, crioulo) para ofender o garoto. Depois, agarrou-o pelos cabelos com a mão esquerda e recuou o punho direito, preparando-se para desferir-lhe um murro.
Eu o acertei primeiro. Saltei do banco, e o meu impulso derrubou nós dois no chão. Àquela altura, eu ainda não sabia, mas estava atracado com Edward Sampson, e rolávamos pelo chão do West End.
Os seguranças da casa nos separaram e fomos postos para fora do restaurante, todos os seis. Assim que nos vimos na rua, os outros quatro se juntaram para me atacar, conseguiram me atirar no chão, e bati com a cabeça na calçada. Fiquei tonto, e depois disso não pude mais fazer nada. O senhor Sampson me maltratou com vontade. Com a chegada da polícia, Sampson e seus amigos escaparam de fininho. Expliquei aos policiais que o meu sobrinho tinha sido atacado, que eu havia tentado protegê-lo e também fora surrado, e que os agressores estavam fugindo. Os policiais me disseram que, se eu insistisse em fazê-los prender os sujeitos, eles precisariam prender também a mim e ao meu sobrinho, pois não estavam presentes para ver quem tinha começado a briga. Achei que mais tarde conseguiríamos explicar tudo no tribunal. E assim, os quatro foram presos e nós seis fomos conduzidos a uma delegacia, onde nos fotografaram, tiraram as nossas impressões digitais etc., antes de sermos soltos sob fiança.
Depois que o promotor público ouviu a história, as acusações contra mim e o meu sobrinho foram retiradas, e foi decidido que Sampson e seus amigos seriam processados com base na lei contra o racismo do estado de Nova York. Fiquei satisfeito e achei que tinha sido correto insistir com os policiais para que prendessem todo mundo, em vez de deixarem aqueles sujeitos escapar. Só que eles não compareceram à audiência, e nunca mais se ouviu falar neles.
Quando os agentes da polícia de Nova York me fizeram entrar na traseira da camionete que nos aguardava à entrada do aeroporto, eu já calculara o que devia ter acontecido. De algum modo, naquela noite de dez anos atrás, alguém na delegacia tinha cometido um erro burocrático e registrado os dados de Sampson no cartão com as minhas digitais. Como ele não compareceu à audiência, um mandado de prisão foi expedido contra Edward Sampson. E agora eu estava sendo preso como se fosse ele. Era a única explicação plausível. Animado, comuniquei os fatos aos policiais, mas eles não se mostraram muito impressionados. Um deles chegou a comentar que as pessoas sempre contavam histórias malucas quando eram presas, e que a minha era a melhor que já tinha ouvido. Ainda pedi que olhasse para mim. Será que alguém com a minha cara podia ter o nome de Edward Sampson?
Continuei a repetir a minha teoria até que um deles, o detetive John Regan, do Esquadrão de Capturas do distrito de Queens, finalmente me deu alguma atenção. Comentou com o parceiro da viatura: “Olha, parece loucura, mas pode ser verdade. Enquanto vocês vão ver o juiz, vou tentar encontrar os registros dessa prisão de dez anos atrás”. Eles estavam me levando a um tribunal em Manhattan, onde eu seria apresentado diante de um juiz, e precisávamos chegar lá antes da meia-noite, que já se aproximava, caso contrário eu teria de passar a noite esperando numa cela.
Indicaram-me um defensor público, um idiota completo. Dizia o tempo todo que eu devia pegar apenas algum tempo de serviço comunitário, ficando livre da cadeia. Por mais que eu insistisse, recusava-se a acreditar que eu não fosse Edward Sampson. Enquanto isso, o policial Regan apareceu com uma pasta contendo os registros da prisão da década anterior, com uma fotografia do verdadeiro Edward Sampson. Ainda assim, o meu suposto advogado continuava a dizer coisas como: “Podia ser você, dez anos atrás”. Por fim, a própria juíza perdeu a paciência e o interrompeu, aos gritos: “É pouco provável que o seu cliente tenha mudado de raça depois de ter sido preso”. Fui informado de que estava livre. Em seguida, fui conduzido de volta ao aeroporto, onde fui solto.
