Novos pecados: uma breve história
Faltou jornalista entre os novos pecadores
João Moreira Salles | Edição 19, Abril 2008
Ao ler os jornais no dia 11 de março, o diabo suspirou e começou a contratar. Estava ali, em letras garrafais: “Igreja alerta para sete novos pecados.” Eram “pecados sociais”, um leque de desaforos a Deus que abarcava práticas como a injustiça social e a poluição do meio ambiente. Perguntou à secretária se o RH não poderia apressar a promoção daquela trinca de novatos: Saddam, Slobodan e aquele chileno, o Augusto. Com a Cúria Romana anunciando mais vícios do que o Inferno costumava processar, era urgente uma reengenharia na cadeia produtiva dos suplícios. Por exemplo: a gordinha que até outro dia se enquadrava apenas no pecado da gula agora teria a pena revista; se não reciclasse os sacos plásticos que o supermercado lhe dava para carregar os carboidratos, o caso se complicaria: seria autuada por pecado de crime ambiental.
Os teólogos perderam o estilo. “Tomem Ira“, soltou o diabo, “palavrinha eloqüente, digna de figurar nas melhores listas de pecado. Já ‘violação de direitos fundamentais da natureza humana’?!” Hedonista e esteta, ele apreciava os sete pecados capitais, que achava concisos e elegantes: um substantivo para cada tropeção moral. No topo da página em que atentara para a novidade infernal, havia uma segunda manchete. Leu-a em voz alta: “Governador de Nova York usou serviço de prostituição.” Luxúria. Cristalino. Uma beleza.
O código penal do Inferno é uma obra monumental construída em torno das noções de culpa e castigo. (Não se fala em perdão, apanágio do Purgatório.) Na tradição cristã, pecado é uma violação da norma divina. É uma resposta negativa a Deus. A partir daí, reina a confusão. Vai-se relativamente bem até pecados mortais e veniais, mas na hora dos pecados capitais o pessoal mete os pés pelas mãos.
A noção de pecado se realiza perfeitamente no pecado mortal, violação tão grave que acarreta a morte da alma, ou seja, a ruptura do indivíduo com Deus. Nele, três condições devem ser satisfeitas: matéria grave, conhecimento de causa e empenho da vontade. Quem assassina de caso pensado comete pecado mortal. Quem usa a razão para negar Deus, também. Pecado venial seria uma transgressão que não chega a abalar a aliança entre Deus e o homem, o qual, portanto, alcança o perdão (venia) com relativa facilidade.
A doutrina estabelece que o pecado venial justifica uma punição temporária no Purgatório, palavra formada pelo adjetivo purus (“puro”) e o verbo agere (“tornar”). Já o pecado mortal, se não confessado, arrependido e penitenciado, leva o pecador para o Inferno, onde não cabe recurso da sentença. Os teólogos contemporâneos não ligam muito para isso. Preferem sublinhar, no pecado, a liberdade do pecador. Somos livres para agir, e a gravidade de um pecado é diretamente proporcional ao grau de liberdade com que é praticado. Nenhum pecado mortal pode ser cometido acidentalmente. É sempre voluntário.
Pecado capital é outra coisa. São mais vícios que pecados, são inclinações do caráter que ameaçam a harmonia com Deus. Tanto assim que, em Dante, quem os cometeu está no Purgatório, não no Inferno. A própria geografia do Purgatório reflete os sete pecados capitais: uma montanha com sete terraços, cada qual dedicado a um pecado. Embaixo, perto do Inferno, ficam os orgulhosos, que vivem sob a perigosa ilusão de se bastarem a si mesmos; no alto, mais perto do Céu, os que sucumbiram à luxúria, que bem ou mal é um vício no qual está contida uma semente de amor.
