“Nos Estados Unidos, quando uma abordagem policial é mal feita, o agente precisa fazer um relatório da ocorrência, minuto a minuto. No Brasil matam e acabou” FOTO: ROGÉRIO REIS
O caçador de milícias
O local é insalubre. A estrutura é risível. O método não é metódico. A corrupção campeia. No combate às quadrilhas de ex-policiais cariocas, tudo é precário. Para o titular da delegacia especializada, "é isso ou nada"
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 27, Dezembro 2008
No número 1 da rua Silvino Montenegro há um prédio sujo, de quatro andares, cuja calçada nos dias de chuva é ocupada por uma lagoa fétida, formada pelo esgoto a céu aberto. A primeira impressão, e a segunda também, é de que se trata de um dos tantos prédios abandonados da Gamboa, bairro do desolado cais do porto carioca. É ali, no 3º andar, que está instalado o quartel-general da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e de Inquéritos Especiais, a Draco.
Deve ser a única delegacia de combate ao crime organizado, no mundo, onde se entra sem dar satisfação a ninguém, de dia, de noite ou mesmo de madrugada. “É a pocilga da polícia”, avalia um dos seus cinqüenta agentes, o inspetor Jorge Gerhard.
A avaliação é quase um elogio, tal a precariedade do prédio. O piso, as paredes e o teto estão encardidos, o ar-condicionado tem um defeito que o transmuta em ar quente nas áreas de circulação coletiva, e a grande maioria das descargas dos banheiros não funciona. “Isso aqui é uma esculhambação, uma vergonha”, diz o titular da delegacia, Cláudio Armando Ferraz, ex-fuzileiro naval e bacharel em direito pela Universidade Santa Úrsula. Ele conta que a situação era ainda pior antes de assumir o cargo, quase dois anos atrás: “Não tinha lâmpada, móvel, nada. O cartório empilhava inquérito até o teto. Os carros estavam destruídos, a produção era zero, uma merda absoluta.”
Cláudio Ferraz fez o comentário numa mesa do restaurante Dona Baratinha, um andar abaixo da Draco, onde o delegado costuma almoçar. A comida caseira combina com o salário dos 300 policiais lotados nas sete delegacias instaladas no mesmo prédio, das quais a Draco é no momento a que está mais em evidência. Et pour cause: uma de suas atribuições é o combate às milícias, as quadrilhas de policiais do Rio que achacam e vendem “segurança” à população.
Segundo um relatório da Secretaria de Segurança, as milícias estão em pelo menos 171 pontos do estado do Rio, dos quais 118 são bairros da capital. A conta feita pelo pesquisador Philip Alston, das Nações Unidas, que veio ao Brasil em novembro de 2007 para estudar execuções sumárias e extrajudiciais, é ligeiramente menor: 92 favelas com presença das gangues que disputam espaço com traficantes de drogas. A Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias, encerrada no mês passado na Assembléia Legislativa, indiciou 226 pessoas, entre elas 67 policiais militares, nove policiais civis, dois cabos do exército, bombeiros e agentes penitenciários, além de 130 civis, boa parte dos quais ex-policiais. O pedido de cassação de um deputado estadual (Natalino José Guimarães, que renunciou ao mandato uma semana depois) e sete vereadores, dois deles recém-eleitos, ilustra a capilaridade das milícias. Natalino está preso desde julho deste ano.
“É a Draco ou nada”, disse Ferraz, para sublinhar a precariedade da delegacia frente ao poder desses grupos. O delegado se faz notar, primeiro, pela voz – que é sempre entre alta e muito alta – e, depois, pela franqueza. “O Estado está de joelhos diante do crime organizado”, afirmou no primeiro minuto de conversa. Depois é que se nota o resto: porte de lutador de jiu-jítsu (ele é faixa preta, além de instrutor de boxe francês), os olhos verdes, as sobrancelhas peludas, o cabelo rente e ralo, o rosto bronzeado. Eram três da tarde e Ferraz aparentava tensão e cansaço. Acabara de voltar de um debate sobre milícias com Leandro Piquet Carneiro, cientista político da Universidade São Paulo, no auditório de um hotel em Copacabana.