Algumas semanas mais tarde, o detetive Regan me telefonou para dizer que Edward Sampson tinha se suicidado em 1996, pulando da janela do seu apartamento no 5º andar.
2006_Foi no dia seguinte à festa anual do website que dirijo. Contratamos uma orquestra de dezoito músicos para tocar na comemoração, e eu precisei alugar um monte de microfones, monitores, estantes e outros trecos, que agora tinha de devolver. Acordei me sentindo pesado (a festa tinha sido muito boa), e quase não tive tempo de chegar à casa do meu sobrinho, de quem peguei emprestado um Jeep Grand Cherokee. Ainda precisava apanhar um amigo que, num momento de generosidade irrefletida, concordara em ir até Queens, onde tínhamos dado a festa, recolher o equipamento e depois voltar ao centro de Manhattan, para devolver o lote antes que a loja fechasse. Eu e o meu amigo botamos a tralha toda no carro e entramos em Manhattan pela ponte da rua 59. Dobrei à esquerda na avenida Lexington, a partir da rua 60 (ambas vias de mão única), atrás de vários outros carros que viraram igualmente à esquerda. Vi que estávamos todos sendo intimados a parar por um policial de cabelos arruivados. Eram umas 4h15, nem meu amigo, nem eu tínhamos comido nada desde a noite da véspera, e o equipamento de som precisava ser devolvido até as cinco. De maneira que não ficamos muito satisfeitos com a parada obrigatória.
Conversamos um pouco enquanto esperávamos o policial percorrer a sua infeliz caravana de criminosos inadvertidos. Finalmente chegou a minha vez:
– Carteira e registro do carro.
– O que foi que eu fiz?
– Posso ver a sua carteira e os papéis do carro?
Depois da costumeira procura em meio a recibos de tinturaria, o relatório de um dentista e alguns mapas mal dobrados que amarelavam no porta-luvas (o carro nem era meu), para minha surpresa encontrei um registro válido do estado de Nova York. Entreguei o registro e a minha carteira ao Ruivo, e ele desapareceu por um tempo na sua motoneta fechada da polícia. (Será que se pode imaginar um veículo policial que confira menos dignidade e autoridade aos seus ocupantes?) Enquanto isso, meu amigo me contava que, por motivo de economia (e por transportarem um único passageiro), essas motonetas fechadas eram originalmente projetadas e construídas com a porta de um lado só. Mas logo descobriram o erro do projeto, quando os criativos malfeitores de Nova York adquiriram, em pouco tempo, o hábito de virar a caranguejola (ela tem três rodas, é pequena e instável), e fazê-la tombar sobre o lado onde ficava a porta, prendendo o policial no seu interior e deixando-o tão incapacitado quanto uma tartaruga de pernas para o ar. Em seguida falamos com grande ansiedade dos hambúrgueres do Abbey Pub, e da libação que planejávamos para pôr fim à nossa ressaca assim que levássemos a cabo a tarefa interrompida.
– Queira sair do veículo e pôr as mãos atrás das costas – disse o Ruivo.
Enquanto eu desprendia o cinto de segurança, disse ao meu amigo: “Isso sempre acontece comigo. Por favor, telefone para a minha mulher e peça que ela ligue para a minha advogada. E entregue o equipamento antes das cinco, por favor”. Amigo: “Mas a minha carteira de motorista está vencida”. Ruivo: “O senhor foi parado por virar à esquerda num local proibido. A placa diz claramente que é proibido virar à esquerda entre quatro e seis da tarde, e o senhor está sendo preso porque a sua carteira de motorista está suspensa”.
– E por que a minha carteira está suspensa?
– O senhor deixou de pagar uma multa por excesso de velocidade na Flórida, cinco anos atrás.
– E a carteira está suspensa desde então?
– Sim, senhor.
