"Por mais que eu pareça um sujeito gentil, tem horas que eu tenho vontade de quebrar alguma coisa. Para isso, desenhar é ótima terapia" FOTO: DAVID M.BENETT_GETTY IMAGES
A brincadeira acabou
Na segunda e última parte das suas memórias, o ilustrador britânico Ralph Steadman narra os anos finais de sua colaboração com o escritor Hunter S. Thompson, com quem formou uma dupla do barulho. Puro gonzo.
Ralph Steadman | Edição 21, Junho 2008
Ele conta o fim da era em que tudo ainda parecia possível, descreve o ingresso do mundo na ciranda da cobiça global e testemunha a resposta do intratável Thompson ao curso da história: o suicídio, três anos atrás, tendo o filho único por testemunha.
1977_NA ESTRADA PARA HOLLYWOOD
O diretor de televisão da BBC Nigel Finch me telefonou para saber como chegar a Hunter Thompson e lhe falar de um projeto. Nigel queria fazer um documentário sobre a nossa longa parceria.
– Mande um telegrama – respondi –, mas seja bem direto e insistente, senão ele não responde.
– Como assim?
– Mande algo como: “Chego amanhã PONTO com toda equipe de filmagem PONTO Ralph vai também PONTO vamos precisar de armas PONTO.”
Meia hora depois, Hunter estava no meu telefone.
– Que diabo é isso?
– É legal! – falei. – A BBC quer fazer um filme sobre a gente. Faríamos uma viagem até Hollywood, com parada em Las Vegas! Parece uma boa idéia!
Era sem dúvida um grande lance e em 24 horas eu e Nigel já estávamos a caminho do Colorado. A equipe de filmagem embarcaria uns dias depois. Eu ia rever o velho sacana outra vez.
Nigel Finch era uma boa alma, riso fácil, confiante e extremamente cioso como documentarista. A viagem foi agradável e Nigel fez algumas anotações sobre a minha relação com Hunter – como é que eu agüentava os insultos dele e como tudo aquilo fazia parte do relacionamento criativo. Eu estava tão entusiasmado quanto o Nigel. Queria saber se a nossa química ainda estava intacta, ou se seríamos como dois estranhos de novo.
Aterrissamos em Denver, que na época ainda era um aeroporto caipira, pequeno, um pardieiro feito com estruturas de tábuas de compensado. O avião que nos fez sobrevoar as Montanhas Rochosas era um Dakota bimotor que parecia um remanescente da II Guerra Mundial. Adorei. A viagem foi sacolejante e às vezes francamente errática, mas sabíamos que a carcaça velha tinha voado por cima dos picos tantas vezes que devia ser capaz de voar sozinha. Ainda tenho as fotos do vôo. No último trecho da viagem, Nigel começou a ficar nervoso.
– Não se preocupe, Nigel – tranqüilizei-o. – Na primeira vez que o vi, Hunter me deu medo, mas por dentro ele é um gatinho doméstico. Do tipo perigoso, vá lá, mas é uma pessoa gentil, tímida. Ele é muito atencioso com seus convidados. Você vai ficar à vontade.
– Acho que estamos chegando – disse Nigel, quando começamos a descida abrupta e a manobra para entrar no vale onde ficava o aeroporto de Aspen. Pousamos de um jeito que me fez lembrar aquelas aterrissagens de filmes velhos em preto-e-branco, com Howard Hughes e todo o lero-lero da história da aviação. O aeroporto de Aspen era um troço familiar e acolhedor, galinhas ciscando na porta e parentes à espera de familiares. Nada de intermináveis manobras para taxiar até achar um acesso vago, e nada de vistorias com mãos apalpando as partes íntimas da gente.
Nossas malas saíram em questão de minutos, passamos para o saguão caseiro do aeroporto e daí para a porta da rua. Nigel foi dar uma mijada e eu fiquei encostado numa pilastra de tijolos, umas das poucas que sustentavam uma construção feita essencialmente de madeira. O sol brilhava e tudo estava sossegado, numa atmosfera de animação suspensa. Me fez lembrar uma cena do filme Conspiração do Silêncio, quando Spencer Tracy, maneta, desce do trem na estação e fica esperando o trem partir. Tudo é paz e tranqüilidade. Nada se mexe a não ser uma brisa delicada.
Nigel notou o Chevrolet vermelho e brilhante que veio na nossa direção, parou um momento e depois avançou direto até onde eu estava. No volante, estava a figura familiar do meu amigo, HST, dirigindo o carro direto até as minhas pernas, enquanto eu ficava ali parado, de pé, com as malas, encostado na pilastra de tijolos. Acho que eu devia ter pulado para o lado, mas tamanha era a confiança, a fé que eu depositava no meu velho amigo, que me limitei a ficar ali parado esperando, enquanto tentava enrolar um cigarro Virginia Golden. No último instante, Hunter pisou fundo no freio. O carro parou a dois centímetros das minhas canelas. Hunter abriu a porta e desceu de um pulo, dizendo:
–Vocês estão atrasados!
– Hunter, seu sacana! Isso podia ter dado a maior merda!
– Eu sei – disse ele. – Mas você sabia dos riscos quando resolveu transar comigo.
Nigel estava um pouco aturdido com aquela peculiar demonstração de cordialidade. Apresentei-o a Hunter, que foi caloroso nas boas-vindas.
– Pena que a equipe de filmagem ainda não esteja aqui, Nigel. Teria dado uma bela cena de abertura para o seu filme, hein? – comentei.
