ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Quase parando
Um seqüestro-relâmpago do baladeiro octogenário
Bruno Moreschi | Edição 22, Julho 2008
Para espanto de todos, Antônio Assis não apareceu naquela tarde. A assembléia de cabelos brancos e azulados interrompeu a dança e decidiu agir. Sem Assis, 81 anos, mais conhecido como “Marcha Lenta”, o clima no Cartola Club era definitivamente desolador. Marcha Lenta era o cliente mais assíduo, móveis e utensílios do salão. Em 1966, quando o clube da avenida Brigadeiro Luís Antônio, quase esquina com a Paulista, foi inaugurado, lá estava ele, de sapato bicolor, na plenitude dos seus 39 anos. Tempos aqueles em que clubes dançantes não eram redutos de viuvez. Desde então, ele não deixara de aparecer nenhum dia, garantiu o porteiro Zacarias. “Mentira. O clube não abre segunda nem quinta”, Marcha Lenta corrigiria dias mais tarde, uma vez descoberto seu paradeiro.
O desaparecimento de Assis teve sua gênese na frieza institucional de um consultório médico. Ao lado da filha Matilde, o octogenário baladeiro ouviu a penosa sentença do ortopedista Rubens Fonseca: “Nada mais de clubinho, o chacoalhar das pernas, o som alto, você não tem mais idade para tantos devaneios.” Marcha Lenta olhou para o lado e deu-se conta de que o inimigo agora era sangue de seu sangue, carne de sua carne. Matilde tomou as palavras como irrevogáveis, e deixou claro ao médico que impediria seu pai de continuar com as folias.
A turma do Cartola não sabia nada disso. Enquanto a banda Premium apresentava seu cover de Nelson Gonçalves, um grupo de amigos — e sublinhe-se, de amigas — reuniu-se para descobrir o que acontecera. Muitas das senhoras tinham grande apreço por Assis. Davam-lhe apelidos carinhosos: “Marcello Mastroianni perneta” ou “Humphrey Bogart desequilibrado”. As mais noveleiras preferiam qualificá-lo como “o Antônio Fagundes de amanhã”. Rosana Feitosa, 73 anos, o mais novo interesse amoroso do desaparecido, revirou a bolsa e, por entre as aspirinas, pescou um bilhete: “Para aquela que na pista é um cisne e que me deixa amedrontado como um patinho.” Seguia-se a assinatura e o telefone de Marcha Lenta. Quando o grupo ligou, deram com o obstáculo intransponível: a filha Matilde. Sua declaração foi curta e seca: “Jamais permitirei que meu pai volte ao clube.” A sentença era pesada demais, como uma rocha. O desânimo tomou conta do salão.
Inconformado com tal desígnio, o porteiro Zacarias interrompeu a música e, de dedo espetado no ar, exclamou: “Quanto a vocês, não sei, mas eu farei algo!” Foi o suficiente para acender o rastilho da rebelião. Pela primeira vez em anos, uma doce senhora soltou um palavrão impublicável. A platéia, pronta a se manifestar com aplausos dirigidos a Zacarias, estancou diante de manifestação tão inapropriada. O mal-estar só se desfez quando a dona do impropério pediu desculpas. Alegou que, por segundos, voltara-lhe à mente o passado de 1968 e o entusiasmo com que se atirara na batalha da rua Maria Antônia.
O plano era simples. Entre as contradanças, ligariam a intervalos regulares para a casa de Marcha Lenta. Amontoados próximos ao telefone como crianças levadas, a turma discava e, ao ouvirem a voz severa de Matilde, batiam com o telefone na cara dela. Um senhor de bengala e gravata dourada marcava o horário exato de cada ligação. Ninguém entendia bem a razão de tamanho rigor, mas obedeciam, regidos por uma obscura disciplina tática. Dançavam três músicas e discavam novamente. Tanto fizeram, que por fim ouviram a voz de Marcha Lenta do outro lado da linha. Tinham vencido o inimigo. A euforia foi tamanha que Agustina, no papel de telefonista, beliscou o braço de uma amiga pedindo silêncio. Passaram então à segunda etapa da campanha. Rapidamente, explicaram a Marcha Lenta o que esperavam dele. Para não despertar a desconfiança da filha, ele assentiu ao telefone com decorosos hum-hums.
E foi assim que, no dia 29 de maio, Marcha Lenta reapareceu em grande estilo no clube, a bordo de um bem cortado terno branco e sapatos bicolores. Dançou As Curvas da Estrada de Santos, porque a abstinência era braba, e em seguida se uniu ao grupo de conspiradores. Puseram um celular na mão de Agustina. Era hora de ligar para Matilde. “Não sei mexer nessa porcaria”, chiou a senhora. De pronto, levaram-na até um telefone fixo. Ao ouvir o “alô” azedo, Agustina disparou: “Estamos com o seu pai no Cartola. Ele só sai quando você aparecer para ouvir as novas regras do jogo.”
Quando Matilde entrou no clube, Zacarias já estava a postos com o discurso aprovado pela assembléia e impresso no computador do neto, às escondidas. Teria sido melhor se o porteiro houvesse nascido com dons oratórios mais inflamados. O que deveria ser um J’Accuse! soou mais como uma ladainha das seis da tarde. Entre os trechos compreensíveis (poucos), ouviu-se um tradicional “benefícios de se freqüentar um clube de dança” e o clássico epílogo “a vida é curta demais para ser desperdiçada”.
Matilde respondeu à altura, fogo contra fogo. Tirou da bolsa meia dúzia de caixas de remédio e, em voz alta, começou a ler as bulas. O queixo coletivo da platéia caiu. Entendidos em linguagem farmacêutica, todos compreenderam que Marcha Lenta sofria de osteoporose crônica.
Prestes a ver seu próprio exército trocar de lado e capitular, Assis pediu a palavra e se rendeu aos cuidados da filha. Antes porém de ser escoltado para fora, lhe fez uma singela súplica: queria uma última dança. Enquanto Ana saía das caixas de som, Marcha Lenta bailou com Rosana sob os olhares pesarosos dos amigos. Ao sentir que a música caminhava para o fim, achegou-se mais à namorada e sussurrou-lhe ao pé do ouvido: “Nas terças de bingo, consigo escapar da prisão.” Como os bingos são ilegais, isso significa que Assis caiu na clandestinidade.