Estalido das algemas, seguido de um pedido fútil:
– Mas eu não posso pagar uma multa, ou coisa assim?
– Não, senhor. Estamos empenhados em acabar com esse problema das carteiras de motorista suspensas, e o senhor precisa ser levado para a delegacia. Com alguma sorte, vai ver o juiz ainda hoje à noite e acaba solto.
Ruivo para o meu amigo: “O senhor pode dirigir o veículo?” O imbecil do meu amigo: “A minha carteira está vencida”. Ruivo, com simpatia, fingindo não ter ouvido: “Ótimo, então o senhor pode ir”.
Meu amigo foi embora, enquanto eu era levado até um carro de polícia e conduzido ao 19º Distrito. Lá, me revistaram, e tudo que havia nos meus bolsos foi catalogado e confiscado, juntamente com o meu cinto e os cordões dos meus sapatos. Em seguida tive as impressões digitais tiradas e fui fotografado.
Atenção, aqui só os verdadeiramente hiper-hidróticos vão compreender por que eu temia tanto esse momento. A hiper-hidrose é uma condição médica real, em que as palmas das mãos e as pontas dos dedos suam profusamente o tempo todo. (Talvez vocês se lembrem da reação de nojo que já tiveram ao apertar a mão fria e úmida de alguém.) De qualquer maneira, eu sofro de hiper-hidrose. Por isso, é quase impossível tirar as minhas impressões digitais. Os carimbos produzidos pelos meus dedos, cujas pontas estão todo o tempo enrugadas como passas, são quase sempre manchas com depressões e vales profundos, em vez do desenho normal com as volutas e espirais dos sulcos rasos, mesmo que eu enxugue bem as mãos antes de tirar as impressões. Assim, atravessamos uma hora de comédia com erros sucessivos de impressões digitais, antes que finalmente pudessem tirar a minha foto, e me trancar numa cela com seis outras pessoas.
Para minha agradável surpresa, só havia um doido entre os companheiros de cela, e felizmente ele limitava a manifestação da sua loucura a uma torrente de murmúrios constantes, falando do Senhor. Na verdade, aquela litania tinha até um efeito calmante. Logo me acostumei ao ataque inicialmente emético do seu cheiro. O resto da companhia multicor dormia, ou tentava dormir, em várias posições. É o modo mais comum de passar o tempo numa cela. A essa altura, eram mais ou menos sete da noite, e fazia 24 horas que eu não comia nada. Perguntei se podia dar um telefonema e conseguir alguma coisa para comer. Responderam que não tinham comida, e que mais tarde me deixariam dar o meu telefonema.
Quando finalmente me tiraram da cela para telefonar, liguei para a minha advogada:
– Por favor, ligue para a minha mulher e diga onde estou, e me tire logo daqui!
– Vou tentar, mas acho que hoje você não sai. Já é tarde. Vou chegar aí de manhã, na abertura do expediente do tribunal. Não se preocupe, vai dar tudo certo.
Fiquei muito desanimado com essas palavras. Estava em péssima forma. Precisava comer. E tomar uma bebida para melhorar a minha ressaca. Ou três. Mas tentei me comportar como um homem, e pedi à advogada para fazer o que pudesse. Depois me sentei na cela e procurei fingir que dormia, como os outros. Por volta das 11 horas, ouvi o som muito bem-vindo do meu nome sendo mal pronunciado. Ainda achava que havia uma chance de ser levado ao fórum, mas estava sendo otimista: fui algemado, posto num carro e transportado para o 27º Distrito (que por acaso fica bem perto da minha casa). Os dois policiais do carro, um homem e uma mulher, foram conversando comigo no caminho, e me contaram que todos os criminosos presos em Manhattan depois do anoitecer passavam a noite naquela delegacia antes de serem transportados para o tribunal, no sul da cidade, para a pronúncia pela manhã.