Concordamos que, de fato, teria sido uma cena forte para começar e, algumas semanas depois, quando tínhamos quase terminado a filmagem de Medo e Aversão na Estrada para Hollywood, Nigel tentou reencenar aquele momento, mas a hora tinha passado e a espontaneidade não existia mais.
Depois de nos convidar, de cara, para irmos à taberna Woody Creek, Hunter começou a falar a sério sobre armas:
– Feito esta aqui – disse ele, e de repente sacou de um coldre uma Magnum 357 e deu três tiros para o ar. – É disso que estou falando – explicou para Nigel. – A gente tem de estar preparado o tempo todo.
– Mas será que ninguém vai notar e denunciar você para a polícia? – perguntou Nigel, preocupado.
– É claro – respondeu Hunter –, mas tenho um arsenal delas guardadas num cofre. O pessoal vai ficar sabendo que tem um fodão lá em Aspen e todo mundo vai ter certeza de que está tudo bem. Você está seguro aqui, Nigel.
Tranqüilizado, mas inseguro, Nigel continuava com um sorriso sem graça e, a partir daquele momento, entendeu que embarcara numa viagem incerta, mas também num grande filme. O documentário de Nigel sintetiza os primeiros tempos de paz em Aspen, com seus hippies e o pessoal que largava os estudos, mas também capta a filosofia essencialmente fora-da-lei que caracterizava Hunter.
No filme, Nigel me pergunta: “E o lado violento dele, as armas de fogo, a clava, as agressões?”
Ralph: “Bem, que eu saiba ele nunca atirou em ninguém! Acho que isso tudo faz parte do espírito Gonzo. O espírito do Gonzo está no fato de que todos esses implementos são utilizados e todos fazem parte do mesmo fogo, intensidade e ímpeto que as palavras dele tentam alcançar. Talvez ele precise daquelas coisas, mas são todas disparadas para o ar. Talvez ele dê uns tiros nas montanhas. Não acho que tenha atacado alguém com uma clava, exceto a mim, é claro, mesmo que ele tenha falado que faz isso. E tem uma outra coisa: Hunter é de uma ‘loucura controlada’. Pode usar qualquer elemento ao seu alcance a fim de ativar alguma coisa. Na verdade, nada tem de assustador.”
Nigel: “O que vocês dois extraíram do trabalho em conjunto?”
Ralph: “Bem, eu extraí alguns dos melhores desenhos que já fiz. Muitas vezes não consigo começar sem que esteja num determinado estado de espírito, para entrar fundo no troço, ser incisivo e agressivo em todas as páginas. É um jeito melhor de fazer o serviço do que sair por aí perseguindo umas velhotas, esse tipo de jornalismo, não é? Assim eu me livro de toda a minha agressividade. Por mais que eu pareça um sujeito gentil, tem umas horas estranhas em que tenho vontade de quebrar alguma coisa. Desse ponto de vista, desenhar é uma ótima terapia. E acho que o Hunter sacou isso.”
Difícil explicar como o filme chegou a ser concluído. Ver Hunter tal como ele era na época, nesse filme de trinta anos atrás, é ver em carne e osso um pioneiro americano ingênuo muito real, repleto de incerteza. O seu jeito hesitante de exprimir a angústia e a raiva, a sua certeza e a sua desconfiança de que aquilo que ele estava dizendo era e é o certo, cravava uma estaca nos corações de todos os americanos com sangue nas veias, que queriam acreditar em algum Sonho Americano autêntico.
O que Hunter estava experimentando era nada menos do que o orgulho nacional, a sensação de ser um americano, capaz de transmitir algo para qualquer um de seus compatriotas – se eles tivessem coragem e vontade própria para vencer e para levar adiante a idéia. Esse espírito virou a essência de um desejo, da parte de Hunter, de se expor de verdade e pôr a nu a mentira da vida americana. Cada verme, cada trambiqueiro monstruoso, todos os canalhas sórdidos, todos os pulhas pustulentos vinham enfiar as unhas no crânio vulnerável do Hunter e faziam um piquenique com aquela parte dele que era a sua força. Mas ele ainda era jovem o bastante para agüentar toda a pressão.
Não acho que eu fizesse parte dos planos do Hunter, a não ser como uma ponte visual capaz de explicar, para quem não sacava o essencial, que ele estava resolvido a ser um tipo que só acontece uma vez, um solitário enraivecido, um exemplo para qualquer um que quisesse tentar viver com a mesma determinação.
Foi por causa do seu exemplo que resolvi virar americano. Preenchi formulários, registrei a minha intenção de adotar a bandeira americana, fazer o juramento de lealdade à pátria. Contei isso para Hunter e ele disse:
– Ralph! Eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para evitar que você se torne um cidadão americano!
Fiquei chocado e mortificado por ele achar que eu não era digno de ocupar tal posição na vida.
– Achei que você ia gostar.
– Gostar? – rosnou. – Gostar? – repetiu. – Você nunca vai poder ser americano, Ralph, porque você é galês!
– Tem um monte de americanos galeses, Hunter – retruquei.
– Menos você, Ralph! Você é bizarro demais para sequer poder sonhar com essa honra!
– Mas sonhei tanto com isso! Pensei que você fosse ficar orgulhoso. Pensei que você podia mexer os pauzinhos que iam tornar real essa doce possibilidade.
– Amarga decepção, Ralph! Amarga decepção! Nunca! – Foi então que entendi que eu era um pária na vida dele.
Hunter botou na cabeça a necessidade de começar a organizar o próprio enterro e Nigel achou que esse tema deveria fazer parte do documentário.