O intelectual defendera, ou Ferraz assim o entendeu, que as milícias devem ser reprimidas genericamente, como se fossem uma coisa só. “Está errado”, corrigiu o delegado. Em sua sala na Draco, ele retomou a discussão: “O chefe de milícia tem navio, tem avião, tem apartamento na Barra e paga 800 reais para o polícia lá de baixo, que vai ficar na pista. A forma de reprimir um e outro tem de ser diferente.”
Ferraz foi parar no comando da Draco em março de 2007. Estava com 45 anos, quinze deles na polícia. Seu currículo somava as experiências de delegado tanto na Baixada Fluminense como no Leblon, cargos de confiança nas gestões do casal Garotinho e viagens para cursos técnicos no exterior, incluindo Inglaterra e Estados Unidos. Durante três anos, chefiou as operações da Divisão Anti-Seqüestro. O que havia de mais relevante no currículo era a ausência: não tinha nenhuma passagem comprometedora pela corregedoria.
Ao chamá-lo para o cargo, o secretário de Segurança José Mariano Beltrame disse a ele que queria ver “ação” e Ferraz prometeu entregá-la. Fernando Moraes, seu amigo dos tempos da Anti-Seqüestro, recém-eleito vereador com votos em áreas de milícias, perguntou: “Tu quer morrer?” O delegado, que conta com gosto histórias nas quais sua coragem sobressai, disse: “Todo mundo me chamou de maluco, mas assumi.”
Ferraz também gosta de clichês do tipo “os vermes sempre se encontram” e “sorte é o momento em que a competência encontra com a oportunidade”. Os dois aforismos, segundo o delegado, explicam como conseguiu seu maior feito: a prisão do vereador Jerônimo Guimarães, o Jerominho, irmão de Natalino Guimarães.
Ele mora numa casa com vista para o mar, com a mulher advogada, um casal de filhos e três cachorros. (Prefere que não se divulgue o local: foi informado da mais recente ameaça de morte justamente em casa.) O quintal com piscina tem uma escada com acesso a uma sala onde guarda livros. Ali, alguns tomos versam sobre espionagem e serviços de inteligência, outros remetem à ditadura militar, como a biografia do delegado Sérgio Fleury, do jornalista Percival de Souza.
“Fleury era aquele policial que tinha uma produtividade maravilhosa, mas o porão era negro”, comentou. “Isso acabou. Não tem mais espaço. O meu perfil é completamente oposto: tudo aberto, escancarado.” O delegado se define como um técnico, avesso a exibicionismos e defensor da meritocracia na corporação: quem sabe mais manda mais.
Contudo, ele admite abandonar o perfil “técnico”, e avisa que pode vir a pressionar Josinaldo Francisco da Cruz, o vereador Nadinho, suposto autor de uma das ameaças de morte. “Ele precisa tomar um calor”, explicou. “A gente conversa com o cara e o jogo é jogado: ‘Se um cair aqui, eu mato a tua família inteira.’ Pronto. É isso. Ele tem que saber que vai ter troco se acontecer alguma coisa.”
Nadinho, que nega qualquer envolvimento com as ameaças de morte, mora num dúplex de 200 metros quadrados em Rio das Pedras, na região de Jacarepaguá. Numa sexta-feira recente, uma empregada limpava o imenso terraço do 1º andar do apartamento, às onze da manhã, enquanto o vereador ainda dormia. Quando desceu, uma hora depois, estava de banho tomado, vestia jeans, tênis de marca e camisa de malha branca. Simpático e sorridente, ele usa com freqüência a expressão “meu amor”. Nadinho depôs duas vezes na CPI das Milícias. Na segunda, a seu pedido, parte da sessão foi secreta. Deu meia dúzia de nomes de policiais militares que chefiariam a milícia de Rio das Pedras. A CPI não chamou nenhum deles para depor.
