ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Profissional da claque
Procuram-se cinco senhoras para bater palmas
Letícia Rocha | Edição 25, Outubro 2008
Em Centreville, bairro pobre de Santo André, na Grande São Paulo, o pequeno sobrado tem um quadro-negro. Em giz branco e linhas tortas, lê-se: Quarta-feira – Márcia. Horário: 14h30.
Na sala, Benedita Aparecida Possari Dupas, de 58 anos, retoca a maquiagem. Veste calça jeans de cintura baixa, cardigã verde e sandálias pretas. Na hora marcada, penteia os cabelos uma última vez, desce as escadas e encontra duas de suas clientes. Benedita é Dinha, Dinha Caravanista. Há dezoito anos ela organiza caravanas para programas de auditório.
Nesta quarta-feira, o destino é o programa de Márcia Goldschmidt, na TV Bandeirantes. “Toda semana recebo pedidos das emissoras e, às vezes, chego a ter caravanas todos os dias”, revela, sem esconder o entusiasmo.
Além da Band, a caravaneira atende o SBT, a Record, a Rede TV! e, de vez em quando, a Rede Globo. Os pedidos costumam ser específicos: cinco senhoras e vinte jovens bonitas, por exemplo. Dinha corre para as agendas – são mais de dez, acumuladas ao longo dos anos – e trata de encontrar pessoas com as características certas. Passa horas no telefone; a conta, ao final do mês, não fica por menos de 300 reais. Dinha trata o gasto como investimento. Caravaneira é uma profissão.
Às 14h30 em ponto o transporte – um microônibus escolar enviado pela própria emissora – sai em busca das outras quinze clientes, ou “colegas de trabalho”, como Dinha prefere, parodiando Silvio Santos, ídolo maior no seu panteão.
Na primeira parada, entram duas senhoras e três adolescentes. Maria Madalena Ribeiro Pessoa, 66 anos, freqüenta programas de auditório há três anos e vai logo reclamando: “A coordenadora de platéia da Márcia é má. Não podemos nos mexer e ir ao banheiro, só com autorização.” Ainda assim, calcula que essa seja sua décima participação no programa.
Na segunda, a cliente não aparece e as colegas se preocupam com a hora. Uma das mulheres aproveita para abrir um pacote de biscoito de polvilho. “Servidos?” Na terceira parada, juntam-se ao grupo mais três mulheres. Na quarta, mais duas senhoras. Na quinta, chega a estrela da caravana, Judith – Caggiano, de 77 anos, mais de trinta pulseiras e tornozeleiras, 41 tatuagens, piercing nos dentes, na língua, no nariz, nas orelhas e na sobrancelha. Caggiano foi descoberta em uma das caravanas e nunca mais deixou de ser chamada. “Sou uma celebridade”, diz. “Já fui entrevistada em diversos programas.”
Na sexta e última parada, sobem mais três senhoras. Começam os cálculos para acomodar tantas colegas em tão pouco espaço. As mais gordinhas passam para a frente e Dinha viaja em pé. Todas nos seus lugares, a caravaneira aproveita para vender seu peixe: “Para quem não sabe, sou candidata a vereadora.” Ninguém sabia. São cinco minutos de parolagem eleitoral compulsória que resultam na promessa de cinco votos.
Às quatro da tarde, o grupo chega ao bairro do Morumbi, em São Paulo, onde ficam os estúdios da Bandeirantes. Forma-se uma fila com caravanas vindas de diversas cidades do estado e após a verificação das identidades – menores de 16 anos não entram – as colegas seguem para um galpão com arquibancadas em semicírculo. É servido um lanche – suco de uva em caixinha, sanduíche de queijo e presunto, e balas jujuba.
Em poucos minutos, as arquibancadas são tomadas por mais de cem mulheres – homens não entram. Lá se espera – muito. É uma espécie de purgatório. Para passar o tempo, alguém puxa uma música sertaneja. Todos cantarolam. E assim vão, percorrendo um cardápio extenso do cancioneiro nacional, que inclui a misteriosa dança do quadrado (“Ado ado ado, cada um no seu quadrado…”). Caggiano aproveita a oportunidade para se sacudir numa dança frenética. Chega a informação de que a gravação começará às seis. Aplausos tímidos e, de resto, incrédulos.
Às sete horas, formam-se duas filas para entrar no auditório: uma de jovens, outra de senhoras. As mais novas entram primeiro e são posicionadas na frente. As mais velhas vão para o fundo. A coordenadora de platéia resmunga: “Tem muita gente de preto hoje.”
Instruções: nada de espirrar, tossir, se coçar, se levantar ou se mexer. O único movimento permitido é na hora das palmas – “fortes, com as mãos em concha e na altura do peito”, explica a coordenadora. Entra o primeiro quadro. Uma mulher acusa o marido de havê-la traído. Ele jura inocência. Entra em cena um polígrafo, ao qual o pobre homem é submetido. O veredicto é definitivo: não traiu. Choro e constrangimento. O marido não quer a reconciliação. Ao final da gravação do primeiro de uma série de três programas, algumas senhoras movimentam a coluna na esperança de espantar a dor.
A experiência de Dinha com programas de auditório é vasta. Começou acompanhando a mãe. “Na época, não existiam caravanas e, para garantir lugar, as pessoas formavam filas de madrugada na porta das emissoras”, fala. “Qualquer um podia entrar. Hoje em dia, as emissoras pedem a presença de gente jovem e bonita.”
Acabou virando caravaneira por acaso. Sua filha abriu uma agência de modelos. Em pouco tempo, passou a receber pedidos de emissoras que queriam deixar suas platéias mais atraentes. A agência não vingou, mas Dinha descobriu sua vocação. “Minha primeira caravana foi para o programa do Silvio Santos”, conta. Foi um sucesso.
Para as caravaneiras, os tempos já foram melhores. A concorrência cresceu, os rendimentos caíram. Dinha calcula que seu ganho mensal fica em torno de 1 500 a 2 000 reais. Algumas emissoras pagam um cachê cujo valor não revela. Outras não pagam nada. Nesse caso, Dinha cobra entre 5 e 10 reais de cada excursionista. Para boa parte das senhoras, aparecer na televisão é programa dos bons. Se tiver celebridade então, melhor ainda. Pagam em função da qualidade do programa.
Às onze horas da noite as gravações se encerram. As senhoras descem as escadas vagarosamente, adaptando-se novamente aos movimentos, depois de mais de três horas posando como estátuas vivas que aplaudem de quando em quando. “Não falei? A coordenadora de platéia da Márcia é má”, repete Pessoa, já planejando seu retorno à emissora.