Saímos então à procura dos Irmãos Reed, Tapley e Geiger, na zona oeste de Hollywood, para conversar sobre a grave questão de um mausoléu para Hunter. Fomos apresentados ao agente funerário.
– Mike Reeves, às suas ordens – disse ele, enquanto dava um aperto de mão firme e tranqüilizador, e o seu rosto era um retrato da seriedade profissional.
Convidou-nos para assistir a um filme promocional sobre caixões. Bela Lugosi não teria feito melhor. O texto da locução era de meter medo.
– Há dois tipos básicos de caixões – explicava o locutor. – O protegido e o desprotegido. Caixões protegidos são projetados para se manterem completamente lacrados e impedirem a entrada de água e de ar. São construídos, sobretudo, com aço, cobre e bronze. Metais que proporcionam uma longa durabilidade sob a terra.
– Estamos hoje aqui para tratar da idéia de um mausoléu – falei. – Ter uma idéia de orçamento. Vou lhe mostrar o conceito. A idéia básica é esta. E desdobrei um projeto que eu tinha desenhado, baseado numa antiga taça teutônica de metal que eu tinha no meu estúdio: asas wagnerianas dos dois lados. Achei que Hunter ia gostar – disse. – Ainda não foi aprovado – prossegui.
– É fantástico! – disse o agente, em tom muito sério. Ele já devia ter visto tudo quanto é doideira do mundo em matéria de pedidos de clientes.
A cara dele continuou implacável enquanto Hunter acrescentava:
– Pense num vale de montanhas que fica a uns quilômetros daqui. – E jogou na frente de Mike Reeves uma foto de Woody Creek.
O agente, até então impassível, aprumou-se na cadeira e eu podia jurar que ficou impressionado.
– Essa propriedade pertence ao senhor?
Hunter respondeu:
– Sim. Você está vendo aquelas montanhas lá atrás? Bem, minhas terras vão até lá em cima, até depois daqueles penhascos lá atrás. Eu posso fazer tudo o que quiser.
Entrementes, eu tinha começado a desenhar um outro projeto mais simples, que utilizava uma porção de canos de aço.
– Hunter talvez preferisse alguma coisa mais parecida com isto – interrompi -, algo muito mais simples, mas com um punho cerrado por cima.
Enquanto eu desenhava, continuava a falar:
– Um pouco como o Albert Speer [1]. Vocês conhecem o Albert Speer?
– Eh… sim… eu… eu ouvi falar. Mas se trata de uma coisa diferente – disse o agente, percebendo as formas do desenho novo, que surgiam no papel.
Hunter continuou a explicar o seu projeto.
– Vai ter uma pilha de pedras de mais ou menos uns 30 metros de altura, um cilindro cromado gigantesco, cônico, subindo até uma altura de 45 metros. No topo, vai ter um punho fechado com dois polegares: o símbolo.
Comecei a desenhar o punho, mas quando desenhei o polegar, Hunter falou:
– Já disse para você mil vezes e repito há dez anos, Ralph! Dois polegares, Ralph, DOIS polegares!!
– Ponha você mesmo – falei, e lhe ofereci a caneta.
– Tá legal – respondeu irritado. E desenhou uma versão torcida de um outro polegar, para fazer companhia ao primeiro. – Bom, é melhor do que não ter polegar nenhum, que é o que você tinha feito antes. Não posso confiar no meu amigo – queixou-se Hunter, dirigindo-se ao agente funerário, que nessa altura já tinha entrado no espírito daquele plano egotista grandioso. – Vai ser um monumento charmoso. Depois que eu for cremado, eles enfiam minhas cinzas numa cápsula explosiva e a disparam lá de cima do punho, para cima do vale. A cápsula sobe uns 300 metros e explode. As cinzas caem e se espalham por toda a área, e pronto – explicou Hunter.
– Isso eu não posso fazer – respondeu Mike. – Nós colocamos as cinzas em diversos tipos de recipientes, mas… – Não estava muito convencido de poder produzir aquele recipiente explosivo especial.
– Você pode espalhar as cinzas por todos os sete mares? – indagou Hunter.
O agente funerário soltou um suspiro profundo e disse:
– Já fui piloto, numa época da minha vida, e às vezes, num avião, promovemos o encontro das famílias num determinado local, circulamos a área e deixamos que os familiares joguem as cinzas onde bem entenderem.
– Isso é bom! – disse Hunter. – O que o senhor faz por aqueles que ainda estão vivendo?
– Nenhum de nós sabe por quanto tempo vamos viver… podem ser dois anos, ou seis meses – aconselhou o agente funerário, sensatamente.
– Os médicos me dizem que posso ter dois anos, seis anos, duas semanas. Posso até viver ainda mais dez anos. Mas já tenho tudo planejado. Na hora em que acontecer, quero Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan, tocando. Eu quero partir assim. Esse é o meu enterro! Res ipsa loquitor [a coisa fala por si mesma]…
E foi assim que Nigel terminou o seu filme, acrescentando um desenho animado da cápsula explosiva disparada para o céu e explodindo acima de Woody Creek.
Apesar das objeções de Hunter durante a produção do documentário, Medo e Delírio na Estrada para Hollywood virou um de seus filmes prediletos. Durante os 28 anos seguintes, ele o exibia para todo mundo que o visitava na Fazenda da Coruja. Inclusive para mim.
OS ANOS 80_ ÉPOCA DE PAGAR AS CONTAS
Ainda estávamos nos anos 70 quando Hunter disparou esta peça de sabedoria: “Os anos 80, Ralph, vão ser a época de pagar as contas.” Do seu jeito lógico arrevesado, ele tinha refletido sobre o assunto. No fim se viu que ele tinha razão.