Nadinho, que foi o nono vereador mais votado do Rio nas eleições de 2004, não conseguiu se reeleger em outubro passado. Ele foi indiciado em vários crimes, e ficou 24 dias preso por ter sido acusado de ter mandado matar o inspetor Félix dos Santos Tostes, seu antigo aliado. “Olhe bem para a minha cara e diga se eu tenho jeito de matar ou mandar matar alguém”, pediu-me Nadinho. Quando ouviu a resposta afirmativa, se disse ofendido.
“No FBI, você é obrigado a tirar trinta dias de férias por ano e não pode, em hipótese alguma, exercer outra atividade”, comparou Ferraz, na sua sala na Gamboa. “Lá, o policial é regiamente remunerado, tem condições de progredir e, caso seja exposto a uma situação de crise, vai ter um atendimento para reencontrar o equilíbrio. E, quando chega aos 52 anos, ele é obrigado a se aposentar, com tolerância de mais quatro anos para determinados casos. Enquanto isso, na polícia do Rio, ninguém tira férias para descansar, só para fazer bico.”
Ferraz também comparou a situação da polícia carioca com a da Colômbia. Lá, o plano de saúde do policial e de sua família é garantido pelo Estado, assim como o financiamento de um apartamento. “Se o policial chegar ao final da carreira sem problema no currículo, ele fica com o apartamento e ainda recebe o dinheiro de volta”, contou. Pelos cálculos do titular da Draco, não falta verba para montar uma estrutura técnica qualificada na polícia do Rio: “Dinheiro tem aos roldões, só que ele vai para o ralo. Tem desembargador que ganha 25 mil reais por mês.”
Ferraz contou que já viu corregedor com lista de 500 policiais “frutas podres” para serem exonerados da corporação. Ele tem poucas dúvidas sobre o que esses policiais fariam, depois de exonerados. A seu ver, mais importante do que afastar as frutas podres é dar condições para o policial não delinqüir. “É claro que fazer bico também dá desgaste, porque o cara vive na iminência de ser apanhado, e morto.” Ferraz desfaz qualquer ilusão de que o policial brasileiro está na profissão para dar conforto ao cidadão. “Ele não tem a mínima condição de ser simpático, agradável ou cortês. Ele está cheio de ódio. Ele é uma bomba-relógio.”
Da sala do delegado, tem-se uma boa visão da Favela da Providência, onde ele viu meia dúzia de cadáveres de supostos bandidos empilhados no meio de um barraco. Na mesma favela, ele matou um suspeito. “Não é agradável, mas, se você fez a coisa certa, dá para ir para casa e dormir sossegado”, comentou.
No bairro de Realengo, Ferraz participou de uma operação na qual não foi feita “a coisa certa”. Ele estava na delegacia Anti-Seqüestro e comandava uma operação de madrugada. Um dos alvos estava encurralado num quarto de motel e, no momento de dar o bote, o inspetor José Lourenço Américo de Miranda entrou na linha de tiro da pistola de Ferraz. “Naquele dia, deu tudo errado”, contou o delegado. Baleado na barriga, o inspetor sobreviveu, foi promovido e todos os policiais que participaram da ação testemunharam que o tiro fora disparado por um bandido.
O “fogo amigo” em Miranda, hoje lotado na Delegacia de Roubos e Furtos, é relembrado sempre que a antiga turma da Anti-Seqüestro se reúne para reviver os velhos tempos. Entre delegados, oficiais da Polícia Militar e inspetores são ao todo uma dúzia de policiais. Numa quinta-feira de setembro o almoço de confraternização, com muita risada e histórias sem fim, foi na Churrascaria Porcão de Ipanema. A conta foi acertada quase às quatro da tarde, e cada um pagou a sua parte (120 reais). Uma Veraneio da Draco esperava Ferraz na porta do restaurante, enquanto um jornalista alemão o aguardava na delegacia da Gamboa para uma entrevista.