Lá estava eu, então, em torno da meia-noite, de pé e acorrentado à parede junto a um bando de outros prisioneiros, a cabeça latejando de dor e com a impressão de que iria desmaiar se não comesse alguma coisa. Logo a situação piorou ainda mais. Fui novamente revistado, e em seguida conduzido até um corredor ladeado por várias celas de 2 por 2,5 metros. Cada cela tinha num canto um catre de metal de uns 60 centímetros de largura
e talvez uns 2 metros de comprimento, e no outro canto uma pequena pia e uma privada. Eram arrumadas e funcionais, embora imundas, e a minha não seria assustadora, não fosse pelos grafites de uma violência absolutamente psicótica, rabiscados em todas as superfícies disponíveis. Por sorte, a cela em que fui colocado estava vazia.
Achei melhor tentar dormir. Usei meus sapatos como travesseiro, pensando que, por mais sujos que estivessem, ainda deviam estar mais limpos do que o meu catre. Mas não consegui dormir. Havia prisioneiros demais conversando aos gritos de uma cela para outra, e mais presos não paravam de chegar. Identifiquei-me com vários criminosos violentos que tinham composto as inscrições das paredes do meu novo quarto, admirando a qualidade literária das suas reflexões esquizofrênicas. Perguntei-me quem poderia me caber como companheiro de cela, e decidi que iria ter um comportamento rude, procurando intimidá-lo desde o começo (tenho uma voz grave e forte a que às vezes recorro com um efeito assustador), se e quando outro preso fosse posto na minha cela.
No entanto, o homem que foi deixado na minha companhia, mais ou menos uma hora depois, era um sujeito de mais de 1,90 metro e 110 quilos, vestindo um moletom Marc Ecko e tênis branco, tudo coberto de sangue seco porque algumas horas antes, ainda naquela noite, ele tinha esfaqueado “um nego mexicano durante um assalto”, conforme seu próprio relato. Entrou e, sem qualquer cerimônia, empurrou as minhas pernas para fora do catre. Eu sabia que era a hora certa de responder com dureza, mas naquele momento eu estava tão concentrado em não urinar nas minhas calças sem cinto, que ameaçavam cair o tempo todo, que não me ocorreu coisa nenhuma a dizer.
A situação ainda piorou. Ele me olhou com desprezo, perguntando por que eu estava preso, e quando tentei dar-lhe uma resposta vaga (pois não queria admitir aquela viadagem de carteira de motorista suspensa), para meu horror e espanto, o nervosismo fez minha voz rachar, e respondi alguma coisa incompreensível, num falsete mais agudo que um Bee Gee. É claro, o meu amigo se divertiu muitíssimo com aquilo e, por piedade, acho eu, e bom humor, garantiu que não ia me fazer mal. Percebi que uma coisa é berrar com a minha gata em casa e deixá-la apavorada, ou mesmo em resposta a algum percalço burocrático no balcão de uma locadora de carros, e coisa muito diferente é tentar intimidar alguém que ainda estava coberto com o sangue da vítima da sua última tentativa de homicídio, e parecia capaz de me partir ao meio com uma pancada do boné que usava de lado. Foi então que eu jurei que, caso chegasse ao fim daquela noite num estado que pudesse ser descrito como inteiro, por maior que pudesse ser a tentação, nunca mais faria nada que tivesse a mais ínfima chance de me fazer parar numa prisão de verdade onde, agora eu sabia com toda a certeza, só conseguiria durar uns três nanossegundos.
Embora o Ensangüentado estivesse em condicional, e diante da possibilidade de cumprir algo como quatro anos em Attica, ele não me parecia especialmente abalado. Numa situação em que eu estaria querendo me matar, em face da idéia de perder quatro anos da minha vida, ele parecia animado e conseguia até rir da sua situação. De fato, depois de me perguntar se eu já tinha estado alguma vez no norte do estado (queria dizer, em Attica), e receber uma resposta negativa, ele me disse: “Lá é bom. Grama verde e o cacete”. Era quase como se estivesse me convidando a ir para Attica com ele, depois de arrumar um nego mexicano para eu esfaquear também. A única vez que manifestou algum arrependimento foi quando, com uma expressão triste e infantil, me contou que a sua Mamãe ia ficar muito chateada. Fiquei sabendo que o nosso quase–assassino tinha 22 anos e já passara três deles na prisão. Depois de esfaquear o mexicano junto com o seu primo, os dois decidiram fumar um baseado e foram flagrados pela polícia numa esquina ali perto, onde foram apontados, do banco de trás do carro de polícia, pelo mexicano que ainda sangrava.