Ingressamos na nova era em dezembro de 1980, com uma pauta no Havaí para cobrir a Maratona de Honolulu. Não éramos necessariamente gananciosos. Bem, eu não era, e confesso que não entendia direito o fato de Hunter ter começado a sentir um apetite doentio por tudo que gerava dinheiro. Ele tinha vendido os direitos de Medo e Delírio em Las Vegas para diversas companhias de cinema, sem o conhecimento umas das outras, e para produtores ávidos por capturar a lenda do dr. Gonzo que, rapidamente, estava se transformando num negócio sério. Quanto mais a lenda crescia, menos Hunter solicitava os meus serviços, exceto para embelezar o resultado das negociatas frenéticas que abrangiam até as nossas primeiras parcerias do início dos anos 70. Eu sempre soube que tínhamos forjado uma amizade para toda a vida. Mas não tinha idéia da sua avareza, ou achava que era só uma piada.
Foi por volta dessa época que minha mulher Anna e eu mudamos de casa e dei início a um de meus maiores projetos. Olhando para trás, para os dez anos anteriores, me dei conta de que vivíamos lutando para pagar as contas. Mas havia a ressaca dos anos 60 – um idealismo oscilante, condenado, que pairava no vento. Depois de publicar Sigmund Freud, resolvi partir para um trabalho sobre Leonardo da Vinci. De estalo, me veio a idéia de ser eu mesmo o Leonardo e comecei a trabalhar em alguns dos projetos dele. Compramos uma casa velha e grande que na época ninguém queria. Hoje, é difícil acreditar que não havia nenhum especulador interessado em comprar aquela casa por uma pechincha, para depois demoli-la por inteiro e erguer, nos seus miseráveis cinco acres de terreno, um novo condomínio de casas espremidas – e ganhar milhões.
Mesmo no pub da minha região, o Chequers, em meados da década de 80, o Financial Times era leitura obrigatória desses candidatos a milionário. Só o Ben, o nosso bêbado oficial, caçador ilegal e coveiro, escarnecia dos “nojentinhos”, que ele desprezava. Eles entravam no pub todo dia, com o FT debaixo do braço, para conversar sobre a miragem de riqueza num deserto de vã esperança. Entre esses caras, estava o meu querido amigo, o proprietário do Chequers, Martin Lock, que, meia hora depois de Hunter ter entrado em seu estabelecimento, tinha-lhe emprestado a sua arma e a sua filha.
É uma fonte de orgulho para mim ter impedido a ocupação especulativa dos meus cinco acres de terra em Kent, no sul da Inglaterra. Sou um espinho cravado na carne de tudo quanto é safado que, se tivesse a menor chance, ia arrasar o que sobrou da casa e, com tratores de terraplanagem, transformar tudo num condomínio. Gente sacana! Isso me deu uma grande satisfação. Somos o último baluarte contra a devastação do nosso vale, que dois mil anos atrás era uma pedreira dos romanos, um vinhedo e um reduto de beleza natural. Hunter chamava o local de meu castelo em Kent. Eu trabalhava no que ele chamava de “Quarto de Guerra”. Era eu contra o mundo. O cartum como arma. Acordem! Vocês estão indo para o lado errado! Venham comigo!
Não dá para viver numa casa como aquela e não se sentir parte de uma espécie de aristocracia natural. Um amigo chamado David Gollins me deu uma cabra, a quem demos o nome de Rebecca. Eu passeava com ela todo dia pelo vale e dava uma parada no Chequers para tomar uma cerveja, depois de prender a Rebecca num pilar perto da entrada do bar.
Hunter e Laila, sua namorada, vieram passar uma temporada conosco em 1981. A visita virou uma intrusão colossal, com bilhetes por baixo da porta, que diziam:
Ralph
Não nos acorde hoje por nenhum bom motivo.
Nada de armas (nada de falcões), nada de dar tiros, nada de visitas ao pub.
Nada de telefonemas, NADA. Vamos dormir até acordar. NADA DE VISITAS, repito, NADA DE VISITAS.
Sou um maluco, me deixe em paz até eu acordar e cancele todos os planos sociais. Precisamos dormir e não se preocupe com o que vamos fazer ao sair. A gente não se atreverá a ir a lugar nenhum. E hoje não quero falar com ninguém – ninguém mesmo.
Valeu, HST
Ouvíamos movimentos nas horas mortas da noite e ruídos de bicho, barulho de carro saindo para o pub de madrugada e um regime de solicitações que deixou Anna intranqüila, à base de doses consideráveis de Valium. Um de seus temores era que ele incendiasse a casa. Nossa filha não tirava o casaco enquanto Hunter estava em casa.
– Não posso fazer nada – eu explicava, de modo patético. – Encontrei esse sujeito por força das circunstâncias e ele é meu amigo.
Hunter gostava de atiçar o fogo da estufa da biblioteca, transformá-la numa fornalha feroz, flamejante, e ficar andando de um lado para o outro até o amanhecer, fumando maconha e telefonando para os outros nas horas mais impróprias.
Os anos 80 eram mesmo a época de pagar as contas, mas de um jeito bem mais nocivo do que poderíamos ter imaginado. Levei Hunter e Laila a Londres, para espairecer alguns dias, e apresentei-os a Bernard Stone [3] e à sua livraria. Era um refúgio para eles. Encontraram um batalhão de poetas e escritores, também refugiados ali, e arranjaram uma empresa “eletrônica” que podia transcrever as anotações de Hunter para A Grande Caçada aos Tubarões, através de um novo sistema de computador que incorporava o que se tornou conhecido pelo nome de disquete. Na época, era um milagre. Não sabíamos que ele estava mostrando um mero vislumbre, uma migalha de kilobyte do que a seguir viraria a mais alucinante realização de um sonho para milhões de pessoas.