O jornalista queria saber por que o assunto milícias irrompera com força no período eleitoral. O delegado simplificou a explicação para o estrangeiro: “Tinha um governador, Garotinho, e depois veio a Rosinha. Ambos investiram nesse tipo de relacionamento. Garotinho foi indiciado e seu chefe de polícia está preso. O novo governador optou pelo enfrentamento com esse tipo de atividade. É por isso que o pau está comendo.”
O repórter fez que entendeu e Ferraz não precisou mencionar que ele mesmo assessorou a cúpula da polícia durante os dois governos Garotinho em que a parceria com as milícias se solidificou.
O sociólogo espanhol Ignacio Cano, de 46 anos, quinze deles no Rio, seria um entrevistado mais frutífero para o jornalista alemão. Sua especialidade acadêmica é o banditismo urbano. Ele acaba de concluir, com uma equipe de oito pesquisadores, a análise de depoimentos de 46 moradores ou ex-moradores de áreas controladas por milícias.
Financiada pela fundação alemã Heinrich Böll, com apoio da organização não-governamental Justiça Global, a pesquisa, intitulada “Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas ‘Milícias’ no Rio de Janeiro”, estava sobre a mesa de Cano, no 9º andar da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ao lado do estádio do Maracanã. Ele define milícia como a soma de cinco características: controle da população de um determinado local por parte de um grupo armado irregular; coação; ânimo de lucro como motivação principal; discurso de legitimação com base na proteção dos moradores; e participação de agentes do Estado.
“Mas não existe um padrão único de milícia”, explicou Ignacio Cano. “Elas assumem formas diferentes – tem milícia de um sujeito só – e não estão estruturadas num comando centralizado.”
A intersecção de interesses eleitorais com o crescimento das milícias na zona oeste da capital, onde foram realizados os Jogos Pan-americanos de 2007, deu frutos, segundo Cano: os candidatos que falavam de milícias como um mal menor, quando comparado ao tráfico, foram eleitos.
Para os moradores que concordaram em preencher o questionário de pesquisa com garantia de anonimato, a definição de milícia é vaga, embora mais real. “A gente não vê eles, eles vêem a gente”, diz um. “Eles são homens que você não sabe quem são”, complementou outro. Um morador do Canal do Anil relatou o fim de dois vendedores de drogas: “Valão. Amarram mesmo, matam e acabou, entendeu?” Há relatos de coação por não-pagamento da taxa de segurança. “Se você vender um imóvel, tem de dar um dinheiro para eles; se você comprar, também”, explica um entrevistado de Jacarepaguá.
A imagem social das milícias piorou bastante a partir de maio, quando uma equipe do jornal O Dia, que fazia uma reportagem sobre o assunto na Favela do Batan, foi detida, seqüestrada e torturada por milicianos. “Daí para a frente o tra-balho da polícia avançou, mas é um trabalho tardio, insuficiente e sem nenhuma estratégia”, disse Ignacio Cano.
“Essa bola veio errada”, reclamou o delegado Ferraz, ofegante e pingando de suor, para o treinador do outro lado da quadra de tênis do clube onde treina três vezes por semana. “Você é que está com empunhadura errada”, retrucou o treinador. Uma hora e meia depois, encharcado, Ferraz pega a mochila onde estava o revólver Taurus. Enquanto retomava o fôlego, falou sobre técnicas policiais: “Nos Estados Unidos, a abordagem é bastante controlada. Quem faz uma abordagem que resulta em problema, precisa fazer um relatório minuto a minuto, detalhando armamento e posição, quem estava onde, quem falou o quê. Aqui no Brasil é uma palhaçada: ninguém controla nada. A Academia de Polícia até ensina corretamente, mas entra por um ouvido e sai pelo outro. Aquele que absorver corretamente os ensinamentos é um idiota, um bobalhão. Se [o abordado] for crioulo, pobre e favelado, então, dane-se.”