Compilei a maior parte dessas informações a partir da animada conversa entre o Ensangüentado e o Primo, que estava preso na cela ao lado da nossa. Depois de mais ou menos uma hora, Ensangüentado e Primo finalmente esgotaram o assunto e foi então que uma voz se levantou no vazio: “Meu filho, hoje eu estou limpo, mas já fui novo como vocês. Roubei bastante, e posso dizer que vocês estão fazendo tudo errado”. Era uma voz mais velha, pausada e racional. Pertencia a um homem preso em outra cela, que acabei batizando de Professor da Universidade do Crime.
O Professor decidiu ensinar a Ensangüentado e Primo como eles deviam ter cometido o roubo frustrado, com todos os pormenores. Os conselhos eram brilhantes e continham verdadeiras jóias tais como: “Meu filho, você devia ter alugado uns vídeos, comprado umas comidinhas e um bagulho, e guardado tudo antes no quarto. Assim, podia ter passado uns três dias fora de circulação”. Fiquei fascinado com esses conselhos da voz da experiência, e imaginei o Professor como Malcolm X representado por Denzel Washington, só que mais velho, sentado na cela de terno e gravata, de chapéu e óculos professorais, velho demais para a vida das ruas, mas ainda orgulhoso do seu passado.
Às três da manhã, mandaram-nos sair e nos instruíram a ficar de pé diante das nossas celas. A partir de então, começando pelo fundo do corredor, dois policiais vieram algemando todo mundo e prendendo correntes aos nossos pés. Éramos 21 presos àquelas correntes, como se fôssemos preparados para trabalhos forçados. Em seguida, nos fizeram marchar pelo corredor até o estacionamento, onde um ônibus branco sem janelas estava parado na escuridão. Dentro do veículo havia um banco de metal, que corria pelas duas laterais e pela parede interna que nos separava do motorista, no qual os prisioneiros conseguiram se acomodar formando um U. Eu estava numa das laterais, preso ao Ensagüentado, à direita, e ao Primo, à esquerda. O ônibus enveredou pela West Side Highway, tomou o rumo sul em alta velocidade, e nós saltávamos nervosos no banco. Ensangüentado observou, com animação: “Vão matar a gente”. Bem à minha frente, estava sentado um homem bastante alto e magro, e muito bem-apessoado, usando um traje social impecável: um macacão Adidas azul de corredor e tênis branco imaculado. De repente, olhando para o Ensangüentado, ele falou: “Meu filho, ia ser bom mesmo se esse ônibus virasse. Todo mundo aqui ia poder processar a cidade e ficar rico”.
Era o Professor. Ele continuava a inspirar deferência e até admiração no Ensangüentado, no Primo e, claro, em mim. Fiquei sabendo que ele também fora parar ali por causa de uma carteira de motorista suspensa, mas estava conformado com a sua sorte. A vida é assim mesmo, disse ele. O que o Professor tinha de mais estranho, porém, era que de vez em quando, e de maneira aleatória, ele proclamava em tom sombrio e enfático, para ninguém em especial: “Como dizia o negão do Bronx, estou muito ocupado, mermão!” Ainda não sei o que isso quer dizer, mas fiquei contaminado e muitas vezes me repito essas palavras, como se fossem um mantra.