– Estamos fodidos, Ralph – posso ouvi-lo dizer. – Inventaram a ferramenta perfeita para o Novo Idiota. Agora eles podem florescer, numa verdadeira terra de burrice e ganância. Podem infestar o planeta com tudo o que há de babaca e nojento que você puder imaginar, e todos eles vão parecer gente sensata. Agora, qualquer bundão banal, mentiroso, pode virar presidente dos Estados Unidos e ficar numa boa. Tudo quanto é desmiolado cabeça oca vai poder derramar os seus pensamentos podres nesse novo mecanismo, entortá-lo um grau fora do prumo e depois reenviar como uma forma de sabedoria. Você acha que a gente já chegou à Terra dos Mortos-Vivos? Não, Ralph. Estamos só começando!
Ele tinha razão, é claro, e quanto mais vociferava contra a vinda da luz, como dizia, invertendo o famoso verso de Dylan Thomas, mais aquilo fazia sentido para mim e para muitos que viam nos seus violentos jogos de palavras um tonificante para a vida. Quando procurávamos palavras para exprimir a raiva e a frustração em face de um mundo corrompido, Hunter encontrava essas palavras e nos enchia com as respostas para as nossas necessidades.
Eu tinha certeza de que Hunter havia cruzado com William Burroughs em algum ponto, em algum momento da vida, embora os dois negassem ter qualquer interesse um pelo outro, e seguissem caminhos separados. Hunter raramente, ou nunca, mencionava a geração beat e, no entanto, de vários modos, ele refletia boa parte da sua Angst e do seu desdém rosnante por tudo aquilo que é careta. Hunter decidiu que eles eram diferentes e que não era possível achar nenhuma base comum verdadeira.
Ainda assim, Hunter e William Burroughs tinham combinado se encontrar. Hunter ia fazer a viagem para a provinciana cidadezinha de Lawrence, no Kansas, mas acabou furando. Dois dias depois do combinado, ele ainda não tinha dado as caras. William esperou em sua cidade, esperou e esperou, e, como era um cavalheiro, no fim achou inaceitável aquele comportamento.
Eu tinha encontrado William pela primeira vez alguns anos antes, numa noite de autógrafos na livraria de Bernard Stone, em Londres. Nos anos 70, a Turret Bookshop de Bernard tinha virado um segundo lar para diversos escritores beatniks, que gostavam de lá e a viam como uma birosca decente, não muito diferente do seu modelo original, a livraria City Lights, em San Francisco.
Ali se cruzava com Allen Ginsberg, de macacão jeans, com Carolyn, a viúva de Neil Cassady [2], que tinha morrido em 1968 por excesso de álcool e drogas, e com quem Jack Kerouac queria casar.
Lembro-me de Patti Smith, a cantora e poeta. Ela apareceu com o namorado, o fotógrafo Joe Malanga, que tirava fotos de longa exposição no escuro – deixava o obturador aberto durante horas seguidas, o que produzia imagens muito sutis, de definições “gravadas com luz”. Achei que aquilo era uma idéia fascinante, igual aos experimentos do fotógrafo Man Ray, do movimento Dadá, nos anos 20.
Um tempo depois, encontrei Burroughs na October Gallery, também em Londres. Para ser franco, fiquei intimidado com o poder do seu intelecto e o alcance assustador das suas experiências. Aquilo estava grudado nele feito uma mancha num terno de tweed e, com aqueles ternos que ele usava, e aquele chapéu de pano, ele me fazia lembrar um banqueiro andrajoso de cidade pequena, que não estava atrás do dinheiro da gente, mas sim da nossa alma. Seus olhos de réptil e seus traços muito marcados se mexiam sem descanso, em busca de sinais de vida e também, com infalível cortesia, de um lugar para entrar.
Nunca poderia fingir que me tornei amigo íntimo de Burroughs. Alegações desse tipo pertencem às sombras do seu passado, que agora nos falam por meio das palavras que ele deixou e das fotos em preto-e-branco de toda aquela turma. Mas eu sentia que existia uma afinidade recíproca, que preparava o terreno para um futuro convite para visitá-lo em Lawrence.
Sua casa era modesta, uma construção revestida com tábuas, uma varanda na frente, num jardim de subúrbio. A casa vizinha era o escritório da William Burroughs Communications Inc., dirigida pelo que alguns chamariam de seus acólitos, mas que eu chamaria de equipe de plantão para a manutenção dos seus sinais vitais. O músico James Grauerholz, seu secretário e amigo desde 1973, já lhe dera um ultimato para abandonar Nova York e suas influências deletérias, parar de roubar bêbados para conseguir dinheiro para financiar o seu consumo de drogas, e aceitar fazer um programa de desintoxicação controlado, lá num fim de mundo, do contrário iria morrer. A influência de James, portanto, era bem forte.
Quando cheguei, havia diversas pessoas trabalhando. A sala da frente era escassamente mobiliada, com tábuas corridas quase nuas. William estava escorado numa bengala – uma bengala com uma espada embutida –, numa poltrona baixa, de frente para um modelo sintético de um Mugwump, caracterizado no filme Mistérios e Paixões [Naked Lunch] como uma figura esquelética amarrada e acorrentada a uma cadeira de diretor de cinema. William levantou-se com elegância para ver uma coleção de gravuras que eu tinha trazido para a exposição em Denver. Estava bebendo num copo regularmente reabastecido com Pepsi e avivado com vodca “porque não consigo suportar o gosto de bebida pura na língua”.
