ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Vai que dá zebra
A disputa do baixo clero por uma vaga de imortal
Roberto Kaz | Edição 23, Agosto 2008
O escritor mineiro Embla Rhodes, de 41 anos, se lembra da primeira vez que entrou no Petit Trianon, a sede da Academia Brasileira de Letras: “Foi no ano passado, quando visitei o Rio de Janeiro. Me identifiquei com o grupo. Me imaginei trabalhando naquela casa em prol da cultura nacional.” Tão logo surgisse a oportunidade, decidiu, concorreria a uma vaga. Não tardou: “Em maio, vi que a Zélia Gattai havia morrido e encaminhei, com muito pesar, a minha solicitação.” O que Rhodes não imaginava é que outros 22 pretendentes fariam a mesma coisa. É o recorde da história da Academia.
Para se habilitar a uma das quarenta vagas da casa fundada por Machado de Assis, o candidato precisa ser brasileiro nato e ter ao menos um livro publicado. Da inscrição, gratuita, até o pleito, que desta vez ocorre agora em agosto, passam-se três meses. É o tempo que têm os aspirantes ao fardão para organizar chás, almoços e jantares, decisivos no aliciamento de eleitores. No vox populi dos imortais, os candidatos Luiz Paulo Horta, Antonio Torres, Isabel Lustosa, Fábio Lucas e Ziraldo despontam como favoritos.
Por fora correm escritores menos conhecidos, como Rhodes, autor do romance Aether, uma trama policial que envolve chantagem, assassinatos, alta ciência, neopentecostalismo, Deus, tempo, espaço, causalidade, matéria, alma, encarnação, criação, salvação, redenção, determinismo, livre-arbítrio, bruxaria e tráfico de drogas. “Não me empenhei em fazer campanha, mas os membros da Academia receberam meus livros, além de uma cópia das minhas pesquisas de mestrado e doutorado. Diria que eles têm obrigação de ler. É inconcebível que votem sem conhecer os candidatos.”
O professor de redação Marcelo Henrique, membro da Academia Amparense de Letras e ex-presidente da Casa do Poeta de Amparo, no interior de São Paulo, é mais realista: “A disputa está acirrada por se tratar da cadeira do Machado de Assis. É o posto mais nobre da Academia.” Para se fazer conhecer, Henrique procurou chegar aos imortais via telefonemas e e-mails: “Mas estou com 38 anos. Se não conseguir agora, posso tentar outra vez, desde que seja no posto do Machado ou no do Olavo Bilac.” Henrique é taxativo em suas preferências: as cadeiras de Rui, Euclides e Manuel Bandeira simplesmente não lhe interessam.
A aposentada Palmerinda Donato, que mora em Brasília e pertence à Académie Internationale de Lutèce, de Paris, aposta no efeito-cota. “Quando a Zélia morreu, senti que o time feminino ficaria desfalcado. Por isso, sou candidatíssima”, declara ela, que tem 76 anos e seis livros publicados. Suas principais obras são Eu e Eles, sobre seu pai, seu avô e o presidente Juscelino Kubitschek, e Eu e Elas, sobre sua mãe, sua avó e a primeira-dama Sarah Kubitschek. Ciente de que bons contatos podem pesar, Palmerinda se municiou de cartas de recomendação escritas pelas embaixadoras da Guiana, do Suriname, de Trinidad e Tobago e do Marrocos. Dos quadros nacionais, o apoio veio do chefe do Estado-Maior do Exército, que, também em carta, elogiou-a pelos “relevantes serviços que vem prestando ao Exército Brasileiro e à Pátria, no exercício da cultura”. Todas as missivas foram encaminhadas ao presidente da Academia, Cícero Sandroni.
O nipo-paranaense Paulo Hirano, membro da Academia Irajaense de Letras e Artes — instituição do bairro de Irajá, no subúrbio carioca —, lamenta não contar com uma base partidária tão sólida: “É a nona vez que eu tento, só que aquilo ali é uma panelinha. Como moro no Paraná e não visito ninguém, acabo sendo ignorado. Está difícil, infelizmente.” Hirano, de 72 anos, tem um livro publicado e mais de cinqüenta na gaveta, entre os quais Cento e Cinqüenta Poemas que Mexem com o Coração: “Não tenho como arcar com os custos de um romance editado por conta própria. Quero ver se entro na Academia para as editoras me procurarem. Vai que dá uma zebra e eu consigo.”
Alguns candidatos, como os advogados aposentados Blasco Peres Rêgo e Felisbelo da Silva, apostam no conjunto da obra. Peres Rêgo é autor de 107 livros, dentre os quais O Manual do Porteiro, O Manual do Garçom e o Manual do Frentista, escritos para ajudar jovens desempregados. Aos 75 anos, morando em Bauru, no interior paulista, ele concorre pela segunda vez. “O importante é participar. Se não conseguir, paciência”, confidencia. Em caso de derrota, ele acionará o plano B: “Vou tentar ingressar na Pontifícia Academia das Ciências de Roma, onde eles têm 29 prêmios Nobel, e na Corte Internacional de Justiça, em Haia.”
O catálogo de Felisbelo da Silva, de 77 anos, é talvez mais expressivo. Ele se apresenta como autor de quatrocentos livros, e de outros quarenta ainda por publicar. Seguro de si, não receia revelar um truque do ofício: “Leio pouco para ser original. Tenho uma obra enorme e nunca fui acusado de plágio.” Como Agem os Ladrões, sua estréia no ramo, saiu do prelo há mais de cinco décadas. De lá para cá, Silva produziu uma média de sete livros ao ano. O mais conhecido deles, Como Redigir Procurações, Contratos, Distratos, Requerimentos, Atestados, foi lançado em 1984, cinco anos antes da continuação, Como Redigir Requerimentos, Ofícios, Portarias, Ação Popular, Abaixo-Assinados, Habeas Corpus, Mandado de Segurança.
Mundo dos autos à parte, Silva é dono de uma portentosa produção na linha pornográfica, assinada sempre com pseudônimos em inglês ou francês. “Só serve nessas línguas, porque autor japonês não vende”, ensina. Sob a alcunha de Catherine Renoir, escreveu Belas e Depravadas. Com o nome de Christine Flaubert, Do Prazer Sexual. E, como William Parkinson, Vilma em Nova Dimensão. “É pornô mesmo, pura e simplesmente.” Ele não teme que a literatura impudica influencie negativamente na disputa à ABL. “Todos os livros vêm com a frase ‘Proibido para menores de 18 anos’. Estão dentro das normas”, explica. Para vencer o páreo, Silva aposta na sua criatividade sem peias: “O José de Alencar fez uns dezenove livros. O Graciliano Ramos, seis. Esse Paulo Coelho, que me venceu em outra eleição, tem uns doze títulos publicados. Com quatrocentos livros, meu lugar só pode ser a Academia.”