Depois de entrar em filas intermináveis no tribunal, fomos conduzidos a uma cela imensa, com umas quinze pessoas. Às cinco da manhã, finalmente, deram a cada um de nós uma dessas caixinhas de flocos de cereal em que, depois de abrir, você pode despejar o leite diretamente, além de uma embalagem pequena de leite. Engoli tudo num instante. O Professor deixou a sua comida intacta. Depois de quinze minutos, não resisti e perguntei se ele não ia comer. “Pode ficar, meu filho”, riu ele.
Nossa parada final foi outra cela de trânsito, atrás da sala do tribunal onde se realizavam as audiências. Ali havia umas 25 pessoas, entre elas um indiano baixinho com ar muito assustado que praticamente se atirou em cima de mim perguntando desesperado: “De onde você é?” Eu disse que era de Karachi, e ele respondeu: “Eu de Bombaim. A mesma coisa, não é?” Seu alívio ao encontrar outro sul-asiático era palpável e, como bom aluno do Professor, o abriguei debaixo das minhas asas.
– Carteira suspensa? – perguntei.
– Isso mesmo, me prenderam na frente da minha mulher e do meu filho de 6 anos. Eu nem sabia que a droga da carteira estava suspensa. E você? Mesma coisa?
– É, a mesma coisa. A vida é assim mesmo.
Às 9 horas, fui o primeiro a ser chamado para comparecer diante do juiz, graças a algumas providências da minha advogada, e me despedi do Ensangüentado, do Primo e do Professor. Bombaim me acompanhou até a porta da cela, com uma ponta de inveja. No tribunal, vi a minha linda e loura advogada americana, que me declarou inocente de alguma coisa da qual eu era obviamente culpado. Disse que ia conseguir que as acusações fossem retiradas mais tarde, e conseguiu. Eu estava livre. E paguei a minha multa por excesso de velocidade na Flórida.
2008_Minha loura e linda advogada americana para assuntos de imigração entra comigo no prédio Federal Office Plaza, no sul de Manhattan, para a entrevista do meu processo de naturalização. Embora eu morasse legalmente nos Estados Unidos há 25 anos, só decidi pedir a cidadania algum tempo atrás, porque: 1) viajar com o meu passaporte paquistanês está ficando insuportavelmente difícil e caro (os custos dos vistos vão se acumulando), e 2) isso vai tornar mais fácil a vida em Nova York para a minha mulher, que é italiana. Estou preparado. Ou pelo menos é o que acho. Decorei todas as respostas do livreto do teste para os candidatos à cidadania. Sei quem são os meus senadores. Sei o nome do meu deputado. Sei a ordem de sucessão à presidência. Sei a idade que a pessoa precisa ter para se candidatar a vários cargos. Sei coisas sobre o governo americano que o americano médio não deve nem desconfiar. Estou usando um terno azul de risca de giz, com colete, e sapatos caros. Raspei as minhas costeletas à moda de Elvis e penteei meu cabelo para trás com gel, para tentar ficar de acordo com a moda da revista GQ.
No fim das contas, porém, descubro que não estou nada preparado. Somos chamados a uma pequena sala e convidados a nos sentar. O entrevistador é um homenzinho de Bangladesh (me pergunto na mesma hora há quanto tempo ele próprio teria conseguido a cidadania), que é obviamente um muçulmano ortodoxo. Ele usa a barba bem aparada, recomendada ao muçulmano moderno, e tem inclusive uma gatta, a marca na testa dos mais devotos, produzida pela pressão contra o solo nas preces feitas quatro ou mais vezes por dia. Antes de dizer qualquer coisa, ele passeia os olhos pelo meu passaporte verde e pela minha advogada branca, com um ar de reprovação. E eu entendo: os nativos de Bangladesh não gostam muito dos paquistaneses, pois o nosso exército assassinou dezenas de milhares deles, em 1971, e a minha advogada está atraente demais, na sua saia curta, para a rigorosa sensibilidade muçulmana do funcionário. Na verdade, as pernas dela impedem até que eu mesmo me concentre na situação em pauta.
Ele começa com as perguntas de rotina:
– O senhor é ou já foi membro do Partido Comunista?
– Não, senhor.
– O senhor é ou já foi membro do Partido Nazista?