Antes de a tarde chegar ao fim, tínhamos cantado umas músicas meio doidas um para o outro, discutido muito mais coisas do que eu havia imaginado, e ainda combinamos uma sessão de tiro na fazenda de um amigo, no dia seguinte. Ele leu um poema seu, chamado “Rosa de Pantapon”, e autografou um exemplar. Afagava uma arma pequena, que ele tirava e recolocava no coldre de couro enquanto explicava as virtudes e as complexidades do que parecia ser uma pérfida peça de engenharia sofisticada. Levava a arma para toda parte. Falava sobre gatos, armas e lêmures.
Conversamos sobre as sessões de poesia que ele tinha gravado para um amigo; sobre armas em geral; sobre o seu fascínio com armas e preocupações similares às de Hunter; sobre o excesso de drogas e, por estranho que pareça, a sua defesa do respeito às substâncias que causam dependência. Falamos sobre arte e a sua relação com a escrita, e também sobre cavalos, que ele gostava de montar nu. Achávamos que os cavalos, instintivamente, detestavam as pessoas, e lembramos como eles podiam ficar histéricos em lugares monumentais como o Grand Canyon, motivo por que lá se usam mulas. Nós o mantivemos acordado até mais tarde do que o seu toque de recolher habitual.
Os alvos, pregados sobre uma estrutura de madeira simples, consistiam em diversas gravuras feitas por mim, inclusive Vintage Dr. Gonzo, que comemorava os 25 anos de parceria com Hunter, uma serigrafia de William Shakespeare e gravuras de um fotopoema com fotografias que Allen Ginsberg tirou de Burroughs através de um espelho. Tinha também uma bonita gravura em serigrafia de um Hunter jovem, com base numa foto que tirei dele para a sua campanha a xerife de Aspen, em 1970. Havia três alvos com círculos concêntricos nesta última gravura, um entre os olhos, outro no seu gaiato distintivo de xerife e o último no relógio Rolex em seu pulso.
William vestia um jaleco militar, um boné cáqui de beisebol e jeans azul. Quando William mirava, ficava a uns dois metros do alvo. Ao longo dos exercícios, ele vagava pela área de tiro, brandindo diversas armas, o que de vez em quando nos obrigava a abaixar, sacudindo os braços e correndo em busca de abrigo, para evitar a direção em que o cano estava apontado. Sendo um cavalheiro, ele sempre pedia desculpas.
Estraçalhamos à bala boa parte daquela arte, e deixamos a do xerife para o final. Com uma rajada de uma arma de calibre doze, queimamos só com o calor a maior parte de uma imagem do “Doutor Gonzo”, como ele se auto-intitulava.
Quando chegou a hora de atirar na última gravura, o xerife com os seus três alvos, levei William para perto do alvo e expliquei quais eram as três áreas em que a gente tinha de mirar.
– Sem problema – resmungou ele, enquanto verificava as câmaras do seu revólver Smith & Wesson Special calibre 44 (edição limitada). William estava se divertindo e tínhamos a sensação de que era um grande momento. Recuamos e esperamos, enquanto ele fazia a pontaria. Então, numa rápida sucessão – Bang! Bang! Bang! Bang! Bang! BANG! Acertei! – disse ele, no silêncio que se seguiu. Fui verificar o resultado.
– Errou, William – falei. – Passaram todos pelo pescoço.
Com um meio sorriso e um olhar de esguelha, resmungou:
– Bem, ele está morto, não está?
Anna e eu partimos para Denver e Aspen, onde tínhamos combinado de realizar uma festa em comemoração aos 25 anos da criação do Gonzo. Tinha de ser uma coisa especial e, para comemorar, planejamos assistir pela tevê à corrida de cavalos do Derby de Kentucky. Todo mundo tinha de fazer apostas.
Hunter estava acordado e já vestido, o que era estranho, e Joe estava com as gravuras Vintage Dr. Gonzo e Sheriff no bagageiro da sua caminhonete, na esperança de pegar o Hunter de jeito ao longo do dia e conseguir o seu autógrafo. Havia o bônus de Hunter ter pego umas armas e destroçado à bala algumas gravuras avulsas, para tornar a coisa mais interessante.
Uma grande mesa de piquenique foi usada para dispor as armas, as câmeras, a munição, o creme facial e as bebidas. O sol estava oculto e a neve tinha derretido. Do outro lado do vale, na serra, os choupos ainda estavam sem folhas e tinham uma cor de madeira, de vermelho queimado, nas sombras.
Tínhamos os necessários uísques com menta e um bolo gelado de aniversário, com glacê, em faixas brancas e pretas, e morangos. As palavras RALPH + HUNTER, DIA DO GRANDE PÁREO, FELIZ 25º ANIVERSÁRIO estavam escritas com chocolate no glacê.
Havia uma refeição incrível, de saladas e camarões, arroz e frutas, e Maggie, a datilógrafa de Hunter, acendera o fogo na lareira da sala. A tarde se arrastava, fomos comer em volta da mesa redonda e baixa e, como acontecia muitas vezes, Hunter mostrou alguns de seus poemas e me fez ler, de modo incoerente, mas com um certo panache, é claro, para a platéia. Hunter escutava com cuidado e mexia as mãos como um maestro diante da orquestra. Mas os filisteus começaram a falar entre si e então me dirigi a alguns deles numa voz de W. C. Fields. Hunter detestava isso. Eu não devia zombar da sua obra.