O delegado mudou de assunto para voltar a falar sobre o trabalho extra de policiais, os “bicos” ilegais. Ele disse que não faz bicos porque não precisa. Seu salário de 12 mil reais é complementado pela renda de imóveis herdados do pai, que tinha postos de gasolina. Mas sabe e tolera que todos os seus subordinados trabalhem, fora do expediente, na iniciativa privada.
Para Ignacio Cano, é muito claro que o Estado trata as milícias de maneira bem diferente de outros grupos armados, como o tráfico de drogas. “Contra o tráfico, é um bando de agentes armados, trocando tiro e matando, para ocupar espaço, pelo menos por algum tempo. Contra as milícias, não se disputa o espaço. Se investiga e pega os caras. É assim que deveria ser em todos os casos”, observou ele.
A leitura de relatórios feitos por Ferraz mostra que boa parte do trabalho se resume à citação, muitas vezes desordenada, de inquéritos que perambulavam em várias outras delegacias, sem qualquer continuidade e muito longe de conclusão. Ferraz os centralizou na Draco, complementou-os com algumas operações e apurações, e produziu relatórios com interligações que nem sempre resistem à lógica. Os crimes são graves, mas o que Ferraz reuniu está longe de oferecer indícios consistentes, e muito menos provas factuais.
Ele mesmo reconheceu que “estamos indo na cara e na coragem. Isso aqui é um escritório. Para abordarmos o crime organizado teríamos que ter um aporte institucional. Sem isso, é botar a minha vida em risco e a vida de outras pessoas também”.
Como não dispõe de condições para realizar uma investigação eficaz – grande parte dos equipamentos doados por empresários está tecnologicamente defasada –, Ferraz se concentra na reunião de indícios que resultem na emissão de mandados de prisão. Ajuda muito o fato de ele ter boas relações no Ministério Público, e com os juízes e desembargadores que cuidam dos seus casos.
Mesmo assim, o mandado de Jerominho, por exemplo, foi concedido num plantão judicial de sábado à tarde. “Até estranho, embora não questione, que uma prisão preventiva dessa natureza tenha sido buscada num plantão”, registrou o desembargador Sérgio Cavalieri Filho numa reunião do Tribunal de Justiça.
“Eu prometi mais duas operações de vulto até o final do ano”, contou Ferraz. Ele espera que o secretário o promova a delegado de primeira classe, o topo da carreira. O salário não vai alterar muito, mas a satisfação profissional sim.
Montado em sua pirâmide de análises e pesquisas, o espanhol Ignacio Cano tem uma explicação aguda para as prisões pirotécnicas. “Ousaria afirmar que o Estado esconde a sua omissão diante da corrupção de seus próprios agentes construindo a imagem da guerra contra o crime”, disse. “Esse governo vendeu a idéia de que enfim está se fazendo alguma coisa em relação à segurança pública no Rio. Não sei como conseguiu vender, mas vendeu. Mas o que está fazendo é o que sempre foi feito – só que com mais homens, mais armas, e operações de maior vulto.”
No começo de uma tarde de setembro, a advogada Nazaré Dias Monteiro apresentou-se ao delegado Ferraz em sua sala. Estava na Gamboa a pedido do corregedor do Tribunal de Justiça, Luiz Zveiter, com quem Ferraz mantém uma relação cordial. A pedido do corregedor, a quem prestara queixa de um achaque por parte de um perito contábil, Nazaré Monteiro queria que o delegado armasse um flagrante para prender o perito.
Pedido feito, pedido atendido. Foi disso que a Draco se ocupou pelo resto daquela tarde. Na sala de operações, um técnico da TV Globo adaptou a câmera que ia filmar o flagrante na bolsa da advogada. Ensinou-a, pacientemente, a usar o equipamento. Na hora marcada, final da tarde, Nazaré trouxe uma amiga para lhe dar coragem.