A enumeração dos pecados capitais tem origem no monasticismo oriental. No século V, João Cassiano introduziu a prática no Ocidente e trouxe consigo as listas, cuja função era determinar comportamentos lesivos à vida monástica. Dois séculos mais tarde, Gregório I modificou esse rol, e, como distinguia entre orgulho e soberba, eram oito os pecados. Tomás de Aquino fundiu orgulho e soberba e chegou aos sete que conhecemos: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça. Chamou-os capitais – do latim caput, “cabeça” – por considerá-los a fonte de todos os pecados.
Por essas e outras é que o diabo impreca contra os poderes eclesiásticos. Quando se fala em pecados, de que lista mesmo estamos falando? A primeira, é óbvio, nasce da transgressão dos Dez Mandamentos, cada um deles implicando inúmeros pecados. “Não desejarás a mulher do próximo”, por exemplo, se desdobra em adultério, divórcio, fornicação, pornografia, prostituição, estupro, homossexualismo, incesto e masturbação. No Novo Testamento, Paulo relaciona dezessete pecados mortais: “Adultério, prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias.” Há os pecados contra a fé (incredulidade de Deus e heresia), contra a esperança (desespero obstinado quanto à salvação ou presunção de poder viver sem Deus e alcançar sozinho a redenção) e contra o amor (ingratidão, ódio a Deus, indiferença à caridade). Existem os quatro pecados que não ofendem somente a Deus, mas também ao homem. São os “pecados que clamam aos céus por vingança”, igualmente mortais: homicídio, pecado de impureza contra a natureza (sodomia e homossexualismo), aproveitar-se dos pobres e defraudar o trabalhador do seu salário.
É uma situação verdadeiramente inflacionária. No ano passado, o Vaticano já publicara uma espécie de Dez Mandamentos para motoristas: não se irritar na direção, não dirigir bêbado e outras platitudes. Agora o católico tem de se haver com mais um revisionismo. Pelo menos, foi o que se leu na imprensa mundial. A notícia se espalhou ao ser publicada no site do Times de Londres: “Depois de 1 500 anos, o Vaticano atualizou os sete pecados mortais, arrolando outros sete adequados aos tempos da globalização.” A informação vinha de uma entrevista dada na véspera pelo bispo Gianfranco Girotti ao L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano. “Monsenhor Girotti, responsável pela Penitenciaria Apostólica, foi perguntado sobre quais seriam os novos pecados”, publicou o New York Times. Do outro lado do mundo, o Hindustan Times anunciava que o responsável pela Penitenciaria – um dos três tribunais da Cúria Romana, encarregado de julgar matérias de consciência (como pecados, confissões, sacrilégios) e indulgências – teria dito que, agora, a alma dos cientistas genéticos e dos obscenamente ricos iria para o Inferno. O Pravda repetiu a dose, substituindo apenas “obscenamente ricos” por “oligarcas”.
Um tanto confuso, o diabo decidiu consultar um especialista. Deu uma espiada na lista VIP dos danados e mandou chamar Torquemada. O inquisidor-geral correu os olhos pelos jornais e, com uma ponta de tédio, disse: “Bobagem. Entrevista de funcionário do Vaticano não proclama doutrina. Os pecados serão sempre os mesmos, o que há são derivações. Girotti se referia à necessidade de recuperar o sentido do pecado. Falou num seminário sobre a crise da confissão. Boa parte dos católicos se desobrigou desse sacramento. E você bem sabe: sem confissão, todo mundo vem parar aqui. O bispo não falou em sete pecados. Apenas mencionou, e superficialmente, a bioética, as drogas, a injustiça social e a ecologia como temas que merecem a atenção dos católicos. Mais não disse.”
Com um floreio de mão, Torquemada jogou o jornal na mesa e, já dando as costas, comentou: “Esse Girotti eu conheço. Ele deu umas declarações sobre a importância de convocar exorcistas no caso de fenômenos agenciados aqui pela casa. É uma área do meu interesse. Não é ele o responsável pela Penitenciaria Apostólica. O penitencieiro-mor é um cardeal americano. Girotti é apenas o segundo da hierarquia.”
O diabo se virou para a secretária e instruiu: “Manda aquecer um pouco mais o caldeirão dos jornalistas.”
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