ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
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Reengenharia cristã promove os tempos modernos em arquidiocese
Consuelo Dieguez | Edição 22, Julho 2008
Na manhã do dia 9 de junho, Adionel Carlos da Cunha chegou ao edifício João Paulo II, no bairro da Glória, e seguiu direto para a sua sala, no 6º andar do prédio. Ali funciona a assessoria de imprensa da Arquidiocese do Rio de Janeiro, comandada por ele ao longo dos últimos 39 anos. Parecia uma manhã como as outras. Ele lera os jornais, falara com repórteres por telefone e acompanhara o arcebispo, dom Eusébio Oscar Scheid, em seu programa de rádio. Voltaram juntos no carro de dom Eusébio, trocaram algumas amenidades e, já no prédio, seguiram juntos até o mesmo andar, cada um para a sua sala.
Às três da tarde, Adionel Cunha, um homem pequeno, simpático, de fala mansa, às vésperas de completar 67 anos, foi chamado ao gabinete do padre Edvino Alexandre Steckel, diretor da Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro, responsável pela administração das finanças da Igreja. Acompanhado de dois advogados, o padre Edvino foi sucinto: disse a Adionel que ele estava demitido. Pouco depois, quem recebeu o bilhete azul foi Cândido Feliciano da Ponte Neto, durante 37 anos ecônomo da Mitra, ou seja, administrador da arquidiocese.
Naquele dia, o padre Edvino seguia a máxima de Maquiavel segundo a qual os sofrimentos devem ser infligidos de uma só vez. No final da tarde, mais 23 funcionários seriam demitidos, dezessete só na Pastoral do Menor, que atende crianças e adolescentes pobres. A maioria dessas dispensas não mereceu nem a consideração de uma conversa de corpo presente. Foi pelo telefone mesmo. A assistente social Regina Leão, coordenadora da Pastoral do Menor por dezessete anos, contou, magoada, que soube de sua demissão pelo correio de voz: “Eu estava numa reunião da pastoral e tinha desligado o celular. Quando fui ouvir as minhas mensagens, descobri que estava demitida. Nunca vi um desrespeito tão grande.”
Só então a comunidade católica do Rio de Janeiro tomou conhecimento de que, por decisão de dom Eusébio, a arquidiocese estava passando por uma reestruturação. Ou ainda: por uma “reengenharia de processos administrativos”, fórmula da predileção dos manuais de administração. Os primeiros reestruturados continuavam surpresos quando, uma semana depois, coletivamente, se apresentaram para a homologação das demissões. “Trabalhei oito anos com dom Eusébio e passei a manhã inteira com ele naquele dia e ele não manifestou nenhum gesto de solidariedade, embora soubesse o que aconteceria algumas horas depois”, desabafou Adionel Cunha. A impessoalidade dos negócios chegava à Santa Igreja.
A reestruturação começou a ser preparada no início do ano, em janeiro, quando o padre Edvino assumiu a direção da Mitra, com o espetaculoso título de Vigário Episcopal para a Administração dos Bens Temporais da Arquidiocese. Sua primeira medida foi contratar a consultoria da FGV Projetos, uma unidade da Fundação Getúlio Vargas que, na internet, informa ser “uma célula multidisciplinar capaz de oferecer soluções administrativas, econômicas e financeiras que viabilizem a superação das metas de seus clientes”.
No caso da Mitra, a meta é utilizar melhor os recursos da Igreja, ou “otimizá-los”, como se diz no jargão. “Dom Eusébio não quer apenas reorganizar as contas; quer também rever todos os contratos com os parceiros da arquidiocese”, explicou o padre Leandro Cury, substituto de Adionel. O primeiro contrato submetido a revisão foi justamente o da Pastoral do Menor. A Mitra afirma que ali a auditoria da FGV Projetos encontrou uma dívida de 510 mil reais. Tomou-se, então, a decisão de fechar a pastoral, acabar com os programas e demitir os dezessete funcionários. Regina Leão contesta os dados. Afirma que a pastoral nunca foi procurada pelos auditores. “O mais correto seria eles conversarem conosco para encontrarmos juntos uma solução. Esse trabalho fundamental é de responsabilidade de toda a arquidiocese”, diz ela.
Padre Leandro Cury não se abala com as queixas: “Quem sai nunca fica satisfeito. Não vamos acabar com o programa, vamos reavaliá-lo.” Uma decisão já foi tomada: “Trabalharemos apenas com voluntários, para diminuir as despesas”, disse. Adeus, trabalho remunerado.
No mesmo dia em que os reestruturados assinavam a demissão, o Jornal do Commercio trazia na página de opinião um artigo de dom Eusébio intitulado “O trabalho cristão”. Ali ele defendia a necessidade de “resguardar a dignidade do trabalhador” e fazia um pedido aos empregadores: “Que eles compreendam que vale muito mais a dignidade das mãos que trabalham do que o fruto que elas produzem.” O padre Leandro Cury tenta explicar o descompasso entre as palavras e os atos de seu superior: “Não se trata de uma mentalidade empresarial. Nós lidamos com doações, com recursos de terceiros, e devemos explicações a essas pessoas. Por isso precisamos de uma administração mais moderna.”
Mais streamlined, poderia ter dito. A reforma da arquidiocese está apenas começando. Os procedimentos acres da reengenharia estão por toda parte. Um dos primeiros passos rumo ao aggiornamento gerencial foi dado pela eliminação das divisórias nas salas dos funcionários. À moda das grandes instituições financeiras, agora padres, freiras e leigos dão duro no mesmo ambiente. E, claro, usam crachás — obrigatórios. Catracas também foram instaladas na entrada da arquidiocese. “Queremos uma administração moderna. Nós temos recebido apoio e elogios. Os críticos são aqueles que não aceitam mudanças”, explicou padre Leandro, não sem antes alertar que mais cortes não estão descartados.
Como um Chief Executive Officer, às vésperas de largar o posto, dom Eusébio quer deixar sua marca na administração dos bens da Igreja. O choque de gestão — vamos chamar assim — ocorre no seu último ano à frente da arquidiocese. Ele já entregou ao Papa Bento XVI o pedido de aposentadoria.
No centro da confusão está o eterno e melífluo cardeal dom Eugênio Salles, arcebispo emérito do Rio de Janeiro. Boa parte das demissões atinge pessoas de sua grande confiança. Dom Eugênio ocupou por trinta anos o cargo que passou a dom Eusébio em 2001*. As relações entre os dois nunca foram das mais calorosas, para usar um pio eufemismo. O político dom Eugênio não se afina com o brusco dom Eusébio. De dom Eugênio, jamais sairiam as palavras usadas pelo sucessor para anunciar à cristandade que o presidente Lula não era “católico e sim caótico”. Ou que o Espírito Santo não se entendia bem com o nosso mandatário. Dom Eugênio não improvisa, age nos bastidores. Há quem diga que se trata de uma luta intestina. Resta saber quem vencerá: se o silencioso ou o falastrão. Essa pugna decidirá se a Igreja resiste à reengenharia dos tempos que correm.