Ferraz comandou a operação. Onze policiais à paisana, todos armados, saíram em três viaturas em direção ao centro da cidade, invadiram um edifício sob os protestos do porteiro, e postaram-se entre o 10º e o 11º andar. Pelo equipamento técnico da TV Globo os policiais podiam ver, numa sala, as tratativas entre o perito e Nazaré. O homem demorou quase uma hora para botar a mão nos 1 500 reais que a advogada levou. Foi preso nessa hora. Estava com a esposa e o filho universitário, e protestou contra a armação do flagrante.
Ferraz o levou para a Draco, onde os outros três filhos engrossaram os protestos. Foi parar no presídio de Bangu 8. Um dia depois, achando que a punição fora excessiva, Ferraz pediu a Zveiter que mandasse soltá-lo. Zveiter aquiesceu, mas só depois de ter concedido uma entrevista sobre o caso para o noticiário local da Globo.
No dia da prisão dos 27 da quadrilha das vans, no começo de novembro, a atividade teve início às três e meia da madrugada. Foram mobilizados 250 policiais civis e militares para cumprir 33 mandados. Ferraz escolheu ir para a Favela do Turano, onde o objetivo era cumprir o mandado de prisão de uma mulher. O planejamento começou na sala de ar quente às quatro da manhã. Com um mapa do local na mão, tirado do Google Earth, vestido com sua roupa preta e amarela da Draco, o delegado deu início aos trabalhos falando aos subordinados: “Vamos lá. A gente vai, toma as bordas do beco e vê qual é. É ficar esperto para não tomar um cargueiro pelas costas. Se salgar muito, não vale a pena sustentar, a prisão que se foda. E se meter bala, a gente sai rápido. Ficar paradinho lá, nem pensar.”
Havia uns doze policiais em volta do delegado, em pé. Bem ao lado de Ferraz, um integrante da Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais, o Core, disse: “Não tem como não ter tiro. Se a gente parar as viaturas ali, o beco vai largar o aço, a não ser que de repente, com a chuva, nego tenha dado uma recolhida. Pra cumprir o mandado legal com segurança tem que ser com operação, amigo. Aí a gente tem que tomar o morro, colocar uns snipers [atiradores de elite] lá em cima, no mato. Aí é outra parada.”
Ferraz retomou a peroração: “Vamos sentir a pressão. Ninguém vai entrar, não. O máximo que a gente vai entrar é na casa 37, a da mulher.”
A saída da tropa ocorreu meia hora depois, quando clareava. Saíram dez carros e quarenta homens armadíssimos, alguns com capuz, para prender uma mulher. Já era dia quando eles subiram o morro, esgueirando-se numa rua cimentada na franja da favela, longe de onde supunham que estivessem os traficantes. A mulher, uma falsa advogada, foi presa em casa. Estava dormindo, com o marido, no andar de cima. No de baixo, estavam uma bebê adotada de dois meses, uma filha de 11 anos e uma sobrinha de 12. “Todo esse aparato é para mim?”, ela perguntou, ainda tremendo com o susto. Ferraz sacou outra frase feita: “Pode acontecer tudo, inclusive nada.”
Ao meio-dia de uma sexta-feira, Ferraz atendeu um telefonema do delegado Alexandre Neto, que foi vítima no ano passado de uma tentativa de assassinato. Tinha levado nove tiros, em Copacabana, perdeu um dedo da mão direita, passou por uma bateria de cirurgias, mas escapou. Ele convidava Ferraz para uma feijoada. Ferraz topou. “Vamos lá, no ‘buraco da lacraia'”, disse. Foi para o restaurante numa viatura da delegacia, acompanhado de dois policiais armados com fuzis.
No “buraco da lacraia” havia outros quinze tiras, todos amigos de Alexandre Neto. Depois do anfitrião, Ferraz era o mais graduado e paparicado. As viaturas estacionadas por perto atravancavam o trânsito. Quem pagou a conta foram empresários amigos. Na despedida, Alexandre Neto disse: “Eu e o Ferraz somos delegados da nova geração da polícia. Ele é sério, como eu também sou.” O inspetor Gerhard sugeriu que o título desta reportagem fosse “Nem tudo está perdido”.