ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O homem do futebol-arte
Uma homenagem ao coração do Canal 100
Bruno Torturra | Edição 19, Abril 2008
Era uma missa de sétimo dia coletiva, e o padre, um bonachão de barba grisalha, se pôs a ler uma lista de mais de 150 nomes. Lembrou-se de famílias devotas, de fiéis da paróquia, de parentes dos finados e, é claro, dos que haviam partido. Encabeçando a ladainha, um nome errado: Francisco Fortuna. Se estivesse escondido no fundo da Igreja da Ressurreição, em Copacabana, ele daria risada. Francisco Torturra passou 78 anos carregando nos documentos um nome instável. No registro, seu sobrenome era Tortura, com um erre só, versão devidamente corrompida do original italiano, Turturro, quem sabe pelo humor negro de um escrivão. Preferia assinar Torturra e foi assim que batizou as duas filhas. O segundo erre o livrou do constrangimento certo, mas abriu as comportas para outros equívocos: Tartara, Tortuga, Tertura e, por fim, Fortuna.
Torturra-Fortuna foi um homem de sorte em tudo, menos no dinheiro. Quando seu coração deu sinais de fadiga, morava no bairro do Anil, subúrbio do Rio de Janeiro, equilibrado na corda bamba das contas, dívidas e juros. Gastava o que não tinha com remédios para Irene, sua mulher da vida inteira. Chico, como era conhecido, nunca recebeu mais do que o parco salário que na época se pagava a um cinegrafista – ainda que ele fosse o melhor de todos. De 1959 a 1986, foi o homem por trás da teleobjetiva do Canal 100, o cinejornal futebolístico que abria as sessões de cinema com a trilha “Que bonito é…” Nem antes nem depois se viu futebol tão bem filmado. Chico era “o coração do Canal 100“, nas palavras do diretor e patrão Carlos Niemeyer.
Até meados dos anos 50, Torturra trabalhou como motorista da família Rodrigues, aquela do dramaturgo Nelson e do jornalista Mário Filho. Apaixonou-se por Irene, irmã dos dois, e se casaram. Milton Rodrigues, ao virar cunhado, tirou Francisco do volante e o pôs atrás de uma câmera do cinejornal O Globo Esportivo na Tela, cuja especialidade, evidentemente, era futebol. Torturra aprendeu na marra – não fazia idéia do que era um obturador ou uma lente -, mas em dois anos suas imagens começaram a chamar a atenção. Foi por essa altura que Carlos Niemeyer, pândego carioca, irmão de Oscar, criou o Canal 100. Além de amigo dos Rodrigues, Niemeyer já conhecia Torturra. Chico levara de carro o arquiteto Oscar – que não voava (e não voa) por terror de avião – para conhecer o planalto vazio onde Brasília seria erguida.
Niemeyer ofereceu ao ex-chofer uma câmera com lente de 100 milímetros. Era o primeiro passo da revolução audiovisual promovida pelo Canal 100. Cada chassi tinha apenas quatro minutos de película. Se o cinegrafista começasse a filmar antes da hora, perdia o chute, o drible, o pênalti, o gol. Torturra desenvolveu o talento de filmar apenas o essencial – e intuir a jogada certa e o alarme falso. Conversava com técnicos e jogadores para se antecipar às jogadas ensaiadas. Rente ao chão, com os dois olhos abertos, um no visor, outro no campo, ocupou o fosso do Maracanã como se aquilo fosse a sua terra natal. Foi o primeiro a usar câmera lenta. Walter Carvalho, fotógrafo de Lavoura Arcaica, Madame Satã e Carandiru, entre outros filmes, escreveu que “Torturra posicionava sua câmera no nível da grama e dominava o percurso da bola com a destreza do seu olho e os reflexos dos seus músculos. Como Garrincha, levava a bola até o gol.”