Depois, fomos todos para fora ver o seu célebre truque da “bomba” – o fuzilamento ritual de um cilindro de gás propano com um rifle de alta velocidade. Trouxeram um trator com os faróis acesos, sentaram uma boneca inflável de peitões volumosos no banco do motorista e o motor foi ligado. Suas tetas balançavam para cima e para baixo e Hunter filmou aquilo, mesmo no escuro. A bola de fogo subiu, fazendo o metal voar em volta, feito estilhaços de granada. O bojo do cilindro foi encontrado, na manhã seguinte, no outro lado do campo. Por pura sorte, ninguém se machucou, mas agora todos estavam no pique de cortar o bolo de aniversário.
Todo mundo tolerava aquilo, alguns para não criar encrenca, outros porque adoravam levar porrada por conta da relação holística de amor e ódio que Hunter tinha com a vida e com aqueles que a povoavam. Outros eram mais filosóficos e, se não faziam vista grossa para o seu bombardeio retórico sem pé nem cabeça, registravam tudo como se observassem um leão dentro de uma jaula, e tomavam notas mentais tranqüilamente, para depois ir conversar sobre o caso na mesa de restaurante, como um tema interessante. De certo modo, ele estava numa jaula. Ele mesmo se pôs lá de modo totalmente premeditado, declarando que a Fazenda da Coruja era a sua “zona fortificada”. Ali viveu durante quase quarenta anos. Fazia amigos, seduzia-os e tornava todos eles parte do seu bando de animais, com cada um representando o seu papel. Alguns já possuíam até plumagem, penas ou pêlos, dentes e garras, ou as duas coisas. Alguns eram famosos e outros eram vizinhos desavisados que viraram seus amigos. Mas ninguém saía perdendo, a menos que quisesse só uma reportagem. Eles não vinham por amizade, vinham para bajular e tomar.
MARÇO DE 1996_RIFLE
Nosso avião teve de aterrissar em Rifle no meio de uma nevasca. Eu estava a caminho de Aspen, com Anna, para uma exposição individual na galeria Barney Wyckoff. Para certas pessoas, a neve é divertida, mas para mim é só uma coisa que atrapalha os passos. A gente é obrigado a usar botas grandes e roupas impermeáveis pesadas, e andar que nem o Boris Karloff em Frankenstein. Tem gente que paga pequenas fortunas pela dúbia oportunidade de fantasiar famílias inteiras com trajes em cores primárias, feitos de uma só peça de náilon escorregadio e fechados com zíper. En masse, eles me fazem lembrar pingüins vestidos no rigor da moda, desfilando num salão feito de sorvete. Há construções colossais em andamento na região e uma obra de ampliação do aeroporto, projetos poluidores de água e só Deus sabe quantos imóveis novos com preços sobrevalorizados nos arredores, para quem não tem grana para comprar algo em Aspen. Estão oferecendo arrendamentos de óleo de xisto e correm notícias sobre novos setores de atividade econômica nos ambiciosos planos de desenvolvimento da cidade, o que gerará emprego para gente que vai preparar relatórios de impacto ambiental sobre a região, dando permissão para que novas hordas morem lá e perpetuem o ciclo que avança sem parar e, verdade seja dita, acaba ferrando com tudo, como tudo o mais, no final. Acho que todos nós temos mesmo de cagar em algum lugar, mas os seres humanos parecem que precisam cagar mais do que o resto das criaturas. Rifle, antes pequena, sossegada e distante, está aquecendo os músculos e fazendo a sua parte para transformar as Montanhas Rochosas numa ondulante e acotovelante massa de humanidade socada.
Fomos enfiados num ônibus rumo a Aspen. Sinais daquele novo desenvolvimento começavam a formar bolhas e erupções de maneira falsa em imóveis novinhos em folha e pintados em cores de sorvete, com centros comerciais, bancos, garagens, lojas, prédios da prefeitura e, é claro, um Wal-Mart em cada esquina. Santo Deus! Éramos estranhos numa familiar aldeia global e não havia nenhum lugar para se esconder. As Montanhas Rochosas estavam virando rapidamente o lugar para onde todo mundo queria se mudar, e onde todo mundo queria se reproduzir. Um dia as pessoas que estão vindo do oeste vão dar de cara com as pessoas que vêm do leste. Então um dos piores pesadelos de Hunter vai se tornar realidade. Não vai existir mais nenhum lugar para ir. Vai acontecer uma briga infernal e os sobreviventes, num futuro não muito distante, vão recomeçar e cometer exatamente os mesmos erros outra vez, em cima de um monte de entulho poluído.
Seja como for, chegamos a Aspen e nada parecia diferente, exceto que prevalecia uma sensação de riqueza florescente. Agora, Aspen era chique demais para si mesma, e o esqui e o pólo eram os esportes locais. Identificar as celebridades que tinham acabado de comprar alguma coisa naquele Eldorado branco era o passatempo na área de não-fumantes dos cafés. Ficamos hospedados num hotel chamado Prospector Condominiums, como se a gente estivesse ali para garimpar ouro ou quem sabe prata.
Em 2004, aí pelo início de setembro, recebi de Hunter uma mensagem na secretária eletrônica que durava cinco minutos. Ele divagava a respeito de várias exigências de coisas que ele precisava de mim para a Rolling Stone. Era para o número anterior às eleições Bush-Kerry, as eleições que abalaram o seu espírito, e o de muitos outros também. Gravei aquela mensagem e reproduzo aqui, como o último apelo à luta do meu amigo, que na ocasião parecia estar encostado contra a parede.