– Não, senhor. (Ainda existe um Partido Nazista?, me pergunto.)
– O senhor já usou ou abusou de alguma substância ilegal?
– Não, senhor. (Bem, eu sei, mas o que vocês teriam respondido?)
– O senhor tem o hábito da bebida?
– Não, senhor.
E assim por diante. Depois dessa tediosa litania, ele começa a examinar os meus documentos. Uma das coisas que a pessoa precisa fazer é providenciar resmas de documentos no caso de ter sofrido qualquer detenção, ainda que tenha sido por uma simples violação de leis de trânsito, e mesmo que as acusações tenham sido retiradas, não tendo havido condenação. Isso me ocorreu algumas vezes. Uma delas por problemas de trânsito, mas foi um caso grave: eu tinha menos de trinta anos, fui acusado de dirigir sob o efeito do álcool quando voltava para casa de uma festa de Halloween. Declarei-me imediatamente culpado, paguei a multa, tive a minha carteira de motorista suspensa por seis meses, e a partir de então passei a tomar mais cuidado com essas coisas. O funcionário não se interessa pelas minhas outras detenções (por agressão – uma briga num bar – , por exemplo), mas fixa o olhar no caso da detenção por excesso de bebida ao volante.
– Sr. Syed Abbas Raza, o senhor bebe?
(Ao dizer o meu nome completo, ele me lembra que sou indisfarçavelmente muçulmano, porque o tema da religião não pode ser abordado explicitamente na entrevista.)
– Parece que nesse dia eu bebi.
– Então o senhor tem o hábito da bebida?
– Não, senhor.
– Sei. E o senhor freqüenta prostitutas?
– Não, senhor.
– Entenda, eu preciso julgar o seu caráter moral, porque a cidadania norte-americana pode ser negada devido a alguma falha de caráter moral.
– Sim, senhor.
– E por isso eu torno a perguntar: o senhor tem o hábito da bebida?
O tempo todo ele me fuzila com os olhos, com um desprezo sem disfarce. A sua expressão diz: “Você é um traidor do Islã”.
A essa altura, eu perco a paciência. Sinto a raiva subir e devolvo-lhe o olhar, dizendo:
– Só porque a pessoa foi detida uma vez dirigindo depois de beber além do permitido, isso não quer dizer que tenha o hábito da bebida pelo resto da vida. É bem possível a pessoa admitir ter errado dessa vez, aprender com o erro e depois se tornar um cidadão bem-sucedido. O atual presidente dos Estados Unidos, por exemplo. Ou o atual vice-presidente, que foi detido duas vezes!
A isso, o meu amigo de Bangladesh responde perdendo a calma:
– Não quero ouvir nem mais uma palavra! O senhor vem a uma entrevista para obter a cidadania americana e insulta o presidente dos Estados Unidos?
– Não estou insultando o presidente. Só estou sugerindo que pelo menos daquela vez George W. Bush aprendeu com o seu erro, e acabou conseguindo se tornar presidente deste país.
– Nem mais uma palavra!
E olhando para a minha advogada:
– O seu cliente entende que está sob juramento?
Minha advogada:
– Perfeitamente. O senhor está querendo dizer que ele fez alguma declaração falsa?
E ele:
– A entrevista está encerrada. Eu lhes enviarei a minha decisão pelo correio em até 120 dias.
Alguns meses mais tarde, recebi o aviso previsível pelo correio: pedido negado. Meu irmão dá uma risada cruel quando eu lhe conto a história, e diz:
– Só você mesmo, para ter a cidadania americana negada por ser um mau muçulmano!
Pós-escrito: Minha advogada ficou mais furiosa do que eu com essa história. Entramos com um recurso, ganhamos, e poucas semanas atrás viajei até Nova York, partindo da Itália, onde moro atualmente, para fazer o juramento de cidadão americano. Já estou de volta à Itália com um passaporte azul novinho em folha, tentando decidir a qual cargo eletivo vou concorrer.
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