Às vezes, dava um empurrãozinho nos fatos. Em 1962, antes da final do mundial interclubes entre Santos e Benfica, foi aos vestiários e pediu um favor a Pelé. Dito e feito. Pelé marcou três dos cinco gols que deram o título ao peixe. A cada vez, disparou na direção de Torturra. Foi a grande virada. As imagens correram os cinemas e, nos jornais, o Canal 100 foi exaltado como arte. Cunhado cabotino, Nelson Rodrigues proclamou com voz de trovão que a lente de Torturra era “mais inteligente do que o olho humano”.
Torturra só pediu duas regalias a Carlos Niemeyer: uma câmera Arri 2C à bateria (ficar dando corda era quase musculação) e uma lente ainda desconhecida no Brasil, a zoom de 400-600 milímetros, que permitia buscar, à distância, tanto a angústia do goleiro na hora do gol como o soco no ar do centroavante. A teleobjetiva inaugurou a era do antes e depois. “Só se filmava o campo com lentes abertas”, explicava Torturra. “Mas o que me interessava era filmar o que o pessoal não podia ver da arquibancada. A expressão do jogador, a reação do adversário, as pernas correndo…” Fosse só isso, já teríamos futebol soberbo. Mas, numa tacada de gênio, Torturra teve a idéia de virar as costas para o jogo: fechou a lente no torcedor que roía a unha de radinho colado ao ouvido. De um golpe, o esporte virou drama. Torturra ensinou o Brasil a filmar futebol.
Nunca se considerou artista. “Sou um estivador”, dizia. Carregava o próprio equipamento: duas câmeras, quatro chassis, dois tripés e dois jogos de lentes. Acomodava tudo em cinco malas de metal e saía pelo mundo. Carimbou o passaporte em mais de trinta países. Em 1974, recebeu a Bola de Ouro da Fifa. Nas horas vagas, corria atrás de assunto. Filmou as ruas no golpe de 64, foi o primeiro a chegar ao incêndio do prédio da UNE no Flamengo, registrou Juscelino inaugurando Brasília e Brigitte Bardot em Búzios. Apesar de ter nascido em família modesta, de pouca instrução, foi um homem do mundo. Levava sempre na mala um black-tie para as ocasiões de gala. No seu último aniversário, rodeado pelos novos vizinhos, tomou uma rara cerveja e fez um discurso curtinho com a voz embargada: “Olha, eu já viajei pra caramba, morei na Zona Sul, na Barra… mas foi aqui no Anil que encontrei a felicidade.”
A última Copa que filmou foi a de 1994, como parte da enorme equipe do documentário Todos os Corações do Mundo, de Murilo Salles. No último trabalho no Maracanã, um foguete estourou a seu lado e ele perdeu quase toda a audição de um ouvido. Era um Fla x Flu, e pelo menos venceu o Fluminense, o time do seu coração. Foi cinegrafista até o fim da vida. Vez por outra, ganhava um troco filmando casamentos. Nem todos os casais ficavam felizes com o resultado. Não achava noivos ajoelhados propriamente interessantes. O que mais se via no material entregue era um tio cochilando, uma sogra aos prantos, um recém-nascido babando, um adolescente com cara de tédio. Canal 100 puro.
Francisco Torturra morreu de parada cardíaca na UTI de um hospital público, dormindo, horas antes de se submeter a uma ponte de safena. Era o dia 2 de março. Estava no Espírito Santo visitando sua primeira bisneta, na única viagem que fizera em anos, pois se recusava a deixar a mulher sozinha. Irene foi a última sobrevivente dos catorze Rodrigues. Até o fim da vida, dormiram na mesma cama.
A capelinha do Cemitério São João Batista se encheu de parentes, vizinhos e também de gente que surgia pela porta dizendo que mal o conhecia, mas o adorava. Nenhuma nota na imprensa, nenhum jogador de futebol, técnico, comentarista, árbitro. Nem um mero gandula deu as caras. Foi enterrado, sob aplausos, no jazigo de Mário Rodrigues (pai), ao lado de Nelson e Mário Filho.
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