Especificamente, ele queria que eu fizesse o desenho do mal absoluto. “Absoluto” é uma palavra estranha e não pode ser quantificada, mas depois que eu tiver terminado de imprimir essas palavras, vou tentar fazer exatamente isso, em homenagem a Hunter.
Ah, Ralph, seu bestinha nojento. Tenho um trabalho para você, um trabalho nobre e digno. Já sei, não precisa dizer, é só um trabalho, mais um trabalho. Agora estou escrevendo no fax uma mensagem triste, mas não se preocupe. Estou meio alto, Ralph, escrevendo uma porção de páginas doidas de um artigo para a próxima sexta-feira. Trata-se de voto e eleição, trata-se de votar ou morrer – Ralph, isso tem que ser um porradão e, Ralph, quem mais além de você, quem mais eu poderia procurar quando a gente tem de dar um porradão –, preciso de uma ilustração sobre as eleições americanas. O verdadeiro xis da questão para você é este: ilustrar a natureza física do mal. Qual… seria a natureza física do mal, Ralph?
Quando chegamos à Fazenda da Coruja, Hunter já estava acordado e a droga dos canais de esporte estavam vomitando jogos de futebol americano de todo canto do país. Aquela era a obsessão de Hunter. A máquina monstruosa nunca desligava. Ficava brilhando no canto, feito um autômato maligno. Eu tentava racionalizar o troço.
Só é esporte se espirrar sangue. Só é esporte se amontoar a maior multidão de quebradores de ossos sanguinários dentro de um estádio adequado a um espetáculo do Império Romano onde gladiadores se atracam e se derrubam na lama.
A psique americana tem um traço escondido, forjado na alma nacional desde os tempos sagrados em que os antepassados peregrinos saíram da Inglaterra, em 1620, para celebrar cultos à sua maneira. Vieram para uma terra estranha e rezavam com um fervor que não podia ser amparado por um Deus que não podiam ver, ou que talvez tivessem deixado para trás.
No correr de três séculos, o fervor se transformou no culto de um outro tipo de deus. Um deus de ação – um super-herói ou, para ser específico, equipes de super-heróis. Um americano vira uma outra pessoa dentro de um estádio de futebol americano. Os deuses da psique se movem ligeiro e castigam os inimigos imaginários com uma força e um poder suficientes para representar e evocar a força e o poder do país em si.
Não consigo pensar em nenhuma outra explicação para a medonha carnificina que os americanos exigem de suas atividades esportivas, ou para as roupas que criam de forma tão inventiva para enfeitar os seus deuses. Essa papagaiada de haute couture esportiva define bem a arrogância deles e o seu engenho. Casada ao talento para a exploração e os grandes negócios, essa poderosa combinação é não só irresistível para o estilo de vida americano, como também para o resto do mundo. O Iraque não passou de um tremendo evento esportivo, mas, infelizmente, parece que não termina nunca e até os conservadores estão começando a citar Shakespeare e dizer: “Chega! Vamos parar! Não tem mais tanta graça quanto antes…”
É o máximo que posso dizer sobre o esporte. É uma visão generosa e que, estou certo, nunca passou pela cabeça de um americano. É uma visão que não vai toldar o fato de que o esporte arrancou de mim alguns desenhos bacanas.
2005_MEMORANDO
Caro Hunter,
Faz mais de um ano que você armou o cenário para seu suicídio, estranhamente planejado. As mensagens que eu tinha recebido de você sobre as eleições BushKerry de 2004 estavam contaminadas por um toque lúgubre.
“Se o Bush ganhar”, você disse, “o planeta está perdido. A Halliburton Corporation vai governar com um exército de palermas obedientes que vão transformar os Estados Unidos numa terra sob medida para pirados religiosos, dedos-duros, legisladores fascistas, gananciosos, um indecente orçamento para a defesa contra os ‘terroristas’, o desejo de ação preventiva contra o Irã e a ambição de permanecer como o poder dominante supremo sobre o mundo, por todos os meios possíveis.”
A última mensagem que você me deixou perguntava se não havia um jeito de eu desenhar a personificação do mal absoluto. Era um pedido difícil e tentei diversas imagens, mas o seu vão apelo me deixou perdido. Quem sabe eu estava procurando no lugar errado?
Hunter, foi por isso que você se suicidou. Os seus Estados Unidos acabaram. Foi a verdadeira morte da diversão. A BRINCADEIRA ACABOU. Quando você puxou o gatilho da sua Magnum .44, depois de convocar a presença do único homem no mundo em quem podia confiar naquela hora, o seu filho Juan, você estourou um dos cérebros mais singulares da nossa era. Foi um belo tiro, que não só levou o cérebro como também perfurou a sua touca de cozinheiro. Um orifício de ventilação para a eternidade. Meu Deus! A gente devia se sentir bem, mas não é assim. A maioria das pessoas que conheceu você, Hunter, está de luto e lamenta o dia, aquele dia em que o meu parceiro de 35 anos de trabalho estourou a própria vida à bala.
[1] Albert Speer (1905-1981), também chamado de primeiro arquiteto do III Reich, foi ministro do Armamento de Adolf Hitler.
[2] Bernard Stone (1924-2005), poeta, editor e livreiro, pólo da vida literária londrina dos anos 60 a 80.
[3] Neil Cassady (1926-1968), escritor americano da geração beat.
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